ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS - Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Qual o futuro do saneamento em Porto Alegre? – artigo

Marcelo Faccin e Adinaldo Soares de Fraga*

“Em time que está ganhando, não se mexe.” Essa frase é muito utilizada no futebol, mas pode muito bem ser usada para o saneamento em Porto Alegre. O Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE), ao longo de seus 59 anos de vida, vem realizando investimentos, com recursos próprios e financiamentos, sempre com qualidade, transparência, responsabilidade ambiental e modicidade tarifária, com foco na saúde do cidadão da cidade. Todas as ações e investimentos realizados se baseiam no Plano Municipal de Saneamento (PMS), focado na universalização do serviço, cujo horizonte é o ano 2035. Nesse contexto, os investimentos realizados entre 2007 e 2019, em valores empenhados e indexados ao IGP-M de março de 2020, foram R$ 516,8 milhões (R$ 39,7 milhões/ano) em água e R$ 1.223,2 bilhões (R$ 94,0 milhões/ano) em esgoto, além de R$ 145,7 milhões (R$ 11,2 milhões/ano) em materiais permanentes. O DMAE de Porto Alegre (RS) sofre pressões para que seja privatizado, apesar de possuir uma capacidade instalada para tratar esgotos, estimada em praticamente 80% (DMAE, 2019). O Governo Municipal gestão 2017-2020, deliberadamente, permitiu que o DMAE, para certas realidades, se tornasse deficiente ou parecesse incompetente perante os cidadãos. O governo Marchezan fez dessa percepção dos cidadãos um problema que agora exige uma solução externa. Como estratégia de manipulação, os governantes municipais propõem como solução a privatização dos serviços de abastecimento de água e/ou de esgotamento sanitário de Porto Alegre. Justificam a privatização pelas metas ousadas e irreais colocadas no Plano de Saneamento Básico de Porto Alegre. Sabe-se que licenciamento, projeto, licitação e obra do porte da construção da nova Estação de Tratamento de Água (ETA) Ponta do Arado exigem prazos aproximados de quatro anos. Sucateia-se o DMAE, terceirizam-se tarefas para criar na memória das pessoas um clima de desaprovação do modelo atual, que apesar do desmantelamento pela gestão passada, ainda se constitui em um modelo de autarquia municipal na gestão dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário com elevado conceito junto à população.

O DMAE é superavitário e periodicamente tem repassado recursos para os cofres da Prefeitura. Na concessão dos serviços do DMAE, está implícita a obtenção de recursos privados para outras finalidades como o saneamento das finanças públicas municipais. Possíveis demandas na área do abastecimento de água e de esgoto sanitário são meras desculpas para justificar um ato administrativo. De antemão, fere-se um princípio fundamental, a integralidade no planejamento e na gestão dos serviços de saneamento básico. Não se pode, nessa atividade essencial, privatizar o lucro proveniente da prestação dos serviços de abastecimento de água e socializar os prejuízos, com a população usuária, deixando as demais áreas, como a drenagem pluvial e a gestão dos resíduos sólidos, amargando prejuízos e não oferecendo serviços de qualidade para a população.

A regularidade no fornecimento de água corre riscos se considerarmos que a média do índice de perdas de água hoje está 40%.  Os gestores municipais, a partir do ano 2017, optaram pela estratégia de contingenciar recursos do departamento para construir maiores superávits. Segundo dados constantes no Relatório Gerencial Financeiro do DMAE, a média dos investimentos realizados nos anos 2007 a 2016, considerando-se a arrecadação, foi de 22,75%, enquanto no ano 2017 esse valor caiu para 10,64%, numa clara demonstração de que recursos da autarquia estavam sendo contingenciados. Prejudicam-se os investimentos e melhorias operacionais necessárias para manter a boa prestação dos serviços. Esta é outra tática para desconstituir o padrão de qualidade dos serviços prestados pelo DMAE, ou seja, investimentos menores levam à falta de água, queda de produtividade, descontentamento. O que está bom fica ruim, e com apoio de formadores de opinião da mídia comprometida com princípios corporativos, abrem-se caminhos para a participação da iniciativa privada como solução. Outra constatação nesse processo de desmonte em curso é o fato de que o DMAE está perdendo sua inteligência e seu capital humano, historicamente reconhecido em nível nacional. No final do ano 2016, o corpo técnico do departamento era composto por 1.746 servidores. Este número caiu drasticamente para 1.471 servidores, em fevereiro de 2019. Como consequência, o tempo de resposta nos projetos, nas obras, da prestação dos serviços de manutenção de redes é maior, cujas repercussões fazem-se refletir na arrecadação, na elevação das perdas de água, nas obras. A falta de pessoal para operar as estações de tratamento de água e de esgoto constitui uma preocupação, por si só. No período de setembro de 2013 a dezembro de 2016, foi de 23,85% declinante, enquanto a média do índice de perdas de água no governo atual, no período de janeiro de 2017 a janeiro de 2019, foi de 29,14% crescente, atingindo, em outubro de 2020, 40%. A arrecadação, igualmente, está pior, se formos considerar a média do índice de perdas de faturamento no período de setembro de 2013 a dezembro de 2016, de 32,81%, e a média do índice de perdas de faturamento no período de janeiro de 2017 a dezembro de 2019, o qual corresponde a 37,86% crescente. Para piorar a imagem do DMAE perante a população porto-alegrense, a terceirização dos serviços de leitura não foi corretamente realizada, o que gerou descontentamento dos usuários, os quais tiveram os valores de suas contas de água majorados. Paralelo a isso, segundo o relatório de gestão de 2019, o DMAE apresentou em 2019 um superávit financeiro de R$ 157 milhões. Olhado apenas sob a ótica financeira, poderíamos achar ótimo esse superávit, mas, com um olhar mais apurado, diríamos que um órgão público como o DMAE foi relapso nos investimentos, gerando reclamações de falta de água em várias regiões da cidade, principalmente na região leste (bairro Lomba do Pinheiro). Isso significa que o DMAE priorizou outros investimentos em vez de investir na melhoria do sistema de abastecimento. Sabidamente, um órgão saudável não deve gerar prejuízos, mas partindo-se de uma premissa básica de que se houve sobra em caixa de valores, significa que investimentos deixaram de ser realizados para a melhoria do abastecimento de nossa cidade. O discurso da gestão anterior corroborado pela atual Administração é de que não dispõe de recursos para atingir a universalização do saneamento de forma acelerada e que não devemos penalizar a geração atual. Assim, a parceria/concessão plena ou parcial surgiu de forma mágica como solução para enfrentamento da “crise”.  Ocorre que a “crise” é fruto das decisões da Administração anterior que asfixiou o DMAE e cerceou sua autonomia administrativa e financeira, além de aumentar suas atribuições com a drenagem urbana. De forma paralela e sem participação do corpo técnico do departamento, a Prefeitura, por meio da Secretaria Municipal de Parcerias Estratégicas, articulou processo de contratação do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), assinado em 05 de dezembro de 2019, com remuneração de R$ 2 milhões no sucesso e R$ 60 mil no fracasso, mais R$ 4,5 milhões para consultorias. O interessante é que o BNDES já tinha iniciado, em 06 de agosto de 2019, a licitação por Pregão Eletrônico AARH Nº 34/2019, para “contratação de serviços técnicos necessários para a estruturação de projeto relativo à delegação dos serviços de saneamento do município de Porto Alegre – RS”. O referido contrato aguardou a finalização do termo entre a Prefeitura de Porto Alegre e  o BNDES e foi finalmente assinado com o Consórcio HHMS, em 17 de janeiro de 2020, no valor de R$ 1,67 milhão, e com prazo de execução de 36 meses.  Finalizado o estudo em menos de doze meses, o produto resultante foi o Edital de Concorrência Internacional para Concessão dos Serviços Públicos de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário Prestados no Município de Porto Alegre, cujo valor estimado, para efeitos dessa licitação, é de R$ 9.072.420.696,42 e prevê CAPEX de R$ 2,17 bilhões (R$ 0,88 bilhão em água  e R$ 1,29 bilhão em esgoto), sendo R$ 468 milhões em água e R$ 768 milhões em esgoto nos primeiros cinco anos e prazo total de concessão de 35 anos.

O estudo tem inúmeras falhas ou traz dúvidas sobre os dados apresentados, o que seria até esperado para uma “versão preliminar”, dentro do prazo acelerado de execução em meio à pandemia da covid-19.  Porém, as conclusões não apresentam uma fundamentação lastreada em análise de cenários, o que, mais uma vez, apenas reforça a premissa “ideológica” de que o saneamento em Porto Alegre deve ser uma “atividade estatal prestada por agente privado” e que o rito apenas cumpre os requisitos de formalidade anos, R$ 2,2 bilhões em capex[i], R$ 11,2 bilhões em opex[ii] e R$ 6,5 bilhões em outorga, sendo a diferença R$ 9,9 bilhões a “remuneração” do parceiro privado. Nesse caso, a propalada “aceleração da universalização do saneamento” vai tirar mais da metade dos recursos do saneamento, o que se traduz em absurda incoerência!  Mais ainda, se o maior objetivo da CONCESSÃO é a universalização dos serviços de saneamento em Porto Alegre, como ficarão os NÚCLEOS URBANOS INFORMAIS e os NÚCLEOS URBANOS INFORMAIS CONSOLIDADOS inseridos em ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE?

Em Porto Alegre, como já mencionado, existem vários investimentos em andamento alinhados com o propósito de universalização dos serviços de saneamento, porém, os financiamentos já obtidos, por força do contrato futuro, serão obrigações do Município, que renunciará à receita própria na concessão plena, sem falar no pagamento integral dos funcionários ativos e aposentados do DMAE que deverá ser absorvidos pelo Tesouro Municipal, na ordem de R$ 240 milhões.

Em síntese, por meio do DMAE, Porto Alegre tem realizado investimentos em busca da universalização dos serviços de saneamento, cumpre papel social com transparência e modicidade tarifária, de forma ambientalmente responsável.  Os desafios da universalização são imensos, mas, dentro da capacidade do DMAE, seja a partir de recursos próprios, seja mediante financiamentos. A concessão plena do abastecimento de água e do esgotamento sanitário coloca em xeque a condição de alcançarmos um futuro melhor ao cidadão de Porto Alegre e ao meio ambiente, traduzida na qualidade de vida e na saúde de cada um de nós.

Teremos dias de profundas incertezas, nos planos econômico, social e ambiental. O passo proposto pela Administração que se encerrou, poderá trazer consequências gravíssimas ao Município e ao Erário. O que se espera da atual Administração é o diálogo com a sociedade, a análise dos riscos e benefícios com maturidade e a urbanidade entre as partes, de modo a construir soluções que, efetivamente, permitam proporcionar a partir do saneamento público cada vez mais saúde e qualidade ambiental!

[i] Capex – sigla em inglês para capital expenditure, refere-se às despesas ou investimentos em bens de capital, também chamadas de despesas de capital.

[ii] Opex – sigla em inglês para operational expenditure, refere-se às despesas operacionais.

REFERÊNCIAS

DMAE – Dados Gerais 2019. In: http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/dmae/usu_doc/dados_gerais_2019_mudou.pdf, acesso em 04/02/2021.

*Autores:
Marcelo Faccin
– [email protected] – Eng. quím. DMAE – Porto Alegre
Adinaldo Soares de Fraga – [email protected] – Eng. civil aposentado DMAE – Porto Alegre

. Artigo publicado originalmente no site da Associação dos Técnicos de Nível Superior do Município de Porto Alegre

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