A MERCANTILIZAÇÃO DE BENS COMUNS CONTINUA AVANÇANDO RAPIDAMENTE. NÃO SÓ NO BRASIL, MAS EM TODO O MUNDO, A INSERÇÃO DA JUSTIÇA HÍDRICA NA AGENDA CLIMÁTICA SE TORNA URGENTE E NECESSÁRIA.
autora: Ana Paula Lemes de Souza*
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A água é um bem comum, fundamental para a vida não só dos humanos, mas de todos os seres viventes, desempenhando uma função primordial na manutenção dos ecossistemas e da biodiversidade, na regulação do clima e dos ciclos biogeoquímicos da Terra, tendo agência e influência sobre a dinâmica planetária.
A Terra é um sistema vivo, no qual todos os componentes, vivos e não vivos, interagem, mantendo um equilíbrio dinâmico que permite a vida no planeta.
A gestão adequada da água é indispensável para mitigar os efeitos das mudanças climáticas e garantir a segurança hídrica de todas as espécies, estando no epicentro de eventos climáticos extremos, como secas, enchentes e tempestades.
As mudanças climáticas estão afetando a biodiversidade, a segurança alimentar, a saúde e os meios de subsistência de muitos ao redor do mundo. A poluição ambiental, o desmatamento, a perda de habitats, a acidificação dos oceanos e a escassez de recursos naturais são desafios significativos que serão enfrentados, problemas que têm na água um ponto de convergência.
A justiça hídrica precisa ser incluída na agenda climática, reconhecendo a sua importância vital para confrontar as dificuldades ambientais do século XXI.
A catástrofe climática representa, em si, a crise de um modelo de vida, o desenvolvimentismo, que já deu vários sinais de fracasso. O fim do mundo representa o esgotamento material e simbólico de uma maneira de ocupar o território, por si só excludente, fazendo-nos repensar nossos modelos de produção, de consumo e de ocupação da terra.
A mercantilização de bens comuns é uma tendência global, objeto de muitas discussões e debates. Tem sido uma prática recorrente em muitos países que seguem a ideologia desenvolvimentista, defendendo o crescimento econômico como o principal objetivo, buscando atrair investimentos privados e estimular a iniciativa privada. Ao desconsiderar outras dimensões para além do crescimento econômico, gera graves consequências.
O modelo de privatização da água desafia, com arrogância, o esgotamento desse modo de vida, que, enquanto ocupação desmedida, representa ameaça planetária.
No Dia Mundial da Água, é importante destacar a sua importância para todas as formas de vida, reconhecendo os problemas associados à privatização, que exclui bilhões de pessoas e causa desastres ambientais em todo o mundo.
A vida na Terra começou na água e só depois se espalhou para fora dela. Elemento vital para todas as formas de vida, trata-se de questão acima da política, sendo necessário garantir a todos os seres o seu acesso justo e equitativo.
A água é, em si, a exemplificação do antiespecismo, um elemento vital para todas as espécies terrestres e aquáticas, animal, vegetal ou microscópica, que, enquanto tal, deve ser protegida e preservada.
Não é mais cabível tratar o direito à água como um direito apenas humano. Deve ser tratado como “direito não humano”, tendo em vista o direito da própria Terra à água, enquanto materialidade de vida, de regeneração e de integridade ao seu bom estado ecológico.
Ninguém pode se considerar proprietário da água. Qualquer que assim se proclame, seja organização política nacional ou internacional, indivíduo ou corporação privada, está simplesmente fora da arena do respeito à vida.
A abordagem da água deve se dar, primeiramente, sobre o seu equilíbrio ecológico. Não pode, jamais, ser considerada mercadoria, um recurso que a ser comprado, vendido ou apropriado por qualquer interesse. Adotar políticas que protejam e defendam o direito à água é proteger o direito a todas as formas de vida, para além da visão instrumental voltada apenas para o benefício humano.
Olhar, primeiro, para a água, é pensar no seu ciclo de regeneração, proibindo os usos poluentes e os danos irreparáveis, o que permite um olhar para além da necessidade humana, mas para o ecossistema como um todo.
Revertendo valores: o Dia Mundial da Água
O Dia Internacional da Água, comemorado anualmente em 22 de março, foi instituído em 1993, sob pressão do Banco Mundial, no documento “Gestão Integrada de Recursos Hídricos”, impondo a ideia de que a água é um bem econômico privado e que a gestão adequada dos recursos hídricos depende da gestão privada e da fixação de um preço a ser pago pelo consumidor.
O direito à água e ao saneamento somente foi reconhecido em 28 de julho de 2010, pela Resolução 64/292 das Nações Unidas, ressaltando a importância de garantir o acesso universal, equitativo e seguro à água potável e ao saneamento básico para todas as pessoas, implicando na responsabilidade dos Estados em criar as condições necessárias e essenciais para isso.
Para além do reconhecimento da ONU, o princípio da gratuidade deve ser aplicado à gestão da água, garantindo que todos tenham acesso à água potável e ao saneamento básico, o que é especialmente importante para garantir que comunidades mais vulneráveis tenham acesso a esses serviços essenciais.
O Dia Mundial da Água, apesar de sua origem controversa, serve para reflexão sobre as práticas predatórias e de apropriação privada as quais submetemos as águas, revertendo seus significados iniciais.
É preciso garantir que todos tenham acesso equitativo à água potável e saneamento básico, promovendo gestão responsável e participativa que garanta sua disponibilidade a longo prazo. Para que isso se torne possível, os investimentos devem ser públicos, não voltados para interesses privados, que priorizam o lucro e agravam as desigualdades.
O direito fundamental à água e ao saneamento não pode ser comercializado, importando uma abordagem integrativa e colaborativa planetária, enquanto a monetização da natureza incentiva a exploração e a privatização.
A água é um recurso fundamental para a vida e sua gestão deve ser baseada em princípios de justiça e equidade. Deve ser tratada como um bem comum público mundial, um direito universal de todos os viventes do planeta Terra, humanos e não humanos. A água, em si mesma, deve ser reconhecida como tendo direitos, devendo ser protegida e preservada como elemento essencial para o equilíbrio ecológico.
Somente essa abordagem ajuda a garantir que a gestão da água seja orientada não apenas por considerações econômicas, mas por princípios de justiça ambiental.
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*Ana Paula Lemes de Souza – Doutoranda em direito na FND/UFRJ, pesquisadora, escritora, ensaísta e advogada. Membro integrante do grupo de pesquisa OJB/UFRJ.