Autor: Alex M. S. Aguiar*
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O abastecimento de água, um dos quatro eixos do saneamento básico, cumpre um papel fundamental na saúde pública. O acesso à água potável é significativamente associado à diminuição da taxa de mortalidade de menores de cinco anos, e da diminuição das probabilidades de mortalidade de menores de cinco anos devido a diarreia (Cheng, J. J. et al, 2012). Por outro lado, a insegurança relacionada à falta de acesso à água e, consequentemente, ao esgotamento sanitário e às práticas de higiene, tem sido cada vez mais reconhecida como fator que traz desafios significativos à saúde e bem-estar das pessoas, sendo particularmente associada a impactos negativos à saúde mental, à saúde reprodutiva, e à episódios de violência, particularmente de gênero (Stoler, J.; Guzma, D. B.; Adams, E. A., 2023).
O acesso à água potável tem relação com os níveis de saúde e com a qualidade de vida dos usuários. Famílias com pronto acesso à água e que exercem maiores usos domésticos de água apresentam condições de saúde significativamente melhores que as de famílias que não dispõem de acesso à água em suas residências, ou que têm restrição nos usos domésticos da água. A intermitência no suprimento, mesmo quando ocorrendo em cenários com acesso a volumes médios adequados, estende a condição de risco à saúde pela possibilidade de comprometimento sanitário das instalações do sistema de abastecimento (Howard, G. et al., 2020, p. 9).
Por meio de um estudo empregando os dados disponíveis do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS)[1] – referentes ao ano de 2022, foi analisado o “nível de acesso ao serviço” de abastecimento de água dos municípios brasileiros, i.e. em termos do consumo médio per capita (em L/hab.dia), que corresponde ao indicador IN022 do SNIS. O estudo adota dois referenciais distintos:
- um que correlaciona o consumo per capita de água com níveis de risco à saúde, conforme publicado pela OMS – Organização Mundial de Saúde (Howard, G. et al., 2020, p. 10); e
- outro que considera o conforto e satisfação no uso da água nas atividades das pessoas, elaborado por pesquisadores da África do Sul e do Reino Unido, e publicado pela IWA – International Water Association (Crouch, M.L.; Jacobs, H.E.; Speigth, V.L., 2021).
Para o primeiro referencial, da OMS, o valor de 100 L/hab.dia pode ser considerado como um nível para promoção das condições de saúde e bem-estar, suprindo as necessidades incluídas no direito humano à água (Heller, L., 2022, p. 99).
Já para o segundo referencial, da IWA, para satisfação de necessidades de sobrevivência, de segurança e bem-estar psicológico básico o consumo per capita deve se dar entre 92 e 175 L/hab.dia.
METODOLOGIA
O estudo considerou os dados do SNIS referentes ao ano de 2022, considerando aqueles municípios atendidos com abastecimento de água[2], e para os quais estavam disponíveis, simultaneamente:
- População Atendida com Abastecimento de Água, hab. (AG001);
- Tarifa Média de Água, R$/m³ (IN005); e
- Consumo médio per capita de água, L/hab.dia (IN022).
Na obtenção dos dados e informações foram excluídos da seleção amostral dos prestadores os municípios cujos consumos médios per capita de água (L/hab.dia) e/ou as tarifas médias de água (R$/m³) se mostravam como outliers dos conjuntos, resultando em discrepâncias que impactavam significativamente as médias resultantes.
A amostra considerada foi constituída de:
- 848 municípios atendidos por prestadores regionais (95% do total do SNIS);
- 146 municípios atendidos por prestadores locais (57,1% do total do SNIS); e
- 371 municípios atendidos por prestadores microrregionais (95,6% do total do SNIS).
A significância estatística de diferenças para os parâmetros analisados (tarifas, consumos médios) foi verificada por meio do teste de Student (t), sendo a verificação da similaridade das variâncias obtidas a partir de teste-F.
RESULTADOS
Nível de Acesso ao Serviço e Riscos à Saúde:
O estudo mostrou que 1.118 municípios, ou 20,8% dos municípios da amostra, apresentaram consumo médio per capita de água inferior a 100 L/hab.dia, portanto insuficiente para promover um baixo risco à saúde dos usuários. A região Nordeste apresentou maior porcentagem de municípios atendidos com consumo médio per capita inferior a 100 L/hab.dia, igual a 46,6%.
Os dados apontaram uma população de 19.536.643 pessoas com média de nível de acesso inferior ao mínimo recomendado pela OMS para promoção de um baixo risco à saúde. As Organizações Sociais e as Empresas Privadas apresentam os maiores percentuais de população atendida com valores inferiores a 100 L/hab.dia (81,8% e 29,9%, respectivamente).
Nível de Acesso ao Serviço, Conforto e Satisfação no Uso da Água
Sob a perspectiva do conforto e satisfação no uso da água, mais de 80% dos municípios da amostra apresentam nível de acesso Mínimo (<92 L/hab.dia) ou Básico (92 ≤ CPC < 175 L/hab.dia). Contudo, a segregação do atendimento segundo a abrangência de atuação dos prestadores demonstrou que os prestadores Locais têm mais de 50% da população atendida com consumos médios per capita de água classificados como níveis de acesso Realista, Satisfatório, e Irrestrito.
Os municípios atendidos pelas Organizações Sociais e pelas Empresas Privadas são os que apresentaram nível de consumo Mínimo (CPC < 92 L/hab.dia) predominante (66,0% e 33,2%, respectivamente), suficiente apenas para atividades de sobrevivência, segundo Crouch, Jacobs, e Speigth (2021).
Comparação das Tarifas Médias
A comparação entre as tarifas médias se deu segundo a classificação do prestador. Entre os prestadores de abrangência de atuação Regional, as tarifas médias praticadas pelas Empresas Privadas apresentou variância similar apenas às praticadas pelas Empresas Públicas. Os testes realizados, contudo, indicaram diferença estatisticamente significativa (IC = 95%) entre as médias das tarifas médias praticadas pelas Empresas Privadas com aquelas praticadas pelas demais tipologia de prestadores. Com isso, pode ser inferido que nos municípios da amostra atendidos pelos prestadores de abrangência Regional, as tarifas médias de água praticadas pelas Empresas Privadas (μ= R$6,79/m³; δ = R$0,97/m³) são mais caras do que aquelas praticadas pelas demais tipologias de prestadores.
Os prestadores de abrangência Local compreendem as tipologias Administração Pública Direta; Autarquia, Empresa Privada, Empresa Pública, Organização Social, e as Sociedades de Economia Mista de Direito Privado com Administração Pública (LPR).
No grupo dos prestadores Locais, a tarifa média praticada pelas Empresas Privadas apresentou variância similar às praticadas pelas Empresas Públicas, Organizações Sociais, e pelas LPR. Os testes realizados (IC=95%) não apontaram diferença significante entre as médias das tarifas desses prestadores.
Contudo, as comparações entre Empresas Privadas e as tipologias Administração Pública Direta e Autarquias indicou similaridade das variâncias e diferença significativa entre as médias das tarifas praticadas. Desse modo, para os municípios da amostra atendidos pelos prestadores de abrangência Local, pode ser inferido que as tarifas médias praticadas pelos prestadores de natureza jurídica Administração Pública Direta (média = R$2,19/m³; DP = R$1,95/m³) e Autarquias (μ= R$3,18/m³; δ = R$2,19/m³) são mais baixas do que as praticadas pelas Empresas Privadas (μ= R$4,88/m³; δ= R$1,53/m³) e, também, pelas demais tipologias de prestadores[3].
Com abrangência Microrregional encontram-se prestadores das tipologias Autarquia, Empresa Privada, e Organização Social. As tarifas médias praticadas pelas Empresas Privadas apresentaram variância similar às praticadas pelas Autarquias e pelas Organizações Sociais. Os testes realizados (IC=95%) apontaram diferença estatisticamente significativa entre as médias das tarifas praticadas por Empresas Privadas (μ= R$5,87/m³; DP = R$2,86/m³) com aquelas praticadas pelas Organizações Sociais (média = R$2,98/m³; δ= R$1,38/m³). Com isso, pode ser inferido que nos municípios da amostra atendidos por prestadores Microrregionais, aqueles da tipologia Organização Social praticaram tarifas médias mais baixas do que as Autarquias e as Empresas Privadas.
CONCLUSÕES
O acesso à água potável é fundamental para minimizar riscos à saúde física e mental das pessoas e da coletividade, e para promoção de seu conforto e bem estar. Assim, é esperado um nível adequado de acesso à água, medido sob a forma do consumo médio per capita de água, para cumprimento dos objetivos do serviço de abastecimento de água. Baixos consumos per capita de água podem estar associados a diferentes causas – ou à combinação de várias delas: escassez hídrica, deficiências no sistema de abastecimento de água, preço das tarifas cobradas, hábitos de higiene e modos de vivência dos usuários etc.
Os dados disponibilizados pelo SNIS, contudo, não são suficientes para permitir a análise das razões associadas ao nível de consumo de água pelas pessoas. Não obstante, as médias informadas para o consumo per capita dos municípios, as populações atendidas, as tarifas médias de água praticadas, e as características dos prestadores permitiram desenhar o cenário do abastecimento de água nos municípios brasileiros no ano de 2022.
Os resultados revelaram que mais de um quinto dos municípios da amostra apresentou um consumo médio per capita de água inferior a 100 L/hab.dia, considerado insuficiente pela classificação da OMS para promover Baixo Risco à saúde. Isso afetou 19.536.643 de pessoas, cerca de 12% da população atendida na amostra. O Nordeste se destacou dentre as regiões geográficas, com 60,14% das mais de 19 milhões de pessoas com consumo médio de água inferior a 100 L/hab.dia.
Dentre as diferentes tipologias de prestadores de serviço, aqueles classificados como de abrangência Local e das naturezas jurídicas Autarquia e Administração Pública Direta apresentaram menores proporções de população atendida com consumo médio per capita de água inferior a 100 L/hab.dia (5,51% e 7,75%, respectivamente). O melhor desempenho, contudo, foi obtido para a tipologia Empresa Pública, do grupo de prestadores Regionais, com apenas 4,03% das mais de 1,4 milhões de pessoas atendidas com consumo médio per capita inferior a 100 L/hab.dia. Além disso, foi constatado que 29,9% dos 24,5 milhões de pessoas atendidos com abastecimento de água pelas Empresas Privadas têm consumo médio per capita de água inferior a 100 L/hab.dia.
Em termos de conforto e bem-estar na realização de atividades com uso de água, as análises procedidas indicaram que mais de 80% da população atendida na amostra apresentou níveis de acesso ao abastecimento de água compatíveis com o nível Mínimo (8,1%), suficiente apenas para atividades de sobrevivência, e com o nível Básico (73,6%), suficiente para realização das atividades básicas associadas à segurança e ao bem-estar psicológico.
Por fim, a análise das tarifas médias indicou que, no âmbito dos prestadores de abrangência de atuação regional, as tarifas praticadas pelas Empresas Privadas são estatisticamente mais altas do que as praticadas pelos demais prestadores. As tarifas praticadas pelos prestadores das tipologias Autarquias e Administração Pública Direta, no grupo dos prestadores Locais, e pelas Organizações Sociais, no grupo dos prestadores Microrregionais, se mostraram estatisticamente mais baixas do que as praticadas pelas demais tipologias de prestadores.
Os resultados indicam deficiências no serviço de abastecimento de água dos municípios brasileiros, incapaz de cumprir de modo universal os objetivos de prevenir riscos à saúde, e de promover o bem-estar, a segurança e o conforto das pessoas. Os prestadores Locais das tipologias Autarquia e Administração Pública Direta, e a tipologia Empresa Pública do grupo de prestadores Regionais apresentaram melhor desempenho, atendendo as suas respectivas populações com consumos mais adequados ao cumprimento dos objetivos mencionados.
O estudo completo pode ser acessado aqui.
REFERÊNCIAS
Cheng, J. J. et al. An ecological quantification of the relationships between water, sanitation and infant, child, and maternal mortality. Environmental Health, janeiro de 2012, v.11, n. 4. Disponível em < https://ehjournal.biomedcentral.com/articles/10.1186/1476-069X-11-4#citeas>. Acesso em 16/07/2024.
Crouch, M.L.; Jacobs, H.E.; Speigth, V.L. Defining domestic water consumption based on personal water use activities. AQUA — Water Infrastructure, Ecosystems and Society, novembro de 2021, v.70, n. 7. Disponível em < https://iwaponline.com/aqua/article/70/7/1002/83539/Defining-domestic-water-consumption-based-on>. Acesso em 16/07/2024.
Heller, L. Os Direitos Humanos à Água e ao Saneamento. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2022. 620 p.
Howard, G. et al. Domestic water quantity, service level and health. World Health Organization, Genebra, 2nd Edition, 2020.
Stoler, J.; Guzma, D. B.; Adams, E. A. Measuring transformative WASH: A new paradigm for evaluating water, sanitation, and hygiene interventions. WIREs Water, junho de 2023, v. 10, n. 5. Disponível em < https://wires.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/wat2.1674>. Acesso em 16/07/2024.
[1] O SNIS encontra-se atualmente em transição para SINISA – Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico. Disponível em https://www.gov.br/cidades/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/saneamento/sinisa/sinisa-1, acesso em 08/07/2024.
[2] Atendidos apenas abastecimento de água, ou com abastecimento de água e com esgotamento sanitário.
[3] As tipologias categorizadas no SNIS estão descritas no estudo completo, cujo link para acesso se encontra ao final deste artigo.
*Alex M. S. Aguiar é membro do Conselho de Orientação do ONDAS.