Autores: Adauto Santos do Espírito Santo e Marcos Helano Montenegro*
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Nos últimos anos, a FUNASA apoiou a elaboração de cerca de 2.000 PMSBs (Planos Municipais de Saneamento Básico) em municípios de até 50.000 habitantes (cerca de 400 na BA, mais de 150 no CE, cerca de 100 no PI, cerca de 250 em MG, mais de 100 no PA, 65 em SE, dentre outros). As ações atingiram, portanto, pelos menos 35% dos municípios brasileiros. Um trabalho hercúleo, que só foi possível graças ao empenho de diversas universidades brasileiras e à dedicação de suas equipes. A qualidade do trabalho realizado pode ser comprovada pelas apresentações feitas no Simpósio Atuação Estratégica da Funasa: Inovações Metodológicas e Tecnológicas para PMSB, realizado no início de setembro passado, e disponíveis no Youtube. É importante destacar que todos os PMSBs tiveram intensa parceria com o poder público municipal além de forte participação da sociedade civil.
No entanto, todo este trabalho está sendo jogado, inacreditavelmente, na lata do lixo, desprezados nos processos de privatização dos serviços de água e esgoto que vêm ocorrendo em vários Estados. É o caso de Sergipe e Piauí. Nesses Estados, todos os PMSBs elaborados com o apoio da FUNASA foram integralmente ignorados nos documentos técnicos que são chamados Planos Regionais preparados para embasar os processos de privatização (concessão). O mesmo pode estar acontecendo em outros estados, o que implica no desprezo dos produtos resultantes da aplicação de recursos financeiros do erário federal.
No Estado do Piauí, somente com recursos da FUNASA, foram elaborados 100 PMSBs contemplando rigorosamente o conteúdo exigido pela legislação vigente. Entretanto, a elaboração do Plano Regional de Saneamento Básico (PRSB) adotado pelo governo estadual para o processo de privatização, ignorou todos os conteúdos desses planos locais. Os recursos aplicados na elaboração desses 100 PMSB foram da ordem de R$ 15 milhões.
Se a média dos custos de elaboração dos PMSB se igualar à média verificada no Piauí (R$ 15,0 milhões para 100 PMSB), os 2.000 PMSB apoiados pela FUNASA devem ter custado algo como R$ 300 milhões. É absurdo que os resultados de um esforço de tal magnitude estejam sendo integralmente ignorados nos processos de privatização.
Recapitulando a legislação e das modificações introduzidas para facilitar a privatização dos serviços
A Constituição Federal estabelece, no art. 21, XX, que é competência da União instituir diretrizes para o saneamento básico. Reconhecido como objeto de política pública, a importância do planejamento da prestação dos serviços públicos de saneamento básico elaborado com a participação direta dos interessados está consagrada na legislação federal.
Em 2007, a Lei 11.445/2007, o marco regulatório do saneamento básico instituindo as diretrizes exigidas na Constituição, estabeleceu, em seu artigo 9º, que o titular dos serviços deverá formular a respectiva política pública de saneamento básico, que deverá prever a elaboração de planos municiais de saneamento básico (PMSB), adotando parâmetros para a garantia do atendimento essencial à saúde pública, fixando os direitos e os deveres dos usuários e estabelecendo mecanismos se controle social e sistemas de informações sobre os serviços.
O artigo 11º desta lei estabelece as condições de validade dos contratos de prestação de serviços, exigindo a existência de plano de saneamento básico e de estudo comprovando a viabilidade técnica e econômica-financeira da prestação universal e integral dos serviços, dentre outras condicionantes. Esse artigo estabelece ainda que na prestação regionalizada, os planos de saneamento podem se referir ao conjunto de municípios por ela abrangidos. O Art. 17º estabelece que o serviço regionalizado de saneamento básico poderá obedecer a plano de saneamento básico elaborado para o conjunto de municípios atendidos.
Já o artigo 19º estabelece que a prestação de serviços públicos de saneamento básico observará Plano que poderá ser específico para cada serviço e fixa o conteúdo mínimo dos planos, que inclui diagnóstico, objetivos e metas, programas projetos e ações, ações para emergências e contingências e mecanismos e procedimentos para a avaliação sistemática da eficiência e eficácia das ações programadas.
Em seu artigo 51º a mesma Lei estabelece que o processo de elaboração e revisão dos planos de saneamento básico deverá prever sua divulgação em conjunto com os estudos que os fundamentam, o recebimento de sugestões e críticas por meio de consulta ou audiência pública e, quando previsto na legislação do titular, análise e opinião por órgão colegiado criado nos termos da citada lei. É estabelecido que a divulgação das propostas dos planos dar-se-á por meio da disponibilização integral de seu teor a todos os interessados, inclusive por meio da internet e por audiência pública. O artigo 52º encarrega a União de elaborar o Plano Nacional de Saneamento Básico – Plansab.
A Lei 14.026/2020, que alterou o marco regulatório do saneamento básico, introduziu importantes mudanças no artigo 17º da Lei 11.445/2007, fixando que as disposições constantes do plano regional de saneamento básico prevalecerão sobre aquelas constantes dos planos municipais, quando existirem, e que o Plano regional dispensará a necessidade de elaboração e publicação de planos municipais de saneamento básico e que esse plano regional poderá ser elaborado com suporte de órgãos e entidades das administrações públicas federal, estaduais e municipais, além de prestadores de serviços.
O artigo 19º da lei 11.445 também foi profundamente alterado, prevendo que os planos de saneamento básico serão aprovados por atos dos titulares e que os mesmos poderão ser elaborados com base em estudos fornecidos pelos prestadores de cada serviço, nada mais dispondo sobre a participação social. A nova redação estabelece que os planos deverão ser compatíveis com os planos das bacias hidrográficas e com planos diretores dos municípios em que estiverem inseridos, ou com os planos de desenvolvimento urbano integrado das entidades regionais por eles abrangidas. Fixa como prazo para a revisão periódica período não superior a 10 anos, quando na redação original esse prazo era de 4 anos, e dispõe ainda que municípios com população inferior a 20.000 habitantes poderão elaborar planos simplificados, com menor nível de detalhamento dos vários aspectos.
Por fim, no parágrafo único deste artigo, para facilitar as privatizações foi introduzida uma modificação abusiva, contraditória com o próprio conceito de plano, com o seguinte teor: “serão considerados planos de saneamento básico os estudos que fundamentem a concessão ou a privatização, desde que contenham os requisitos legais necessários.”
As consequências danosas
A “flexibilização” introduzida pela Lei 14.026.2020 no conteúdo e as formas de elaboração e aprovação dos planos de saneamento básico (sejam municipais, regionais, estaduais e até mesmo o nacional) gerou impactos substanciais no saneamento brasileiro, principalmente nos açodados processos de privatização dos serviços de água e esgotos, que estão ocorrendo.
Estão sendo montados documentos que não respeitam o conteúdo mínimo legal para um plano, mesmo simplificado, que são elaborados com informações secundárias e sem nenhuma preocupação com a situação da prestação de serviços de água e esgotos (diagnósticos) e sem nenhuma vinculação com os planos das bacias hidrográficas (impactos nos mananciais e corpos receptores) e planos diretores de ocupação urbana dos municípios (integração de ações de saneamento com propostas de expansões urbanas). Também ignoram a possibilidade de obtenção economias de escopo e escala em ações integradas nos quatro componentes do setor saneamento (água, esgotos, manejo das águas pluviais e drenagem e manejo dos resíduos sólidos e limpeza urbana).
Essa flexibilização não deveria significar o abandono dos planos municipais existentes. O prevalecimento das disposições constantes dos planos regionais sobre aquelas constantes dos planos municipais não deveria implicar em ignorar o conteúdo dos planos municipais existentes.
A universalização canhestra da privatização: os exemplo do Piauí e de Sergipe
A Lei 14.026 introduz outra mudança canhestra nas diretrizes para elaboração dos planos municipais, estaduais e regionais). A Lei 11.445/2007 dispunha originalmente que tais planos fossem elaborados para a universalização dos serviços de saneamento básico, ou seja, contemplando o atendimento de 100% das populações residentes nos municípios, estados ou regiões. A Lei 14.026/2020 adotou como conceito de universalização o atendimento de 99% para água e 90% para esgotamento sanitário da população residente da área de estudo, ou seja, da área de concessão, e não mais da integralidade dos município ou do conjunto de municípios. Ou seja, os PMSBs ou PRSBs, segundo a Lei 14.026/2020, podem ser elaborados para atenderem a partes do território dos municípios e assim a universalização proposta não corresponde mais à totalidade do município, conforme era estabelecido na Lei 11.445/2007.
O Plano Regional elaborado para a privatização do saneamento do Piauí (Edital 02 da CP No 01/2024/SEAD) traz municípios em que a população residente da área de concessão é inferior à população atendida segundo o SNIS (mesmo ano de referência do PRSB), entre os quais os municípios de Alegrete do Piauí, Alvorada do Gurguéia, Antônio Almeira, Aroazes, Avelino Lopes, Cristalândia do Piauí, Curral Novo do Piauí, e inúmeros outros. Em outros municípios, a população da área de concessão é inferior a 40% da população residente, caso das cidades de Acauã – 32,94%, Alagoinha do Piauí – 47,28%, Antônio Almeida – 26,43%, Bela Vista do Piauí – 33,00%, Bonfim do Piauí – 33,35%, Brejo do Piauí – 49,41%, Cabeceiras do Piauí – 23,39%, Campinas do Piauí – 47,43%, Cristalândia do Piauí – 41,78%, Curral Novo do Piauí – 28,33%, Dirceu Arcoverde – 35,58%, e de inúmeros outros. E serão atendidos, com água, 99% dessas populações e, com esgotamento sanitário, 90%. A Lei 14.026/2020 permite não considerar o território integral dos municípios mas apenas as áreas de interesse para viabilizar a prestação dos serviços.
Outra aspecto que chama atenção pela inadequação no edital de concessão do Estado do Piauí é que a população atendida (com água em 2021 – SNIS) é de 1.633.779 habitantes, enquanto a população residente na área de concessão no ano 1 é de 1.855.158 habitantes. Ou seja, a população da área de concessão é apenas 221.379 habitante maior que aquela já atendida em 2021 (Destaca-se que se pretende atender a 99% da população de concessão). A população prevista como atendida no ano 35 de concessão é de 1.651.041 habitantes, ou seja, apenas 17.262 habitantes a mais do que os atendidos no ano 1 de concessão. A maioria da população não atendida com água continuará não sendo atendida com a privatização proposta.
É grave que os planos regionais usados nas privatizações estejam sendo elaborados por meio de informações secundárias, sem visitas de campo para a maioria dos municípios, sem caracterização adequada dos sistemas existentes, sem definição de prognósticos apropriados e sem qualquer participação social. Tais planos não apresentam parâmetros de projetos específicos para cada município nem estimam adequadamente as demandas de água, nem as gerações de esgotos. Não levam em consideração as especificidades das áreas, por exemplo, no PRSB do Piauí e de Sergipe nada foi apresentado com relação a medidas de emergências e contingências, apesar dos dois estados contarem com boa parte de seus territórios no semiárido brasileiro onde há forte restrições de fornecimento de água que vem exigindo contemplar soluções alternativas como cisternas e utilização de caminhões pipa.
As deficiências dos PRSBs incluem as situações em que os seus conteúdos apresentam significativas divergências com os conteúdos dos PMSBs apresentados na mesma documentação incluída na licitação de privatização. Na recente privatização da DESO/SE, o PRSB apresentou inúmeras falhas de conteúdo, bem como inconsistências gravíssimas com relação aos apêndices que o compõe. Neste caso, graves inconsistências também foram encontradas no Planos de Negócios de Referência (PNR) e no Estudo de Viabilidade Técnica e Econômica Referencial (EVTE) que também compõem a documentação anexa ao Edital da privatização dos serviços.
São exemplos das inconsistências encontradas no caso de Sergipe e também no caso do Piauí a superestimativa de receitas de água e esgotos, a subestimativa de despesas de operação e manutenção, a subestimativa de investimentos de ampliação, bem como de reposição. Chama atenção a não disponibilização da integralidade das informações durante as consultas públicas, de modo a proporcionar credibilidade do processo. São observados erros grosseiros nos documentos, que demonstram um total descompromisso com os seus conteúdos (um exemplo absurdo no conteúdo do PRSB de Sergipe que na versão da consulta pública informou uma extensão de 361 mil km de extensão de linhas de recalque e na versão do PRSB do Edital, esse número foi revisado e o ampliado para 412 mil km de extensão).
Em suma, viabilizar a prestação privada é a prioridade
Tudo indica que o que vem ocorrendo pelo país afora é a construção de modelos de negócios que permitam viabilizar a privatização dos serviços de água e esgotos e não equacionar a universalização dos atendimentos. Por isso, a área de concessão é aquela que possa gerar interesse dos atores privados.
Para viabilizar a privatização dos serviços, a elaboração de planos municipais e regionais para a área da pretendida concessão ignora a integralidade do conteúdo dos planos municipais existentes, mesmo que muitos deles já tenham sido adotados por leis municipais. A não consideração de seus conteúdos evita mostrar que essas exclusões foram efetuadas de maneira deliberada.
O processo de privatização do setor saneamento promovido no país, inclusive nos casos apoiados pelo BNDES, não tem interesse e nem busca a verdadeira universalização (atendimento a 100% da população residente do município), mas se justifica com a farsa de uma universalização que exclui boa parte daqueles que já não são atendidos, considerando a situação atual.
Não é por acaso que nas modelagens que embasam os processos de privatização não citam ou utilizam o Programa Nacional de Saneamento Rural (PNSR) elaborado pela FUNASA com o apoio de universidades brasileiras, ou os Atlas de Água e Esgotos elaborados pela ANA (que se limitam às áreas urbanas), importantes referências técnicas disponíveis nos sites dessas instituições. Esses estudos apresentam avaliações específicas para as realidades de cada município.
Certamente são populações não atendidas atualmente com água e esgotos que vem sendo excluídas deliberadamente dos modelos de privatização, ou seja, aquelas que, certamente, não apresentam viabilidade econômica para o atendimento considerando os modelos de prestação de serviços e os arranjos institucionais convencionais, e que vão exigir a construção de novas formas de atendimento. Os custos para o atendimento dessas populações, bem como das construções desses novos arranjos e modelos de prestação de serviços ficarão a cargo do poder público ou dessas próprias populações.
Assim, a parcela da prestação de serviços que dá lucro encherá os bolsos das empresas vencedoras dos processos licitatórios. A outra parcela, a que não possibilita lucro, que corresponde às populações hoje não atendidas ou precariamente atendidas, continuará marginalizada ou terá o custo da prestação de serviços arcados pelo erário (melhor dizer, pelo contribuinte). O processo de privatização dos serviços no Estado do Amapá é um exemplo desta situação flagrantemente injusta e imoral.
Como se vê, algumas questões importantes permanecem sem respostas.
Como serão atendidas as populações não inseridas nas áreas de concessão? Quem serão os responsáveis pelas elaborações dos planejamentos para seus atendimentos? Quem serão os responsáveis pela prestação dos serviços de água e esgotos nessas áreas?
*Adauto Santos do Espírito Santo e Marcos Helano Montenegro são Engenheiros civis e membros do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento – ONDAS.