ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS - Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Coronavírus: reflexões acerca da pandemia global e sua relação com o direito à água e ao esgotamento sanitário

Artigo publicado originalmente no Observatório das Metrópoles, em 2/4/2020
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Suyá Quintslr¹

Ana Lúcia Britto²
Mariana Dias³

Foucault, em aulas proferidas no Collège de France, nos traz alguns insights importantes para pensarmos os efeitos, no longo prazo, de grandes epidemias, como a do novo coronavírus (COVID-19). Para o autor, uma das grandes inovações do século XVIII foi a forma desenvolvida para lidar com a peste: um modelo baseado na informação, inspeção, vigilância e controle da população – “O momento da peste é o momento do policiamento exaustivo de uma população por um poder político […]” (Foucault, 2010, p. 40).

Naquele modelo – também denominado como “modelo de inclusão da peste”, em contraposição ao modelo de exclusão da lepra –, que incluía a instituição da quarentena em diversas cidades europeias, teria ocorrido a emergência de tecnologias positivas de poder. A conduta frente à doença deveria incluir, agora, não apenas mecanismos negativos de repressão, mas mecanismos positivos de produção do saber como condição para a multiplicação dos efeitos de poder. As implicações para a democracia são claras. Entretanto, buscaremos argumentar aqui que a pandemia atual do coronavírus (COVID-19) também tem o potencial de ser mobilizada em favor da democratização de certos serviços urbanos.

As epidemias dos séculos XVIII e XIX geraram efeitos diversos, que vão além da emergência de tecnologias positivas de poder e fortalecimento do biopoder. A impossibilidade das elites se protegerem de doenças antes do surgimento da penicilina e de outros avanços da medicina moderna gerou também certo consenso sobre a necessidade de levar saneamento para as mais diversas áreas da cidade – incluindo aquelas habitadas pelas classes trabalhadoras – independentemente da capacidade de pagamento dos usuários. Até então, como relatam diversos autores, os serviços eram prestados por companhias privadas e restritos às áreas nobres das cidades. Segundo Swyngedouw, Kaika e Castro (2016), este modelo de provisão restrita e estratificada, que predominou até meados do século XIX, constituiu a primeira etapa histórica da provisão de água nas cidades.

A ele seguiu-se a municipalização dos serviços e a expansão das redes no tecido urbano, motivada pelos problemas ambientais e sanitários da cidade industrial e apoiada pelas elites locais, que também eram afetadas pela degradação das condições sanitárias. De acordo com Barraqué e Zandaryaa (2011), foi nesse contexto que ocorreu a ampliação das redes de água e esgoto na Europa, capitaneada pelos poderes públicos municipal e nacional e financiadas por tributos arrecadados das elites. Contando com esses recursos, a rentabilidade com o fornecimento dos serviços se tornou uma preocupação secundária (Swyngedouw, Kaika e Castro, 2016). Assim, os sistemas de abastecimento de água se consolidaram aos poucos, expandindo a cobertura doméstica integrada a um sistema de esgotamento sanitário, com disposição final adequada para as normas ambientais vigentes, mesmo que ainda sem tratamento.

Esta preocupação manteve-se presente no entre guerras, quando se inicia, nos países do Norte⁴, a estruturação de um modelo de Estado de Bem-Estar Social que buscava assegurar, ao mesmo tempo, as condições de reprodução do capital e da força de trabalho, garantindo investimentos e organizando a gestão dos meios de consumo coletivos. Os investimentos dos governos centrais para a melhoria dos sistemas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário se ampliaram, tornando-se essenciais para a construção de serviços universais.

Uma nova etapa, inaugurada na década de 1970, é caracterizada pela retomada do papel da iniciativa privada na provisão de serviços de saneamento. Ainda assim, em muitos países os serviços permaneceram majoritariamente públicos.

No Brasil, o saneamento das capitais inicia-se também a partir de um modelo restrito e com redes implantadas, a partir da segunda metade do século XIX, por empresas de capital estrangeiro. O aumento da população e o adensamento das cidades afetaram fortemente a salubridade ambiental e a saúde da população. Nesse contexto, surgiu, entre as classes sociais mais abastadas, o debate pautado na teoria do contágio e, decorrente deste, a defesa da existência da interdependência sanitária, ganhando destaque a premissa de que o microrganismo transmissor da doença seria democrático, escolhendo suas vítimas indistintamente (Hochman, 1998; Lira Neto, 1999, apud, Britto, Rezende, 2017, p.559).

De forma semelhante ao que ocorreu nos países do Norte, a incapacidade desse modelo de provisão atender satisfatoriamente a totalidade das cidades, fez com que o poder público assumisse a gestão dos serviços de saneamento, levando à criação dos serviços públicos municipais. A mudança mais significativa na gestão dos serviços no Brasil vem com o modelo do Planasa, adotado pelos governos militares, que criam as Companhias Estaduais de Saneamento e impõe critérios de investimento orientados pela taxa de retorno, privilegiando investimentos destinados a atender a demanda dos setores produtivos, deixando desassistidas as populações mais pobres.

Barraqué (2005), ao comentar as políticas de abastecimento de água e esgotamento sanitário nos países do Sul, mostra que, ao contrário da Europa, uma efetiva política pública, pautada em princípios do Estado de Bem-Estar social e voltada para a universalização do acesso nunca ocorreu. Outra hipótese levantada pelo autor é de que os avanços da medicina moderna tornaram o tratamento para diversas doenças de veiculação hídrica acessível às classes médias urbanas, o que teria minado sua motivação para financiar a expansão das redes para as áreas habitadas por grupos mais vulneráveis (Barraqué e Zandaryaa, 2011).

Assim, grande contingente populacional nas periferias urbanas e favelas do Brasil e do Sul Global permanece, atualmente, sem acesso à água potável em quantidade e qualidade desejáveis. Como, então, seguir a principal recomendação para se proteger do coronavírus: lavar as mãos por, pelo menos, 20 segundos?

O que importa aqui, para nossa argumentação, é a passagem, na Europa, do modelo de provisão restrita para o modelo de gestão que viabilizou a universalização do saneamento como medida fundamental de saúde pública. Em outras palavras, buscamos refletir sobre o potencial do coronavírus para gerar o mesmo tipo de solidariedade urbana provocado pelas epidemias do século XIX: estariam nossos ‘super ricos’, ricos e classes médias urbanas dispostos a financiar redes de saneamento para aqueles que não podem pagar?

Desde o primeiro diagnóstico do coronavírus (COVID-19) no Brasil, instalou-se nas redes sociais um debate sobre ser ele “democrático” ou não. Estão todas(os) igualmente expostos ao risco? Quem pode se dar ao luxo do autoisolamento? Como cumprir a principal recomendação – lavar as mãos e antebraços por 20 segundos – quando não se tem acesso à água potável?

Parece-nos inegável o fato de que os mais vulneráveis econômica e socialmente serão os mais impactados pela epidemia. Entretanto, não é possível negligenciar os efeitos que um vírus que se propaga de forma tão eficaz quanto uma gripe tem sobre grupos economicamente favorecidos e sobre seus estilos de vida. Restrições a viagens nacionais e internacionais, fechamento de cinemas, museus, teatros e restaurantes, cancelamento de compromissos de trabalho – tudo isso tem impacto sobre a vida comum da cidade.

Estas restrições, impostas devido ao coronavírus, podem contribuir para que o acesso aos serviços de saneamento seja considerado uma medida de saúde pública fundamental, com consequências para todas as categorias sociais? Se assim for, temos a nossa frente uma oportunidade para que sejam, finalmente, estabelecidos (efetivados, não apenas reconhecidos no plano formal) o direito humano à água e ao esgotamento.

Esse direito, reconhecido pela ONU desde 2010, determina que todos devem ter acesso a esses serviços: água e esgoto devem ser providos com qualidade e sem qualquer tipo de discriminação – o que implica que eles sejam financeiramente acessíveis. Igualmente, obriga os Estados a eliminarem progressivamente as desigualdades de acesso – desigualdades entre populações rurais e urbanas, entre áreas de ocupação formal e informal, entre ricos e pobres. O Brasil é signatário das resoluções da ONU que reconhecem o direito à água e ao saneamento. Entretanto, existem ainda mais de 12 milhões de pessoas sem acesso à água e cerca de 18 milhões sem esgoto no país (Brasil, 2013).

Quando se observa a realidade dos assentamentos precários, onde parte das pessoas vive em condições de extrema pobreza, verifica-se que esse direito só poderá se viabilizar mediante a garantia do acesso a um volume básico de água gratuito para os moradores. A expansão das redes para essas áreas e o fornecimento de um volume mínimo, que garanta a saúde e higiene da população, deverá, portanto, ser viabilizado por um forte sistema de subsídio cruzado.

Assim, a pandemia atual coloca em questão as políticas neoliberais e traz de volta a necessidade de um Estado do Bem-Estar Social estruturado, orientando políticas públicas como as de saúde e saneamento básico. Isso depende, entretanto, da narrativa que sair vitoriosa da crise ora instaurada. Será ela mobilizada pelos governos para acirrar os controles sobre a população, como Foucault argumenta no modelo de vigilância da peste, para viabilizar a privatização de empresas públicas, alienando bens públicos para gerar recursos financeiros para seu enfrentamento, como propôs recentemente o Ministro da Economia, ou ela poderá ser um instrumento para a construção de um consenso em torno da necessidade de políticas e financiamentos públicos para melhoria das condições sanitárias da cidade e da democratização dos serviços de interesse comum?

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¹ Professora no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). Pesquisadora do Observatório das Metrópoles.

² Professora no Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (PROURB/UFRJ). Pesquisadora do Observatório das Metrópoles.

³ Pesquisadora bolsista do Observatório das Metrópoles.

Aqui nos referimos aos países capitalistas da Europa Ocidental e da América do Norte.

REFERÊNCIAS

BARRAQUÉ, Bernard. Eau (et gaz) à tous les étages: comment les Européens l’ont eue, et comment le Tiers Monde pourrait l’avoir?. Séminaire IDDRI, v. 14, 2005.

BARRAQUÉ, Bernard e ZANDARYAA, Sarantuyaa. Urban Water Conflicts: background and conceptual framework. 2011. In: BARRAQUÉ, Bernard (Ed.). Urban water conflicts. UNESCO, 2011.

BRASIL, 2013. Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB). Ministério das Cidades, 2013.

BRITTO, Ana Lucia; REZENDE, Sonaly Cristina. A política pública para os serviços urbanos de abastecimento de água e esgotamento sanitário no Brasil: financeirização, mercantilização e perspectivas de resistência. Cadernos Metrópole, v. 19, nº 39, 2017.

FOUCAULT, Michel; MARCHETTI, Valerio; SALOMONI, Antonella. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). Martins Fontes, 2010.

SWYNGEDOUW, Erik; KAÏKA, Maria; CASTRO, José Esteban. Agua urbana: una perspectiva ecológico-política. WATERLAT-GOBACIT Network Working Papers Thematic Area Series, v. 3, nº 7, 2016.

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