autores: Aercio Barbosa de Oliveira e Caroline Santana*
Publicado originalmente pelo site Fase em 1 de agosto de 2023
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Pegamos, despudoradamente, carona no verso da música Notícia de Jornal do compositor Chico Buarque de Holanda para abordar a situação do serviço de abastecimento de água e tratamento de esgoto da região metropolitana fluminense, e como o tema tem aparecido na imprensa corporativa.
Na quarta-feira, 26 de julho de 2023, um jornal impresso, de grande circulação, do estado do Rio de Janeiro, publicou Caderno Especial Saneamento. Na primeira página, destacam que, três anos após a aprovação do marco de saneamento, aumentou o número de pessoas com acesso à água e com o esgoto tratado. A realidade, infelizmente, não é bem assim. A edição da Lei nº 14.026/2020, não é exatamente o novo marco de saneamento. Na verdade, ela altera substancialmente a Lei nº 11.445/2007, o Marco Legal de Saneamento, para facilitar a vida dos agentes do mercado financeiro e congêneres. Subjazem à Lei 14.026/20 dois princípios fundamentais: (i) o de que água é mercadoria e (ii) somente o mercado universalizará os serviços de saneamento. E, para mostrar o quanto a matéria é tendenciosa, ainda não há dados consistentes para assegurar que o serviço foi ampliado com qualidade.
Assim, com a Lei 14.026/2020, os agentes econômicos privados encontraram facilidades, que chamam tecnicamente de “segurança jurídica”, para adquirir empresas públicas de saneamento por uma pechincha e poder contar com empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Empréstimos com juros que um querido pai cobraria do amado filho. Lembremos, o BNDES tem participação no capital da empresa Iguá, que opera os serviços no Rio de Janeiro, e foi o banco responsável pela modelagem dos leilões, inclusive o da Companhia Estadual de Água e Esgotos do Estado do Rio de Janeiro (CEDAE), com flagrante conflito de interesse apontado, durante os meses que antecederam o certame, por movimentos e organizações sociais, e instituições de pesquisa[1]. Nesse mesmo jornal, lê-se que, desde 2020, foram realizados 28 leilões de concessões dos serviços de saneamento e estão previstos quase 30 até 2026. No mesmo suplemento especial, encontramos em uma das páginas a manchete “Estrangeiros de Olho no Brasil”. Nela, a reportagem evidencia parte do interesse do capital financeiro nos serviços de água e tramento de esgoto. Destaca a presença dos Fundos de Investimentos no controle do capital das concessionárias Águas do Rio e Iguá, ambas operam no estado do Rio de Janeiro. A matéria não menciona a operadora Águas do Brasil, que também atua no estado do Rio de Janeiro e tem entre seus controladores fundos de investimento.
A matéria do jornal também não noticia os milhares de problemas causados pela privatização dos serviços de saneamento nos 46 municípios do estado do Rio de Janeiro, onde as concessionárias começaram a operar a partir do final de 2021. De acordo com os dados do Procon-RJ[2], as queixas dos usuários dos serviços oferecidos pela concessionária Águas do Rio tiveram um aumento 564% desde o início de 2022. A Águas do Rio opera em 26 municípios, incluindo cidades da Baixada Fluminense e bairros da capital do estado, que formam os blocos de municípios 1 e 4. As principais reclamações foram o aumento das contas, onde, muitas delas chegam a dobrar.
Nas cidades da Baixada Fluminense, conjunto de municípios da RMRJ, a realidade mudou muito pouco. A água chega irregularmente e o esgoto raramente é tratado. Com as concessões às operadoras privadas, se acrescentou, para milhares de famílias, a cobrança regular de um serviço que continua precário ou inexistente. Os abusos cometidos pelas concessionárias são variados. Temos conhecimento de casos em que mesmo a residência sem hidrômetro instalado, a família recebe mensalmente a fatura para pagar, com o valor de consumo estimado exorbitante. Há situações cujo morador não tem hidrômetro instalado, não recebe a fatura, mas a cobrança chega via o SMS do celular, mesmo sem autorização. Verifica-se pelas ruas das cidades intensa movimentação para instalar ou trocar hidrômetros. O morador paga pela instalação e passa a ter o aumento da conta.
O hidrômetro parece operar na velocidade do mercado de capitais. Se neste, cada segundo vale ouro, com os novos hidrômetros cada gota sai ao preço de ouro. É o “ouro azul”, segundo o “mercado”. Basta considerar que, conforme o contrato de concessão, as operadoras pagam à CEDAE pela água bruta R$1,70/m³, e cobram da população, no mínimo, cerca de 3 vezes esse valor. Dependendo da faixa de consumo, esse valor pode chegar a quase R$10,00/m³. É um ganho imenso, com pouco esforço, pois boa parte do sistema de abastecimento de distribuição de água já estava instalado e funcionando, quando foi realizado o leilão. Além de equipes para instalar hidrômetros, a concessionária Águas do Rio, tem equipes que vão às residências cobrar as contas atrasadas. Eufemisticamente, a concessionária divulga em sua página da internet que “para facilitar a vida dos clientes oferecem oportunidades de negociação”.
Famílias que antes da privatização não pagavam ou se beneficiavam com a tarifa social, passaram a comprometer quase 5% do salário mínimo com o pagamento da tarifa social que chega a R$45,30, mensalmente, em cobrança da água e o “tratamento do esgoto”. Conforme o contrato de concessão, as operadoras são obrigadas a assegurar tarifa social para no máximo 5% dos domicílios cadastrados. No início de 2023, no estado do Rio de Janeiro, 3,4 milhões de famílias estavam inscritas no CadÚnico. Dessas, 2,2 milhões estão em situação de extrema pobreza – contam com uma renda mensal por pessoa de, no máximo, R$ 100. Muitas dessas famílias são moradoras de “áreas de interesse social” e não eram cobradas pela água e, muito provavelmente, nenhum acesso à rede de esgoto tratado. Pode-se imaginar o quanto as dificuldades para essas pessoas viverem foram agravadas, com a cobrança de R$45,30 mensalmente. E ainda contam com os obstáculos burocráticos para acessarem esse tipo de tarifa.
A Rede de Vigilância Popular em Saúde e Saneamento[3], na qual participamos, tem sido um importante espaço formado por organizações, movimentos sociais e instituições de pesquisa. Nas reuniões da rede chegam denúncias de diversas violações ao direito à água e ao saneamento cometidas pelas concessionárias.
Por fim, há muitos pontos que precisamos aprofundar, que exigem atenção e pressão de quem defende a água como um bem comum, e é contra a privatização de empresas públicas de saneamento. Além das questões sentidas diretamente pela população, há tantas outras que precisam chegar à luz do dia. Esse é o caso, por exemplo, dos recursos provenientes da outorga variável[4], cujas operadoras, conforme o contrato de concessão, são obrigadas a destinar parte do valor das tarifas cobradas ao município onde prestam o serviço e ao Fundo de Desenvolvimento da Região Metropolitana. Quantos milhões de reais já foram passados aos municípios? Como o município gasta esse dinheiro? As mesmas questões valem para o Fundo de Desenvolvimento da Região Metropolitana, que está sob a gestão do Instituto Rio Metrópole. Temos muitas outras perguntas que merecem respostas urgentes, como é o caso do plano de investimento das concessionárias.
Será que precisaremos sofrer durante décadas, igual à população de países como Reino Unido, França, Argentina, entre outros, que voltaram a reestatizar o serviço de saneamento, após verem as concessionárias e empresas privadas de saneamento desprezarem o interesse público para garantirem os ganhos de seus acionistas e seus CEOs?
Os sinais dados pela mídia corporativa das nossas paragens é de que, a dor, as dificuldades e bloqueios do acesso e tantas outras condições provocadas pela ganância dos que olham para a água como fonte de acumulação de riqueza e renda ficarão fora do noticiário. Por isso, a nossa mobilização para divulgar tantos descalabros provocados por essas concessionárias, que violam o direito humano à água e ao saneamento.
[1] Ver artigo de César Silva Ramos e Ana Lúcia Britto disponível em: < https://outraspalavras.net/crise-brasileira/face-oculta-da-privatizacao-das-aguas/>. Acesso em: 1 de agosto, 2023. Ver reportagem do SIDSPREV/RJ, disponível: < https://sindsprevrj.org/entidades-denunciam-fraude-no-leilao-da-cedae-do-qual-o-btg-de-paulo-guedes-participou/>. Acesso em: 1 de agosto. 2023.
[2] Disponível em: <https://www.alerj.rj.gov.br/Visualizar/Noticia/56014#:~:text=De%20acordo%20com%20os%20dados,alguns%20casos%2C%20chegou%20a%20dobrar>. Acesso em: 1 de agosto. 2023.
[3] Ver carta da rede disponível em: <https://sindsprevrj.org/entidades-denunciam-fraude-no-leilao-da-cedae-do-qual-o-btg-de-paulo-guedes-participou/>. Acesso em: 1 de agosto. 2023
[4] Ver item 1.2.49 do edital de concorrência internacional nº01/2020 disponível em: <file:///C:/Users/Aercio/Desktop/documentos%20importantes%20trabalho%20FASE%20di%C3%A1rio/documentos%20concess%C3%A3o%20saneamento/Edital%20da%20concess%C3%A3o/EDITAL.pdf>. Acesso em: 1 agosto. 2023.
*Aercio Barbosa de Oliveira é coordenador da FASE RJ e mestre em filosofia na UERJ; Caroline Santana é educadora da FASE RJ e doutoranda do Serviço Social da UFRJ.