Autor: Sandoval Alves Rocha*
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O Censo de 2022 expõe o mapa do saneamento brasileiro, mostrando que ainda precisamos muito evoluir para alcançarmos um nível aceitável de respeito ao ser humano e ao meio ambiente. No maior bioma tropical do planeta, essa informação pode parecer estranha, mas trata-se de uma realidade vivida diariamente nas cidades e florestas amazônicas. A violência contra as pessoas e a biodiversidade da região também é praticada através da falta de saneamento básico.
O último recenseamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE 2022) revela que 6 milhões de pessoas vivem sem água tratada no Brasil e 49 milhões de brasileiros vivem em lares sem redes de esgoto. Esta agressão é vivenciada de forma mais dramática nas regiões norte e nordeste, tornando visível a desigualdade estrutural que configura o país.
No nordeste, somente 41,2% da população possui esgotamento sanitário. Já no norte, apenas 22,8% da população possui este serviço. No que diz respeito ao abastecimento de água, no nordeste, somente 76,3% da população tem acesso à água potável e na região norte, apenas 55,7% acessa as redes de abastecimento.
Há ainda um agravante nesta situação. Não basta contabilizar o percentual da população ligada à rede de abastecimento de água. Se formos considerar a qualidade destes serviços, teríamos uma situação ainda pior. Há evidencias muito fortes da precariedade da regulação de tais serviços, tornando tais estatísticas superestimadas e pouco confiáveis.
Esta desigualdade é notável quando consideramos marcadores como idade, classe e raça. Segundo o mesmo Censo, jovens, pretos, pardos e indígenas são os que menos têm acesso ao saneamento básico. Cerca de 83,5% da população brasileira que se declara branca mora em locais com estrutura adequada de saneamento. Entre os que se declaram preto, o percentual é de 75%. Entre os pardos, 68,9%. Já entre os indígenas, o percentual é de apenas 29%.
O racismo enraizado na sociedade brasileira é notório, mas também visível o lamento de uma sociedade que precisa se transformar, vivendo em concreto a ética que é proclamada copiosamente em discursos verde-amarelos com tendências autoritárias e antidemocráticas.
No ranking das unidades federativas, o Amazonas está entre os piores estados, ocupando a 23ª posição no abastecimento de água pela rede geral. Somente 66% dos domicílios particulares permanentes ocupados (713.550) possuem ligação à rede geral. Manaus está na 21ª posição entre as capitais, com 76,2% dos domicílios ligados à rede geral. Um péssimo desempenho para uma cidade cujos serviços são privatizados.
Estas informações questionam a eficiência da privatização do saneamento, realizada em Manaus no ano 2000. As expectativas geradas pelo processo de privatização se encontram frustradas, exigindo dos poderes públicos maiores esforços para que a concessão cumpra as metas projetadas. Ao que parece a privatização do saneamento foi realizada para sermos os piores, ocupando invariavelmente as ultimas colocações no ranking dos estados e capitais. Falta fiscalização e responsabilidade. Na verdade, falta democracia na gestão dos serviços. Algo que o mercado não pode oferecer.
Depois de duas décadas e meia de concessão – 24 anos – há evidências irrefutáveis de que a privatização não veio para melhorar a vida da população, mas somente aquecer o mercado, beneficiando as empresas que por aqui passaram: Lyonnaise des eaux, Solví, Águas do Brasil e Aegea Saneamento. Transformaram água e serviços essenciais em moedas de troca, ignorando o mais importante, que é o bem da população.
Estas empresas estabeleceram um regime de exclusão e precariedade em que muitos cidadãos são expulsos do sistema (ou nem chegaram a entrar) por possuírem baixo poder de pagamento e outros tantos são submetidos a serviços deficitários. Se a precariedade dos serviços públicos era uma condição que buscávamos superar, o regime empresarial do saneamento a transformou em algo natural, impondo situações humilhantes às populações.
O novo Censo voltou a ostentar a desigualdade brasileira. A experiência de Manaus mostra que o mercado do saneamento não vai reduzir esse fenômeno, mas consolidá-lo mais ainda, perpetuando a pobreza e a precariedade como um modo de vida imposto.
* Sandoval Alves Rocha é doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre em Ciências Sociais pela Unisinos/RS, bacharel em Teologia e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE, MG), membro da Companhia de Jesus (jesuíta), associado do ONDAS, trabalha no Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares), em Manaus.