Texto produzido no âmbito do Centro de Estudos do Saneamento Além do Domicílio (CESAD – iniciativa ONDAS e SMARH/UFMG)
Redação: Paula Rafaela Silva Fonseca, Bárbara Barra, Maiara Macedo Silva
Contribuições: Fernanda Deister e Washington Lima
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Os direitos humanos à água e ao saneamento (DHAS) são cruciais para garantir a dignidade e o bem-estar de todos os indivíduos. O reconhecimento desses como direitos humanos essenciais ao pleno gozo da vida e de outros direitos, ocorreu em 2010 durante Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) por meio da Resolução A/RES/64/292 (UNGA, 2010). Em 2019, foi publicado o relatório A/HRC/42/47 que aborda as lacunas do acesso à água e ao saneamento para esferas além do domicílio, que incluem escolas, hospitais e centros de saúde, locais de culto, campo de refugiados, edifícios públicos, ruas, parques e presídios (HELLER, 2019, p. 3).
Sobre os presídios no Brasil, os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam o total de 815.165 pessoas encarceradas em 2021, representando a terceira maior população carcerária do mundo. Devido às deploráveis condições de aprisionamento dessas pessoas: prática de tortura, homicídios, espancamentos, violência sexual, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida intragável, e falta água potável e de produtos higiênicos básicos, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a teoria do Estado de Coisas Inconstitucionais (ECI) como uma ferramenta de proteção dos direitos humanos nas prisões, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 (ADPF 347). O relator da Arguição, no STF, Ministro Aurélio Mello, declarou a superlotação e as condições degradantes do sistema prisional incompatíveis com a legislação brasileira e com os direitos fundamentais da pessoa humana, além de atos omissivos de natureza normativa, administrativa e judicial dos Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal (BRASIL, 2015).
O entendimento apresentado no ECI no sistema prisional brasileiro corrobora com as “Regras mínimas padrão das Nações Unidas para o tratamento de prisioneiros”, adotadas pelos países signatários da ONU em 2015, e que é conhecida como Regras de Mandela. O Brasil, mesmo sendo signatário de pactos internacionais e tendo, em seus marcos legais, a garantia das condições de respeito à dignidade das pessoas privadas de liberdade, ainda ameaça os direitos humanos, com a superlotação carcerária, e a precarização das condições de vida e higiene, submetendo as pessoas presas a ambientes insalubres. Essa situação demonstra potenciais violações do Artigo 5º da Constituição Federal, o qual garante a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança, determinando que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante, e assegurando aos presos o respeito à integridade física e moral (BRASIL, 1988). Além disso, há o descumprimento do Artigo 12, da Lei de Execução Penal, que estabelece assistência material com o fornecimento de instalação higiênicas.
Nesse sentido, cabe trazer ao debate a abordagem dos direitos humanos à água e ao saneamento para pessoas em privação de liberdade, tendo em vista que violações desses direitos são praticadas pelo Estado. A exemplo, pode-se mencionar a intermitência no fornecimento de água, que foi identificada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2012, em prisões de todo o país. Os Relatórios do Mecanismo Nacional de Proteção e Combate à Tortura (MNPCT), publicados entre 2015 e 2021 também relatam diversas situações em que os elementos normativos dos DHAS são violados, como celas sem banheiro, presos precisando urinar em garrafas PET, água para banho sendo liberada apenas duas vezes ao dia por 10 minutos e irregularidade na distribuição de insumos básicos de higiene, como sabonete e papel higiênico. Com relação às necessidades específicas das mulheres, por exemplo, muitas vezes foi observada a falta de assistência material no suprimento de absorventes íntimos e de condições mínimas de higiene no período menstrual. Este fato, vai contra as Regras de Bangkok, que dizem respeito ao primeiro marco normativo internacional sobre a problemática da igualdade de gênero no sistema de justiça.
A ONU estabeleceu os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) para alcançar a Agenda 2030, a fim de garantir a erradicação da pobreza, proteger o meio ambiente e o clima. O ODS 6 tem como objetivo assegurar a disponibilidade da água e saneamento para todas e todos, e possui metas específicas para a universalização e acesso equitativo à água potável segura, bem como para garantir o acesso ao saneamento e higiene adequados a todos, eliminando a defecação a céu aberto, o que inclui especial atenção para as necessidades das mulheres e meninas e daqueles em situações de vulnerabilidade. Embora essas metas não mencionem explicitamente a população carcerária, o princípio subjacente dos ODS são de que esses direitos fundamentais devem ser garantidos a todas as pessoas, sem discriminação.
Além disso, ao implementar os ODS, os países necessitam abordar as disparidades de grupos vulneráveis, incluindo pessoas em instituições de detenção. Portanto, o acesso à água potável e ao saneamento para a população carcerária pode ser considerado como parte integrante dos esforços para alcançar as metas relacionadas a esses direitos.
Diante deste contexto, o Estado das Coisas Inconstitucionais no Brasil aponta para omissão das autoridades no que diz respeito à população carcerária. Assim, o poder público precisa garantir o cumprimento dos direitos humanos a todas, de forma não discriminatória, incluindo essa população. E, de acordo com a Constituição Federal, garantir o acesso aos itens de higiene, o acesso à água e ao saneamento, bem como o cumprimento às regras de Mandela e às Regras de Bangkok.
Referências
BRASIL, ADPF 347 MC – Supremo Tribunal Federal, 2015. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 2016. 496 p. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf.
HELLER, L. Human Rights to water and sanitation in spheres of life beyond the household with an emphasis on public spaces. A/HRC/42/47. Human Rights Council, UN. 2019.
UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY (UNGA). Human Right to Water and Sanitation. UN Document A/RES/64/292. Geneva: UNGA, 2010.
UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY (UNGA). United Nations Rules for the Treatment of Women Prisoners and Non-custodial Measures for Women Offenders (the Bangkok Rules). UN Document, A/RES/65/229. Geneva: UNGA, 2010. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/justice-and-prison-reform/Bangkok_Rules_ENG_22032015.pdf
UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY (UNGA). United Nations Standard Minimum Rules for the Treatment of Prisoners (the Nelson Mandela Rules). UN Document, A/RES/70/175. Geneva: UNGA, 2016. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N15/443/41/PDF/N1544341.pdf?OpenElement