ÁGUA COMO DIREITO HUMANO, MAS NÃO SÓ[1]
Edson Aparecido da Silva[2]
Somos os guardiões e guardiãs das águas
e defensores da vida. Somos um povo que
resiste e nossa luta vencerá todas as estruturas
que dominam, oprimem e exploram nossos
povos, corpos e territórios. Somos como água,
alegres, transparentes e em movimento.
Somos povos da água e a água dos povos.[3]
“Água é um Direito e Não Mercadoria”. Com esse mote que o Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA) foi concebido, construído e realizado no ano de 2018 na cidade de Brasília entre os dias 17 e 22 de março. Quando definimos o mote do FAMA, foi para deixar explícito que, mais que um direito humano, a água é um direito de todos os seres vivos que habitam nosso planeta.
O FAMA foi uma oportunidade de interação entre diversos movimentos populares, tradições e culturas religiosas e espiritualidades, organizações não governamentais, universidades, pesquisadores, ambientalistas, organizados em grupos, coletivos, redes, frentes, comitês, fóruns, institutos, sindicatos e conselhos.
Também não dá para falar do FAMA sem lembrar do desafio gigantesco que foi garantir a presença de cerca de 7.000 participantes e 450 organizações representando 35 países dos 5 continentes. Além disso, foram mais de 200 atividades autogestionadas na Universidade de Brasília que garantiram que vários grupos pudessem se conhecer e traçar estratégias de organização e luta. Vale destacar a participação de centenas de crianças organizadas nas “cirandas” do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA). Crianças que já se somam aos adultos na luta pela construção de um mundo melhor.
Foram seis dias de muito debate, muita mística, muita música, e, principalmente, muita troca de saberes, vivências, afeto e solidariedade. Foi sem dúvida uma mostra da capacidade de organização, da força e da garra de centenas de militantes, homens e mulheres que passaram dias e noites se desdobrando na busca de recursos materiais e financeiros para garantir alimentação e alojamento para milhares de trabalhadores e trabalhadoras rurais, indígenas, quilombolas, jovens e crianças que acamparam no espaço da realização do encontro, durantes todos os dias.
A poucos metros do Pavilhão de Exposições do Parque da Cidade, onde ocorria o FAMA, acontecia 8º Fórum Mundial da Água (8º FMA). Fórum patrocinado por grandes corporações, entre as quais, várias que mantêm relações ambientais e sociais conflituosas com comunidades no Brasil e no mundo.
O 8º FMA era um espaço que não tinha por objetivo agregar organizações com o perfil daquelas que se reuniram no FAMA. Vários motivos justificam essa afirmação. Um deles era o alto valor cobrado para inscrição no encontro, outro era a intenção clara de separar as organizações da sociedade civil do espaço onde as grandes corporações e governos de todo o mundo tomavam as decisões sobre os destinos dos recursos hídricos do planeta. Era a chamada “Vila Cidadã”, ou seja, uma espécie de espaço segregado do espaço oficial. Dessa forma, se pretendia dar o caráter de participação social. Nós queríamos mais, por isso organizamos o FAMA.
O mote do 8º FMA foi: “Compartilhando a Água”, ao que perguntávamos: compartilhando que água, para quem e para quê? Esse era o centro do debate em questão.
Reconhecemos a água como um bem comum, que deve ser compartilhado com toda a humanidade e com todos os seres vivos do planeta. Por isso mesmo, a água não deve ser tratada como bem privado, uma commodity, um insumo controlado por grandes corporações para garantir a reprodução material, a exploração do trabalho e das reservas naturais.
A ação do homem e desse modelo de desenvolvimento concentrador e predador, comandado pelo capital financeiro, tem provocado profundo desequilíbrio ambiental, expresso de forma mais intensa nas alterações climáticas, na poluição e na destruição dos ecossistemas essenciais para a renovação da água, prejudicando seu ciclo natural.
No Brasil, enfrentamos uma série de eventos críticos que contribuem para esse desequilíbrio ambiental. O aumento das queimadas na Amazônia, observado recentemente pelo mundo todo, é prova disso. Vivemos sob a égide de um governo que subestima a importância da preservação e conservação ambiental. Que subestima e menospreza o papel dos povos originários e tradicionais – os povos das águas e das florestas.
Nas cidades, enfrentamos a falta de políticas urbanas adequadas que garantam habitação decente para grande parte da população. Convivemos com a intensa impermeabilização das vias urbanas e dos espaços públicos e particulares. Todos os anos assistimos, atônitos, a pessoas perdendo vidas e bens materiais por enchentes e alagamentos. Isso porque os rios são canalizados, respeitando a lógica de esconder a poluição em vez de tratá-la. Tudo isso impacta o processo de produção e conservação de nossas águas.
A onda neoliberal que caracteriza o Brasil e parte dos países em desenvolvimento esvazia os instrumentos e espaços institucionais de participação e controle por parte da sociedade nas políticas públicas. Isso vem acontecendo com o Conselho Nacional de Meio Ambiente, Conselho Nacional de Recursos Hídricos e com o Conselho das Cidades, que foi desmontado. Soma-se a isso a criminalização de dirigentes e de militantes dos movimentos sociais e populares.
Mais recentemente, a pandemia ocasionada pelo novo Coronavírus expôs uma realidade trágica que nos afasta ainda mais da possiblidade de dar centralidade aos temas ambientais tão próximos e ao mesmo distante da percepção de grande parte do povo. Por outro lado, abre uma possiblidade concreta de dialogar com uma parcela da sociedade que sequer tem acesso à água para lavar as mãos e garantir a higienização, requisito básico para proteção contra a Covid-19.
O Brasil concentra a maior reserva de água doce do planeta e mantém uma legislação que garante ao Estado o poder de emitir outorgas para uso dos recursos hídricos para os mais variados fins. Contudo, não cessam as tentativas de alteração da legislação nacional no sentido de flexibilizar essas regras, tanto que tramita no Senado Federal um Projeto de Lei de número 495, de 2017, que altera a Política Nacional de Recursos Hídricos, para introduzir os mercados de água como instrumento da política de recursos hídricos. Ora, a experiência chilena mostra que esse tipo de intervenção fortalece os grandes empreendedores, o agronegócio e enfraquece os pequenos produtores.
Por tudo isso, não é possível que mais um “Fórum Mundial da Água” não tenha como questão central pensar e tratar a água como um bem comum, um direito essencial, conforme declaração da ONU de 2010. Há que se compreender que a água não pode ter dono e que é preciso que seja usada por todos com equilíbrio de forma a atender a todas as necessidades, sem que haja contaminação com os venenos agrícolas e dejetos humanos e animais. Faz-se necessário interromper urgentemente a devastação das florestas, das matas ciliares e do cerrado. É preciso que a gestão e o controle das águas estejam acima dos interesses privados das corporações, que se aliam a governos nacionais para adquirir terras onde há grande concentração de água e incentivando privatizações. É preciso dar voz e garantir participação, transparência e controle sobre a politicas relacionadas à água para as representações sociais e populares da cidade e do campo. Tem-se que valorizar os saberes e os ensinamentos dos povos originários e das comunidades tradicionais. Dessa forma, não temos dúvidas de que a água existente no planeta será suficiente para sobrevivência de todos os seus seres vivos.
Um dos importantes legados do FAMA foi a retomada de uma proposta que há anos vinha sendo discutida por várias entidades: a criação de um observatório que, a partir da perspectiva da água como direito e não mercadoria, pudesse produzir e disseminar dados, análises e estudos críticos, para contribuir no enfrentamento do processo de privatização e mercantilização da água. Em fevereiro de 2019, concretiza-se esse projeto e nasce o Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS).
Um dos desafios mais importantes deixados pelo FAMA continua sendo constituir uma grande rede nacional e internacional para levar adiante a agenda de luta e resistência que constam da declaração final do FAMA.
Por fim, temos convicção de que não haverá “Segurança Hídrica para Paz e Desenvolvimento” (mote do 9º FMA), enquanto os interesses da natureza e dos povos das águas, das florestas e das cidades não forem respeitados.
Reafirmamos, “Água é Direito e não Mercadoria”.
[1] Esse artigo integra o livro: “Água, Compartilhamento e Cultura de Paz”. Organizado por: Sergio Augusto Ribeiro e Vera Lessa Catalão e disponível em: http://cirat.org/destaques/livro-agua-compartilhamento-e-cultura-de-paz/. Versão também em inglês.
[2] Sociólogo, Mestre em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC, Secretário Executivo do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento – ONDAS. Integrou a Coordenação Nacional do Fórum Alternativo Mundial da Água – FAMA/2018.
[3] Trecho da Declaração Final do FAMA.
Este a meu integra o livro: “Água, Compartilhamento e Cultura de Paz”. Organizado por: Sergio Augusto Ribeiro e Vera Lessa Catalão. Leia: Água, Compartilhamento e Cultura de Paz