Aercio Barbosa de Oliveira*
O Brasil possui 12% de toda a água doce superficial existente no mundo. Temos em nosso território dois dos maiores aquíferos do planeta – o Guarani e o Alter do Chão -, e o maior rio do mundo em vazão, o Amazonas. A riqueza dos nossos biomas, mesmo com as violações socioambientais cometidas pelas corporações, ainda consegue garantir um ciclo hidrológico capaz de alimentar nossos mananciais superficiais e subterrâneos. Esses mananciais garantem a produção de alimentos saudáveis no campo e nas florestas, o agroextrativismo que estabelece uma relação harmônica com a natureza, a agricultura familiar e a agroecologia, o abastecimento de água para o uso doméstico. São desses mananciais que empresas públicas de abastecimento de água e saneamento, captam, tratam e distribuem água para os quase 6 mil municípios do Brasil – as empresas públicas são responsáveis por 95% do abastecimento do Brasil.
No entanto, toda essa riqueza, fundamental à vida, e que tem diferentes significados e usos para a diversidade de culturas e tradições, com seus modos de existência, está ameaçada. Com a escassez de água no mundo, o Brasil, já faz tempo, é cobiçado pelas grandes corporações. Setores econômicos e financeiros intensificam a pressão para transformar a água em mercadoria. Seguindo a lógica de suprir a sede insaciável por lucro, a água, para esses grupos, serve de lastro a contratos no mercado financeiro especulativo, igual a qualquer outro produto, como a soja, o café, ferro, petróleo etc. A água, em alguns países, está integrada ao mercado financeiro, tendo seus contratos precificados para transações especulativas. Além dessa tentativa de captura da água pelo mercado financeiro, fundos de investimentos internacionais, corporações da construção civil, entre outros, estão interessadas em adquirir as empresas públicas responsáveis pelo abastecimento de água do Brasil.
A maioria dos congressistas, aliados do governo genocida, aprovaram a alteração do marco regulatório do saneamento e do abastecimento de água no final de 2020, em plena pandemia. Essa nova legislação acelera o processo de privatização do patrimônio público de água e saneamento e cria todas as dificuldades possíveis para manter uma empresa pública desse setor funcionando. A legislação é resultado da falácia de que o “mercado” garantirá a universalização do abastecimento de água no país. A experiência de privatização em outros países mostrou o contrário – a água ficou mais cara para o consumo e os serviços ficaram mais precarizados, os benefícios serviram apenas a famílias abastadas. Nos territórios periurbanos e rurais, o direito ao acesso à água para a produção da agricultura familiar, por exemplo, é inviabilizado para servir à agroindústria, que tem facilidade para obter a outorga para o uso intensivo de água.
Por isso, defendemos a água como um bem comum, um bem sagrado, que não pode ser transformado em mercadoria. A água deve servir à reprodução da vida humana e nossa biodiversidade, não ao mercado, às corporações, ao setor da agroindústria e da mineração. Esses setores são responsáveis pela maior parte do consumo de água. O agronegócio é responsável por 75% do consumo, enquanto a indústria é por cerca de 10% da água captada. Essas, despejam seus efluentes sem tratamento nos rios agravando a poluição dos mananciais.
As corporações, seus representantes dentro do congresso nacional, nos governos, nos legislativos estaduais e municipais precisam ser denunciados à sociedade, do quanto ameaçam agravar as dificuldades de acesso a esse bem e de quererem passá-lo às mãos de quem só deseja o lucro, não se importando com os custos de vida e de todo o ecossistema. Devemos desmascarar as falsas soluções, as propagandas enganosas, como a de que “o agro é pop!”, que esses setores veiculam na mídia corporativa.
Mas as denúncias devem ser acompanhadas de anúncios. Divulgar as inúmeras experiências espalhadas pelo Brasil, que asseguram o uso da água como alimento, de maneira saudável, em diferentes escalas, no campo, nas cidades, nas florestas, em territórios indígenas, quilombolas e povos tradicionais, para diferentes usos, de acordo com seus modos de vida. Precisamos fortalecer e ampliar nossas mobilizações em defesa da água como um bem comum vital para a vida. Nossa água não pode virar uma mercadoria.
*Aercio Barbosa de Oliveira – Coordenador do programa da FASE no Rio de Janeiro e assessor nacional da FASE e Conselheiro de Orientação do ONDAS