ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

As peripécias do Homem que Calculava no Piauí

QUANDO 150%, POR UM PASSE DE MÁGICA, SE CONVERTEM EM 1,7%

Autor: Marcos Helano Montenegro*

_____________________

Sou engenheiro há 49 anos. Menino, descobri que a matemática pode ser divertida quando li o genial Malba Tahan, que conseguiu me transportar para as Arábias nas páginas de O Homem Que Calculava.

Mas nem Beremiz Samir, o célebre matemático do livro que marcou minha infância, imaginaria as peripécias que estão fazendo com a matemática no Piauí.

Li várias vezes o edital da concorrência pública para a concessão dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário nos municípios do Estado, que prevê que a empresa vencedora terá que oferecer a menor tarifa combinada com o maior valor de outorga. Segundo o edital, o maior desconto nas tarifas ali constantes é de 150% (?!) e o menor valor da outorga a ser paga ao estado é R$ 1 bilhão.

Como conceder um desconto de 150% nas tarifas hoje praticadas? A concessionária vai pagar aos usuários pela água e pelo esgotamento sanitário?

Claro que não, disse-me Beremiz Samir quando o chamei para decifrar o problema. Na verdade o desconto máximo de 150% se converte em uma redução de apenas 1,7% nas tarifas cobradas dos usuários. É a mágica operada no desconto “D” pela fórmula de cálculo do Fator A, apresentada no item 2.1.2 do Anexo VI do contrato:

Esta fórmula, aliás, consegue também a mágica de transformar uma oferta de desconto D =100% em uma redução nula das tarifas. E converte uma oferta de desconto nulo (D=0) em um aumento de 3% nas tarifas hoje cobradas pelos serviços!

Tem mais: como costuma  acontecer com o efeito das mágicas, o desconto não é duradouro. Por mínimo que seja, ele só será aplicado nos primeiros cinco anos (conforme o mesmo item do tal Anexo VI).

Lamentavelmente, é um feitiço de péssimo gosto! Na verdade, o direito de prestar os serviços de água e esgoto no Piauí está sendo vendido pelo maior valor de outorga (que é no mínimo de R$ 1 bilhão). Valor que, claro, quem vai pagar são os usuários dos serviços durante os longos 35 anos da concessão.

A pergunta que fica: a quem esta mágica pretende iludir? O governador do Piauí, bacharel em Matemática e mestre em Economia Matemática, e responsável último por essa famigerada concessão, poderia responder?

A universalização: outro truque maldoso

Aqui Beremiz ajuda a desmistificar outra mutreta na concessão dos serviços de água e esgoto no Piauí.

No artigo 2° da Lei Nacional do Saneamento Básico (Lei 11.445/2007), a universalização do acesso e efetiva prestação do serviço  é o primeiro princípio fundamental segundo os quais os serviços públicos de saneamento básico devem ser prestados.

A meta de universalização computa como atendida a família que mora em rua com rede de água e esgoto mesmo que não tenha qualquer ligação de água ou de esgoto. Deixaram de considerar que neste caso não há efetiva prestação do serviço.

A Tabela 1 do Anexo III do edital estabelece que a partir do oitavo ano da concessão, a cobertura de atendimento total de água deve ser de 99%, mas esta meta inclui como atendidos domicílios que não estejam ligados à rede de água.

Da mesma forma, está estabelecido que a cobertura do atendimento com esgotamento sanitário seja de 90% a partir do 15° ano, mas também esta meta inclui como atendidos domicílios que não estejam conectados à rede de esgoto.

O anexo fixa ainda a meta de adesão dos usuários (com a efetiva ligação de água e/ou de esgoto) em 85% a partir do segundo ano. Ou seja: no abastecimento de água, se 84,15% dos domicílios (0,99×85) estiverem ligados, a universalização é considerada atendida. Nos mesmos termos, se 76,5% (0,90*85) dos domicílios estiverem efetivamente conectados à rede de esgoto, a concessionária privada terá cumprido suas metas de universalização.

A privatização dos serviços de água e esgoto do Piauí está degradando o princípio de universalização (atendimento a 100% da população) da Lei 11.445/2007.

Para entender melhor o que está acontecendo no Piauí, pedi ajuda para nosso calculista. Beremiz Samir me disse que a análise está certa e que a universalização nos termos do contrato de concessão é uma fraude. Mas na sua imensa sabedoria, Beremiz lembrou um detalhe que desprezei.

Diz ele: a concessionária está autorizada a cobrar tarifas das famílias que morem em ruas onde passem redes de água e esgoto. Por isso, atingida a meta de 85% de adesão, a concessionária não terá motivação para efetivamente universalizar o atendimento.

De fato, Beremiz acertou novamente . E o pior é que os documentos técnicos que acompanham o edital, não obrigam a elaboração de projetos de redes de esgotos que possibilitem a conexão de todas os imóveis. Os profissionais do setor sabem bem que frequentemente projetos de redes de esgoto elaborados nos escritórios, sem conhecimento das realidades locais, resultam na implantação de redes coletoras nas quais não factibilidade técnica de interligação de parte dos imóveis.

Maktub! Com esta expressão árabe, que significa “Assim está escrito”, Malba Tahan encerra muitos dos episódios de O Homem que Calculava.

De fato, por incrível que pareça assim está escrito no edital da concessão do governo do Piauí.


*Marcos Helano Montenegro é membro da coordenação do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *