ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS - Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Como ocorreu a atuação da ABCON para alimentar de vez a maior participação da iniciativa privada na prestação dos serviços de saneamento?

 

Texto da interação ONDAS-Privaqua*
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COMO OCORREU A ATUAÇÃO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS CONCESSIONÁRIAS PRIVADAS DE SERVIÇOS PÚBLICOS DE ÁGUA E ESGOTO (ABCON) PARA ALIMENTAR DE VEZ A MAIOR PARTICIPAÇÃO DA INICIATIVA PRIVADA NA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS DE SANEAMENTO?
Autor: Yuri Ferreira Coloneze [*]

A ABCON foi criada em agosto de 1996, com objetivo de aglutinar os interesses das empresas privadas atuantes na prestação dos serviços de saneamento. Para entender sua atual relevância na alteração dos rumos da política federal de saneamento, será necessário apresentar resumidamente o contexto político no qual esta associação se formou. (ABCON, 2021)

Durante a década de 1990, houve a formação de uma nova visão institucional sobre o desenho de políticas públicas para o saneamento. Era um modelo pautado por uma estratégia neoliberal, interessada na ampliação da participação do setor privado (PSP) nos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário (SAE). Isto é, na transformação de um bem público e um direito humano, que é o acesso à água e ao esgoto tratado, em uma frente de negócios. (CASTRO, 2005; CASTRO, 2007; CASTRO, 2008; CASTRO, 2016)

O engajamento político para diminuir a participação do setor público na prestação dos serviços ou na organização dos SAE contou com o apoio de variados grupos de atores naquele período. Alguns merecem destaque: Instituições Financeiras Internacionais (IFIs) – como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) -, acadêmicos, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e até o próprio poder executivo brasileiro. (CASTRO, 2005; CASTRO, 2007; CASTRO, 2008; CASTRO, 2016)

As IFIs foram fundamentais para importar as PSPs para países em desenvolvimento (como Argentina e Brasil). Em articulação com o poder executivo brasileiro, nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (FHC), diversas tentativas para estimular a implementação desse modelo foram criadas: a Lei nº8987/1995 (por meio da concessão de serviços públicos, também aberta ao saneamento), a oferta pública de ações de companhias estaduais de saneamento no mercado financeiro (conforme ocorrido nos estados do Paraná e de São Paulo, por exemplo), a construção de nova Política Nacional de Saneamento (PNS), além das tentativas de aprovação de projetos de Lei para assegurar novos marcos legais para o saneamento que fossem favoráveis aos interesses privatistas (PLs 266/1996 e 4147/2001). (ZVEIBIL, 2003; VARGAS e LIMA, 2004; COSTA e RIBEIRO, 2013; BRASIL, 2014)

É importante destacar que, no Brasil, houve a formação até de parcerias entre o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Caixa Econômica Federal (CEF) com os organismos multilaterais, para estimular essa ampliação de participação do setor privado no setor de saneamento. Isto ocorre por meio de ações coordenadas pelo próprio governo federal, como a criação do Programa de Fomento à Parceria Público-Privada para a Prestação de Serviços de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário (PROPAR). (PARLATORE, 2000; SALLES, 2009)

Este breve resumo pode confirmar que o contexto de surgimento da ABCON obedece a um ambiente institucional que estava interessado em atrair o setor privado para a prestação dos serviços de saneamento. A própria missão anunciada pela associação diz respeito a dar apoio ao poder público e à sociedade para assegurar acesso aos serviços de saneamento de forma eficiente pelo setor privado. (ABCON, 2021)

A associação, a partir do momento em que se considera publicamente como principal porta voz de atores privados dentro do saneamento, procura atuar em duas frentes: uma voltada para conformar alianças capazes de fortalecer seus interesses fora do espaço governamental e outra voltada para articulações que permitissem, de fato, avanços na mercantilização dos SAE dentro da esfera federal. Essa última frente pode ser resumida em conexões com parlamentares, como o deputado Evair Vieira de Melo (Partido Progressista/ES), presidente da comissão mista sobre a Medida Provisória (MP) 868/2018, o deputado Geninho Zuliani (Democratas/SP), relator da Comissão Especial que debateu o PL 3261/2019 e o senador Tasso Jereissati, relator da Comissão Mista sobre o MP 868/2018 e autor do PL[1] citado anteriormente. (CANAL SINDCON, 2018; 2019; 2020; CASTRO, 2019).

A ABCON destaca em seu site valores como transparência, cooperação e gestão sustentável dos recursos, princípios que são destacados inclusive por empresas privadas que atuam na prestação dos SAE, uma semelhança argumentativa que não ocorre por acaso. (ABCON, 2021)

De acordo com os pilares neoliberais, a liberdade para concorrer corresponde a um benefício do sistema capitalista. Para o desenho da prestação dos serviços de saneamento, a maior entrada de empresas privadas através de mecanismos de concorrência seria capaz de gerar maior eficiência na prestação dos serviços. (ABCON, 2018; ABCON, 2019; ABCON, 2020)

Mas o que se observa em alguns estados é que esse argumento é bastante questionável. Em Tocantins, a empresa SANEATINS devolveu ao estado a operação de municípios menos rentáveis do ponto de vista tarifário. Além disso, Manaus pode ser considerada como outro exemplo de que a atuação de uma empresa privada não necessariamente será eficiente. De acordo com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, em 2020, somente cerca de 22% da população existente na capital amazonense foi atendida com esgotamento sanitário[2]. (BARDANACHIVILI, 2021; BRITTO e HELLER, 2021; SNIS, 2021; VENDRAMI, 2021)

Outro importante exemplo que merece destaque é a financeirização da SABESP, processo que logo resultou em mudanças na atuação da empresa, mais preocupada em atuar de acordo com os interesses de seus acionistas do que com a devida preparação para lidar com momentos adversos. Um panorama que ganhou maior evidência durante o período de crise hídrica ocorrido no estado de São Paulo. (BORGES e FERRARA, 2018)

Não obstante os fatos que colocam dúvidas sobre a transparência e a sustentabilidade da privatização do setor, a ABCON teve sucesso na conformação de alianças e na ampliação de espaços para debate sobre temáticas que a interessavam diretamente. Esse movimento incluiu desde discussões sobre a isonomia competitiva entre companhias estaduais e empresas privadas, até a importância de centralizar a regulação dos SAE dentro de única instituição federal: a Agência Nacional das Águas e do Saneamento (ANA). (BARDANACHIVILI, 2021; VENDRAMI, 2021)

A Associação não mediu esforços para ganhar mais espaço na mídia, e isto ganhou maior evidência em seu congresso bienal “Encontro Nacional das Águas” e de publicações da própria associação, como o “Panorama da Participação Privada no Saneamento” (publicação anual) e a “Revista Canal” (publicação quadrienal). (ABCON, 2021)

A própria “Revista Canal Sindcon” permite identificar esse papel de articulação da ABCON (e de seu Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto – SINDCON), dentro e fora da esfera governamental, principalmente entre os anos de 2018 e 2019. O mote da revista em questão era apontar que a baixa atuação das empresas privadas na prestação dos serviços impediria a maior ampliação de recursos para a prestação dos SAE. (CANAL SINDCON, 2018; 2019)

Além disso, os efeitos da Emenda Constitucional nº 95 de 2016, cujo objetivo é instaurar um regime de austeridade fiscal permanente no país, deram ensejo para a maior legitimação do programa de privatização dos SAE defendido pela ABCON, pois as reduções das dotações orçamentárias para o setor de saneamento também passaram a ser utilizadas como justificativas para favorecer a maior atuação das empresas privadas no setor. Exatamente neste momento, a ABCON utilizava a revista Canal e o seu congresso para difundir ainda mais esse tipo de argumento entre deputados e senadores. (PERES, 2019)

Paralelamente ao panorama apresentado acima, a crise fiscal de alguns estados foi utilizada de trampolim para a implementação do Programa de Parceria para Investimentos (PPI) no setor de saneamento. Isto porque a privatização de empresas de saneamento tornou-se uma obrigatoriedade para a renegociação das dívidas com o governo federal, como consta no segundo artigo da Lei Complementar nº159/2017. O caso do acordo de recuperação fiscal do estado do Rio de Janeiro foi paradigmático nesse sentido. (BRITTO, 2018)

Nos estertores do governo Temer, duas Medidas Provisórias para alterar o marco legal do saneamento foram construídas (MPs 844/2018 e 868/2018) e impulsionadas pela ABCON através de seu site,  seus Congressos, suas produções e articulações políticas. Mas que não avançaram na esfera federal, devido a resistências de outras entidades que questionavam a ampliação da participação do setor privado. Entre elas, vale destacar principalmente as atuações da Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (ASSEMAE), da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (AESBE) e da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU). Atores que foram bastante presentes em Brasília e que buscaram pressionar parlamentares de forma constante, exatamente para evitar novas alterações na Lei nº11455/2007. (NOTA CONJUNTA…, 2019; SILVA, 2020)

Entretanto, após a eleição do presidente Jair Bolsonaro, mais uma vez a articulação entre as bandeiras defendidas pela ABCON e seus associados ganharam nova força política junto ao governo federal. A ponto até de superar quase 40 anos de resistências contra a ampliação de participação das empresas privadas na prestação dos serviços de saneamento.

Fruto também de intensas articulações por parte da ABCON e comemorada pela associação, a Lei nº14026/2020 promoveu profundas e delicadas mudanças na Lei nº11455/2007. Temas como a isonomia competitiva e a atuação da ANA foram conquistados, mas questões também foram deixadas em aberto: a ANA contará com capacidade técnica suficiente para atender as novas demandas estabelecidas pelo novo marco? A regionalização atenderá, de forma plena, municípios considerados como pouco rentáveis em termos de alcances tarifários? Ocorrerá uma fragilização profunda das Companhias Estaduais nesse processo? (BRASIL, 2007; BRASIL, 2020)

Essas são perguntas que já encontram respostas em casos de privatizações ocorridas em Alagoas, Tocantins e no Rio de Janeiro. Ainda assim, a ABCON continuará atuando para fortalecimento dos interesses de seus associados. Mas até que ponto uma política pública que lida diretamente com um escasso recurso, que também é um direito humano, será afetada pelos interesses privatistas? Esta é uma questão que o próprio tempo já está se encarregando de responder. (BRITTO e HELLER, 2021)

[1] Importante reforçar que, de acordo com notícia apresentada pelo Instituto ONDAS, houve uma suposição de que existiu uma manobra regimental, realizada por parte da Câmara dos Deputados, para dar a última palavra sobre a  alterações no marco legal do saneamento. Para textos de PLs apresentados diretamente pelo Poder Executivo, existe a garantia constitucional para que isto aconteça. Esse movimento, então,  explica o motivo da Câmara votar o PL 4162/2019, apresentado pelo poder Executivo, no lugar do PL 3261/2019 (apresentado pelo Senado). (Retrocesso: Câmara aprova PL…., 2019)

[2] Este cálculo foi feito a partir dos dados existentes dentro da Série Histórica ofertada pelo SNIS. No item municípios, houve uma divisão simples, para o exercício de 2020, entre os itens ES001 (População total – rural e urbana – atendida com esgotamento sanitário) e População Total (rural e urbana) do Município do ano de referência (segundo o IBGE). Os respectivos valores foram os seguintes: 487.158/2.219.580 habitantes. Isto equivale a, aproximadamente, 22% da população total de Manaus.

Referências

ABCON. Site da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto. São Paulo, 2021. Disponível em: https://www.abconsindcon.com.br . Acesso em: 13/04/2021

BARDANACHIVILI, E. “Leo Heller: ‘O modelo de privatização da água e do saneamento está mostrando suas fissuras’. Centro de Estudos Estratégicos FIOCRUZ, Rio de Janeiro, publicado em 13 de maio de 2021. Disponível em: https://cee.fiocruz.br/?q=Leo-Heller-O-modelo-de-privatizacao-da-agua-e-do-saneamento-esta-mostrando-suas-fissuras . Acesso em: 02.02.2022

BORGES, L.M.M; FERRARA, L.N. A financeirização como processo político e socioeconômico na reorganização da produção dos serviços públicos da SABESP.

BRASIL. Lei n.11.445, de 5 de janeiro de 2007 [Lei Nacional de Saneamento Básico]. Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico; altera as leis n.6.766, de 19 de dezembro de 1979, n.8.036, de 11 de maio de 1990, n.8.666, de 21 de junho de 1993, n.8.987, de 13 de fevereiro de 1995; revoga a lei n.6.528, de 11 de maio de 1978; e dá outras providências. Brasília, Diário Oficial da União, Seção 1, p.3. 5 jan. 2007. Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/documentos/pagina/lei_11445-07.pdf . Acesso em: 20/03/2021.

BRASIL. Ministério das Cidades – Secretaria Nacional de Saneamento Básico (SNSA). O setor de saneamento: a política pública e o ordenamento institucional. IN: Panorama do Saneamento Básico no Brasil – Avaliação político-institucional do setor de saneamento básico. Coordenado por Ana Lucia Britto. Brasília, 2014.

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BRITTO, A.L.N.P.  Estudo Proposições para acelerar o avanço da política pública de saneamento no Brasil: Tendências Atuais e visão dos agentes do setor. In: Saneamento como utilidade pública: Um olhar a partir dos desafios do SUS. Rio de Janeiro, Fiocruz, 2018.

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ZVEIBIL, V. Z. Reforma do estado e a gestão do saneamento: uma trajetória incompleta. 2003, 237 f, Tese (Doutorado em Saúde Pública) – Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Fiocruz.

Autor:
[*] Yuri Ferreira Coloneze – Mestre em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ)

* Privaqua é um projeto de pesquisa que busca entender o impacto da privatização dos serviços de água e saneamento nos direitos humanosRegularmente, o site do ONDAS publica notas do Privaqua de forma a dar transparência ao projeto e compartilhar alguns de seus achados preliminares.

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