ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS - Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Boas notícias que vêm da França

Autor: Franklin Frederick

Publicado originalmente no Jornal GGN em 22 de março de 2024

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AS MULTINACIONAIS QUE VENDEM ÁGUA ENGARRAFADA ESTÃO PRIVATIZANDO UM BEM COMUM, SUGANDO AS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS E INUNDANDO A TERRA COM PLÁSTICO

No dia 22 de fevereiro deste ano foi publicado pela influente revista ecológica  Reporterre na França um APELO (1) lançado pela  coalizão Stopembouteillage – Pare com o engarrafamento.

O APELO começa assim:

As multinacionais que vendem água engarrafada estão privatizando um bem comum, sugando as águas subterrâneas e inundando a Terra com plástico.

A partir desta  constatação, o APELO enumera algumas das consequências decorrentes da comercialização da água engarrafada, como estas:

  • desenvolver um modelo industrial extrativista, supercarbonizado e ultracapitalista. Ele se baseia na pilhagem de recursos e cadeias de suprimentos logísticas que envolvem o transporte por caminhão ou navio por milhares de quilômetros;
  • continuar com a implantação neocolonial do modelo agroalimentar de multinacionais como a Danone e a Nestlé, que exploram as águas subterrâneas em todo o planeta para tornar as populações do Sul dependentes delas.
  • produzir  600 bilhões de garrafas todos os anos, o que representa 25 milhões de toneladas de plástico que poluem o ar, a terra, os rios e os oceanos;

Junto ao APELO foi publicado um artigo (2) pela jornalista investigadora francesa Lorène Lavocat do Reporterre, com importantes informações sobre a indústria engarrafadora da água  e de seus impactos sociais e ambientais, como por exemplo:

O planeta inteiro parece estar dominado por essa febre da água: 350 bilhões de litros são vendidos todos os anos no mundo todo. Dominado por quatro multinacionais – PepsiCo, Coca-Cola, Nestlé e Danone – o mercado de água engarrafada “cresceu 73% na última década, tornando-se um dos mercados que mais crescem no mundo”, de acordo com um relatório da Universidade das Nações Unidas sobre o assunto, publicado em 2023.

(…) as empresas de água engarrafada agora vendem seus produtos por 150 a 1.000 vezes mais do que a mesma quantidade de água da torneira.

Claramente, para aumentar seus lucros, as marcas de água engarrafada têm insidiosamente – e alegremente – desqualificado as redes públicas de água.

Lorène Lavocat chama a atenção para o crescimento do mercado da água engarrafada  nos países do Sul global :

os dez países que mais consomem água engarrafada incluem o Brasil, a China,a Índia, a Indonésia, o México e  a Tailândia.

E ela ainda cita :

“Nos países do Sul, as vendas de água engarrafada são estimuladas principalmente pela falta ou ausência de um abastecimento público confiável de água”, observa o relatório da ONU, antes de acrescentar: “A expansão dos mercados de água engarrafada está desacelerando o progresso em direção ao acesso universal à água potável, desviando a atenção e os recursos do desenvolvimento acelerado dos sistemas públicos de abastecimento de água”.

Para os pesquisadores Alasdair Cohen e Isha Ray, “a mercantilização parcial do abastecimento de água potável pode produzir uma dinâmica semelhante à da privatização da saúde e da educação em muitos países de baixa e média renda”, como eles explicaram em um artigo publicado em 2018. “A baixa qualidade dos serviços públicos e as baixas expectativas do público levam até mesmo os mais pobres a buscar serviços privados de qualidade incerta”.

Diante disso, o APELO lançado pela colizão Stopembouteillage na França é da maior relevância também para o Brasil e para os demais países do Sul Global.

A coalizão Stopembouteillage têm a sua origem em  coletivos que se desenvolveram em várias regiões da França por cidadãs e cidadãos preocupados com os impactos causados pela exploração das águas em suas localidades por empresas como a Nestlé ou a Danone. Dentre este coletivos os mais conhecidos são os da cidade de Vittel – Collectif EAU 88 – e o de Volvic – Collectif Volvic Nous Pompe. Estes diversos coletivos perceberam a necessidade de se unir numa coalizão que levasse as lutas locais  ao nível nacional – e assim nasceu a coalizão Stopembouteillage. Desde a última segunda-feira dia 18 até o próximo domingo, dia 24 , a coalizão realiza eventos de mobilização e informação em diversas regiões da França.

Mobilizações em outros países

Não é só na França que tem havido mobilizações contra as exploração da água plea indústria engarrafadora. Na Alemanha, na cidade de Lüneburgo, há um outro coletivo local (3) em luta contra uma marca de água engarrafada que pertence à Coca-cola. Na região da Andaluzia, na Espanha, a Plataforma pro  Defensa del Água en el valle de Lecrín fez um chamado para uma manifestação neste sábado dia 23 –  NO EMBOTELLADORAS EN EL VALLE DE LECRÍN (Não às engarrafadoras no vale de Lecrín) (4)

Nos EUA existem vários grupos que lutam em defesa de suas águas, sobretudo contra a empresa Nestlé, como o grupo Michigan Citizens for Water Conservation (5). E no Canadá o grupo Wellington Water Watchers já tem uma longa história de luta não só contra – de novo… – a Nestlé, mas também em parceria com os povos indígenas do Canadá – conhecidos como First Nations.

Todos estes grupos tem contatos uns com os outros, atividades em comum como o grande encontro que aconteceu no Canadá em novembro de 2019 reunindo grupos da França e dos EUA junto com os canadenses. (6)

A Coalizão Stopembouteillage trabalha para  que o seu APELO seja retomado por outros grupos em países como a Alemanha, a Espanha, a Suiça e a Itália – todos países com uma excelente água da torneira e onde a água engarrafada é um luxo. Como um chamado público para acabar com a água engarrafada só é possível em países com uma boa distribuição de água, a coalizão Stopembouteillage também luta em parceria e em  defesa das empresas públicas de água. A parceria entre as empresas públicas de água e os diversos coletivos articulados contra a indústria engarrafadora é cada vez mais comum. No Canadá o Wellington Water Watchers têm o apoio da União Canadense dos Empregados do setor Público – CUPE. Já em 2017, no Dia Mundial da Água, o CUPE informava em sua página internet:

O CUPE da região de Ontário há muito que trabalha com o Conselho dos Canadenses para proibir a utilização de água engarrafada nas escolas e nos municípios. Recentemente, orgulhamo-nos de apoiar os Wellington Water Watchers na luta para impedir a Nestlé de privatizar a água nas nossas comunidades. (7)

Privatização da água e indústria engarrafadora no Brasil

Levar adiante a agenda de privatização da água foi uma das razões por trás do golpe contra a Presidente Dilma Rousseff em 2016. É bom lembrar que em 2018 Michel Temer, então Presidente depois do golpe, viajou para o Forum Mundial em Davos, na Suíça, onde teria encontros com os CEOS da Coca-cola e da Nestlé(8). E ainda em 2018 ocorreu no Brasil, em Brasília , o Forum Mundial da Água, que reúne as grandes empresas privadas do setor e que não esconde suas articulações em defesa das privatizações. Os principais patrocinadores deste evento no Brasil foram, pela primeira vez na história do Fórum Mundial da Água, as grandes empresas engarrafadoras: Nestlé, Coca-cola e Ambev. O recado era claro: estas empresas já estavam de olho nas águas do Brasil.

Em 2017 o Estado de São Paulo assinou uma parceria com o Water Resources Group (9), a influente organização criada pela Nestlé, Coca-cola e Pepsi com o objetivo de facilitar os projetos de privatização da água. A presença do Water Resources Group em São Paulo certamente tem relações com o processo de privatização da SABESP.

Em 2021 Bolsonaro e Guedes assinaram um decreto favorecendo a Coca-cola e a Ambev. (10)

Estes são todos sinais da articulação política e  do interesse das grandes corporações nas águas do Brasil. Na região do Circuito das Águas em MG os grupos locais organizados em defesa de suas águas já sabem disso há muito tempo.

Em São Lourenço a população local, apoiada pelas cidades vizinhas, conseguiu parar a produção da água Pure Life produzida pela Nestlé, uma vitória sem precedentes no mundo. E em Lambari, Cambuquira e Caxambu a luta continua, enfrentando  agora as privatizações do Governo Zema. As águas desta região são muito cobiçadas pela indústria engarrafadora, pela sua quantidade, qualidade e proximidade com os três maiores centros urbanos do país, Rio, São Paulo e Belo Horizonte.

Como acima citado no artigo de Lorène Lavocat, a indústria da água engarrafada procura  deslegitimar as empresas públicas de água, facilitando assim a sua privatização.

Significado simbólico da luta contra  indústria da água engarrafada na França

A coalizão Stopembouteillage é a primeira iniciativa na Europa à exigir o fim do engarrafamento da água, um dos setores mais lucrativos de empresas transnacionais como a Nestlé ou a Coca-cola. Que esta iniciativa tenha nascido na França tem uma dimensão simbólica significativa: foi neste país, precisamente em Vittel, que pela primeira vez se engarrafou água em garrafas de plástico. Foi esta inovação técnica que permitiu a enorme expansão mundial do comércio da água engarrafada. Antes  o engarrafamento era feito  em garrafas de vidro , muito mais pesadas e frágeis, o que impedia sua comercialização através de longas distâncias.

E com esta nova forma de  engarrafar a água começou também a enorme expansão da poluição plástica por todo o planeta. Hoje cientistas advertem para os perigos das nanopartículas de plástico encontradas dentro dos seres humanos, causando as mais diversas disfunções, da infertilidade ao câncer. O plástico polui ao mesmo tempo o meio ambiente e o meio INTERNO – o organismo – dos seres humanos.

Na próxima semana o Presidente Emmanuel Macron estará em visita oficial ao Brasil, onde encontrará o Presidente Lula. Há uma interessante história envolvendo o presidente francês e a Nestlé.

Em 2017, por ocasião das eleições presidenciais na França que levariam Macron ao poder, o jornal da Suíça Swissinfo publicou uma pequena reportagem com o título “Macron, o banqueiro da Nestlé, no Palácio Eliseu?” (11)

Segundo a reportagem, “Naquela época  trabalhando no banco Rothschild & Cie, o candidato à Presidência (Macron)  aconselhou a Nestlé na aquisição da divisão de nutrição da Pfizer. O negócio foi concluído graças às suas ligações com o antigo diretor do grupo suíço, Peter Brabeck.”

A reportagem explica:

Ainda nada foi decidido. Do outro lado, o banco Lazard, concorrente direto do Rothschild, aconselhava a Danone, a favorita na corrida. Macron viajava de um lado para o outro entre Paris e Vevey ( onde fica a sede mundial da Nestlé, na Suíça) para aconselhar Brabeck e a sua equipe.”

A empresa Danone parecia que ia ganhar a disputa com a Nestlé, porém Macron convenceu Brabeck a aumentar a sua oferta e o negócio foi fechado por 11,9 mil milhões de dólares. Segundo a Swissinfo, “o jovem banqueiro (Macron)  ganhou um bom milhão de euros com o negócio.”

Do “sucesso” desta operação e com a benção de Peter Brabeck, foi uma passo para Macron entrar na política, tornando-se em 2012 Secretário Geral Adjunto do então Presidente da França, François Hollande.

Todas as pessoas engajadas na luta pela água na França conhecem muito bem esta história e sabem como as relações com a Nestlé foram fundamentais para a ascenção política de Emmanuel Macron. E a coalizão Stopembouteillage  está perfeitamente ciente do que tem a enfrentar em sua luta em defesa da água e pelo fim do engarrafamento.

Por ocasião da visita do Presidente Macron ao Brasil então, manifestações de apoio e solidariedade de movimentos sociais e de trabalhadoras e trabalhadores do Brasil à iniciativa Stopembouteillage da França seria mais que um gesto fundamental de solidariedade, seria uma mensagem para as grandes corporações internacionais da água de que o Sul Global pode se aliar ao Norte em defesa da água como um bem comum e um direito humano.


 


*Franklin Frederick é ativista ambiental

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