Autor: Marcos Helano Montenegro*
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A Lei Federal 14.898, de 13 de junho de 2024, que institui diretrizes para a Tarifa Social de Água e Esgoto em âmbito nacional, entrará em vigor em 11 de dezembro próximo. Esta lei assegura o direito à tarifa social aos usuários com renda per capita de até 1/2 (meio) salário-mínimo que pertençam a família de baixa renda inscrita no CadÚnico ou à família que receba o Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário, nos termos da Resolução no A/RES/64/292 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), de 28 de julho de 2010, inclui cinco atributos: 1. disponibilidade; 2. acessibilidade física; 3. qualidade e segurança; 4. acessibilidade econômica e 5. aceitabilidade, dignidade e privacidade. Ao editar a Lei 14.898, o Estado brasileiro está instituindo política pública para a realização progressiva dos direitos à água e ao esgotamento sanitário – no caso afastando barreiras econômicas que prejudicam o seu acesso universal.
O que está mudando com a nova lei
Uma parte dos prestadores dos serviços de água e esgoto já inclui nos seus sistemas tarifários uma categoria de consumidores residenciais como beneficiários de tarifa descontada em relação à tarifa residencial convencional. Então o que de fato muda com esta lei?
Precipuamente, a lei discrimina, identifica sem deixar dúvidas, quais são os detentores do direito à tarifa social. Segundo informa o Tabulador do Cadastro Único são pelo menos 20,4 milhões de famílias (com 52 milhões de membros) que tem renda per capita menor que ½ salário mínimo e tem ligação domiciliar à rede pública de abastecimento de água.[1] Em junho de 2024, o Benefício de Prestação Continuada pagou o equivalente a um salário mínimo a 6,03 milhões pessoas em situação de pobreza, incluindo idosos a partir de 65 anos de idade e pessoas com deficiência. No caso do BPC, a renda per capita do grupo familiar integrado pelo beneficiário deve ser igual ou menor que ¼ do salário mínimo.[2]
Em segundo lugar, a nova lei estabelece que nas contas de água e esgoto das famílias com direito à tarifa social será aplicado desconto de pelo menos 50% do valor da categoria residencial convencional nos consumos mensais que não ultrapassem 15 m³(15 mil litros de água). Fica estabelecido um desconto mínimo, que em cada caso concreto, a critério da regulação específica aplicável, pode ser maior e pode abranger consumos superiores a 15 m³. Portanto, nas prestações do serviço de água e esgoto onde não estiver instituída a tarifa social, ela deverá ser instituída e, nos casos onde já for praticada, deve ser alterada se os parâmetros mínimos fixados como diretrizes pela nova legislação não estiverem sendo observados.
Em terceiro lugar, a lei fixa também que cabe ao próprio prestador dos serviços a obrigação de identificar, entre os usuários que atende, aqueles com direito à tarifa social, ou seja, aquelas famílias com renda per capita de até 1/2 (meio) salário-mínimo inscritas no CadÚnico ou com membro que receba o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Ficou legalmente vedado estabelecer condicionalidades adicionais para o reconhecimento do direito. O caput do art. 4° da lei diz literalmente: “A classificação das unidades usuárias na categoria tarifaria social deverá ser feita automaticamente pelo prestador do serviço, com base em informações obtidas no CadÚnico e nos bancos de dados já utilizados pelos prestadores.” E o §4° deste artigo deixa ainda mais clara responsabilidade do prestador: “A unidade usuária que satisfizer aos critérios de elegibilidade da Tarifa Social de Água e Esgoto deverá ser incluída na categoria tarifaria social pelo prestador do serviço, sem necessidade de previa comunicação ao usuário.”
De acordo com a lei, aquelas famílias usuárias que sendo portadoras do direito, não venham a ser identificadas e classificadas pelo prestador, devem dirigir-se aos centros de atendimento do prestador de serviços para cadastramento, com o documento oficial de identificação do responsável familiar e um dos seguintes documentos: comprovante de cadastramento no CadÚnico; cartão de beneficiário do BPC ou extrato de pagamento de benefício ou declaração fornecida pelo INSS. Ficou estabelecido que o prestador não poderá exigir documentos diversos destes.
É grande o desafio de garantir agilidade na implementação desta importante ferramenta para a acessibilidade econômica aos serviços, um dos conteúdos relevantes dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário. E é fundamental assegurar a efetividade para essa lei, que deverá entrar em vigor no dia 11 de dezembro de 2024 – porém escalonando os seus efeitos em três situações diferentes.[3]
A primeira é a na qual o direito à tarifa social possui vigência e eficácia imediatas, e se refere aos casos em que os serviços são prestados sem o intermédio de contrato, o que geralmente ocorre quando o prestador é autarquia ou empresa municipal ou equivalente. Nessa situação, não há necessidade de qualquer providência para que o direito seja usufruído, mas é necessário ficar atento para que as providências sejam tomadas para que o prestador, de fato, pratique suas tarifas nos termos da lei a partir do dia 11 de dezembro de 2024.
A segunda situação é na qual os serviços, embora disciplinados por contrato, não prevejam atualmente qualquer espécie de tarifa social. Nessa hipótese, são necessários atos complementares, para que haja a efetiva instituição da tarifa social, o que deverá ocorrer até o dia 11 de dezembro de 2026 – já que, neste caso, a lei concedeu prazo adicional para a efetivação do direito que consagra.
Finalmente, na terceira situação, os serviços são disciplinados por contrato e já há a prática de alguma espécie de tarifa social – situação mais frequente. Nela, o direito à tarifa social estará vigente a partir do dia 11 de dezembro de 2024, contudo o prestador não está obrigado a efetivá-lo de imediato, porque, em relação a ele, a eficácia da tarifa social dependerá de prévio reequilíbrio econômico-financeiro do contrato.
Nessa terceira hipótese, o direito será exercido já a partir do dia 11 de dezembro de 2024, caso tenham sido adotadas tempestivamente as providências para o reequilíbrio contratual, durante o período de vacatio legis, que foi planejado para isso (no caso, prazo de 180 dias para a lei entrar em vigor). Caso isso não ocorra, apesar de o direito estar constituído, haverá mora do prestador em relação aos usuários beneficiários, e o valor pago a maior por esses usuários até que ocorra o reequilíbrio econômico-financeiro haverá que ser devolvido.
Conforme prevê a lei, o subsídio cruzado entre usuários dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário pode e deve ser a primeira alternativa para financiar a tarifa social a ser adotada, assegurando acessibilidade econômica às famílias mais pobres. Esta opção tem a vantagem de não onerar o orçamento público, tendo impacto fiscal nulo em primeira aproximação, pelo menos. No entanto, feitos diagnósticos e prognósticos, para os locais onde esta alternativa não se comprovar suficiente, outros mecanismos de financiamento precisam ser identificados para realizar os direitos que a lei assegura.
Há inércia dos reguladores e dos prestadores e dos serviços?
O que preocupa é que não se tem notícias de iniciativas dos reguladores ou dos prestadores dos serviços públicos, no sentido de promover o mencionado reequilíbrio contratual, para que o direito consagrado pela nova lei seja de fato fruído pela população beneficiária a partir do dia 11 de dezembro de 2024. Uma situação que se configura mais crítica em razão da sobejamente conhecida fragilidade estrutural de várias agências reguladoras e da falta de autonomia perante o poder concedente e a concessionária, precarizando tanto as ações regulatórias quanto de fiscalização.
Ao que tudo indica, há inércia dos prestadores e dos reguladores dos serviços, que parecem não ter tomado as medidas necessárias durante o longo período de 180 dias de vacatio legis – o que pode comprometer o direito das populações vulneráveis.
A experiência já acumulada na implementação de tarifa social de água e esgoto vinculada ao CadÚnico mostra baixa efetividade em termos de atingimento do público alvo, deficiência que tem como causas principais a falta de informação do usuário e a frequente divergência entre o membro da família cadastrado no CadÚnico e aquele cadastrado pelo prestador do serviço como titular da ligação de água.
É indispensável e urgente que os prestadores de serviço e entidades reguladoras se articulem com as Secretarias Municipais de Assistência Social, Ação Social, Desenvolvimento Social ou Combate à Pobreza e outras entidades do SUAS. O Ministério do Desenvolvimento Social tem inequívoca responsabilidade tanto na informação e suporte aos usuários detentores de direitos quanto na mobilização das entidades do SUAS nos níveis estaduais e municipais.
A consolidação da política pública e sua efetividade exigirá mobilização e articulação institucionais nos diversos níveis de forma a avançar na ampliação do número de famílias beneficiárias, com monitoramento permanente e descentralizado por município do número de famílias titulares dos direitos e do número das que têm direitos assegurados.
O ONDAS se mobiliza junto aos reguladores, ao Ministério Público e às Defensorias Públicas
Mobilizado para que a acessibilidade econômica não seja negada à população detentora do direito à tarifa social a partir do próximo dia 11 de dezembro de 2024, o ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento vem concretizando uma série de iniciativas.
Em 17 de outubro, com o apoio do IAS, da FNU e CNU, da Fisenge, da CMP, da CONAM, o Observatório realizou oficina virtual pelo Zoom discutindo os desafios da aplicação da Lei 14.898. O evento está disponível no canal do ONDAS no YouTube.
No final de outubro, o ONDAS oficiou às agências reguladoras estaduais, municipais, distritais e intermunicipais, solicitando a cada uma delas que informe quais providências, tanto de natureza regulatória quanto fiscalizatória, já tomou, está tomando ou pretende tomar junto a cada prestador de serviço sob sua autoridade regulatória para assegurar que o direito à tarifa social de água e esgoto se torne efetivo e esteja eficaz a partir do dia 11 de dezembro de 2024.
Da mesma forma, o ONDAS dirigiu-se aos Procuradores Geral de Justiça de cada Ministério Público Estadual e do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios solicitando que o MP atue no sentido de assegurar que o direito à tarifa social de água e esgoto se torne efetivo, especialmente oficiando junto aos reguladores e prestadores de serviços, a fim de que informem e, eventualmente, sejam sindicados quanto às providências para que a tarifa social esteja eficaz a partir do dia 11 de dezembro de 2024.
Também estão sendo acionados pelo ONDAS, nos mesmos termos, as Defensorias Publicas de todas as unidades da Federação, por meio dos respectivos Defensores Públicos Gerais. No âmbito da União, o ONDAS se dirigiu ao Defensor Público-Geral Federal e à Defensora Nacional de Direitos Humanos.
É hora de agir para assegurar o direito à acessibilidade
É preciso agir e cobrar as providências para assegurar a efetividade da Lei 14.898. Cabe às entidades dos movimentos populares, às associações de defesa do consumidor, às entidades dos trabalhadores, especialmente os urbanitários e da assistência social se articular para lutar pela aplicação da legislação que entra em vigor a partir de 11 de dezembro próximo.
[1] Ver https://cecad.cidadania.gov.br/tab_cad.php
[2] Ver https://outraspalavras.net/outrasmidias/em-defesa-do-beneficio-de-prestacao-continuada/
[3] Ver https://sintius.org.br/images/Lei_da_Tarifa_Social_de_%C3%81gua_e_Esgoto_Anotada_2ed.pdf
*Marcos Helano Montenegro é membro da coordenação do ONDAS