Autores: Fernando Amorim Teixeira e Gustavo Teixeira Ferreira da Silva
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A mercantilização dos serviços públicos tem impactado fortemente as populações mais vulneráveis dos países pobres e em desenvolvimento. Desde a adoção das recomendações neoliberais expressas no Consenso de Washington, muitas das soluções prometidas para melhorar a qualidade e os preços dos serviços públicos infelizmente não aconteceram. Pelo contrário, as privatizações, concessões e/ou parcerias público-privadas (PPPs), defendidas como a grande panaceia para os problemas históricos, acabaram, em muitos casos, gerando prejuízos à população em termos de acesso aos serviços públicos. O resultado é que o enorme déficit em infraestrutura econômica e social permanece como uma das marcas do subdesenvolvimento em países como o Brasil.
Durante o Pós-Guerra houve certo consenso internacional de que a recuperação da economia mundial e o processo de desenvolvimento não ocorreriam por meio de forças espontâneas do mercado. No campo teórico, a “revolução” keynesiana e as teorias estruturalista e desenvolvimentista influenciaram o planejamento estatal através do desenho e aplicação de políticas econômicas nos países capitalistas do centro e da periferia. Nos países periféricos, os governos promoveram investimentos em setores considerados como prioritários à estratégia de industrialização por meio da substituição de importações, bem como a ampliação de serviços de utilidade pública em nível nacional, regional e local.
No Brasil, a formação e expansão dos “blocos produtivos estatais” fornecedores de serviços e insumos básicos viabilizaram a base produtiva pesada do setor industrial. Nesse período foram criadas as maiores empresas estatais, dentre elas o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES – 1952), as Centrais Elétricas Brasileiras S.A (Eletrobras – 1962), e a Companhia Estadual de Águas e Esgoto do Estado do Rio de Janeiro (CEDAE – 1975). Também foram constituídos fundos para-fiscais para providenciar o direcionamento de crédito à expansão da infraestrutura econômica e social. Exemplos são o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS – 1966), mecanismo fundamental para a Caixa Econômica Federal financiar saneamento e habitação popular, e o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT – 1990), mecanismo chave para os desembolsos de longo prazo do BNDES.
Entretanto, o avanço das “ideias anti-keynesianas” a partir da década de 1970, e em especial a convergência teórica no campo ortodoxo (Liberal) nas duas últimas décadas do século passado, acabaram por interditar – ao invés de aprimorar – o debate sobre como deveria ocorrer a participação do Estado na economia. As proposições de política econômica que resultaram deste “Novo Consenso” serviram de orientação para a realização de importantes mudanças institucionais, que, assentadas nos princípios das “finanças saudáveis” e da austeridade, confinaram a ação estatal a um conjunto de regras e restrições orçamentárias. Diante do contexto de maior mobilidade dos capitais internacionais, cresceu a obrigatoriedade do controle das finanças públicas e o papel da política fiscal em defesa da valorização do capital. Coube à política fiscal, o papel de garantir a efetividade da política monetária e servir de “âncora” às expectativas dos agentes quanto ao comportamento das principais variáveis macroeconômicas (LOPREATO 2006, p. 4)
Dentro dessa nova realidade, o processo de globalização financeira tem sido interpretado pela literatura heterodoxa como uma etapa de “internacionalização” do fenômeno que se convencionou chamar de “financeirização”. Em seu aspecto mais amplo, a financeirização pode ser definida como “o papel crescente das motivações financeiras, mercados financeiros, atores financeiros e instituições financeiras na operacionalização das economias nacionais e internacional” ( EPSTEIN 2005, p. 3). Como fenômeno, vem sendo discutido com foco principal na economia dos Estados Unidos e outros países centrais desde o fim do sistema monetário de Bretton Woods, mas, no período recente (marcado pelo quadro econômico recessivo generalizado), o interesse se estendeu para as economias emergentes, onde possui implicações particulares de acordo com cada país e tipo de agente econômico (famílias, empresas- -não financeiras, instituições financeiras, Estado).
É nesse contexto de maior desregulamentação da economia, como parte das políticas de corte neoliberal nos anos 1990, que os investidores institucionais e instituições financeiras especializadas tornaram-se os proprietários (acionistas) dos grandes grupos empresariais. Sob uma estratégia de valorização acionária, esses agentes tendem a exigir maior flexibilidade e rentabilidade de curto prazo em detrimento de investimentos de longo prazo. Como forma de atender aos anseios desses investidores, o esforço internacional em promover PPPs contou com o apoio de instituições multilaterais como o Grupo Banco Mundial. O International Finance Corporation (IFC) – em articulação com grupos dos países mais desenvolvidos como G7, G20, dentre outros -, por exemplo, tinha atuação voltada à construção de consensos sobre a necessidade de estimular arranjos de financiamento com maior participação privada em projetos de infraestrutura com foco nos países em desenvolvimento.
Com a eclosão da crise financeira internacional de 2008, diversos governos se viram obrigados a adotar medidas de incentivo a atividade econômica de forma mais ou menos autônoma, utilizando-se do arcabouço institucional à disposição. O Brasil, nesse sentido, foi um caso de relativo sucesso a partir da ação de suas estatais financeiras e produtivas e da execução de programas de investimento público em habitação popular. Esse esforço, porém, foi paralisado em 2014 por conta de uma crise de múltiplas causas.
Diante da instabilidade institucional pós-impeachment da Presidenta Dilma Roussef em 2016, a onda privatista voltou a prevalecer. A agenda de PPPs, instituída pelo Programa de Parceria do Investimento (PPI) no governo Temer tornou-se um dos principais eixos de política governamental e foi acompanhada por mudanças importantes no papel do BNDES, que deixou de ser o indutor de investimentos coordenados, para se tornar um agente de apoio à alienação de ativos. O novo papel do Banco pode ser ilustrado pelas capitalizações de empresas holding de controle estatal, ou mesmo pela criação e abertura de capital de empresas subsidiárias , em diferentes instâncias da federação.
O presente estudo busca discutir a política de privatização dos serviços públicos no Brasil nos governos Temer e Bolsonaro a partir das perspectivas da austeridade e da financeirização. Para tanto, foram selecionados dois casos recentes para análise: a “capitalização” do Grupo Eletrobras que ocorreu em junho de 2022, e a divisão e privatização dos negócios (ou do core business, no termo em inglês) da CEDAE. O texto está estruturado em três partes. A primeira traz um breve resgate histórico do novo paradigma de atuação do Estado no contexto da financeirização, com foco no Brasil. A segunda, apresenta o arcabouço da política de privatização no Brasil pós-2016. Os estudos dos casos de privatização da Eletrobras e da CEDAE são o tema da última seção. Por fim, a título de conclusão, são apresentadas algumas considerações acerca dos impactos econômicos e sociais que podem resultar dessa agenda.