Autora: Tamara Zambiasi*
Artigo originalmente publicado pelo site The Conversation
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As intensas chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul nas últimas semanas afetaram mais de 2 milhões de pessoas, com 147 óbitos confirmados pela Defesa Civil. Chamamos esses eventos de calamidade, tragédia, desastre. Palavras que denotam imprevisibilidade, e que junto com os adjetivos “natural”, “ambiental” ou “climático” tiram a responsabilidade dos tomadores de decisão.
Mas os eventos extremos que assolaram o estado eram previsíveis e seus efeitos poderiam ter sido mitigados. Entretanto, as políticas de austeridade econômica amplamente implementadas no Rio Grande do Sul nos últimos anos, caracterizadas por cortes de investimentos em setores vitais como o saneamento básico, contribuíram para intensificar as consequências desse desastre.
Tragédia anunciada
Em setembro de 2023, chuvas intensas deixaram mais de 2 mil pessoas desabrigadas, afetando cerca de 50 mil indivíduos devido a enchentes, inundações e alagamentos.
Em novembro do mesmo ano, o volume de precipitação ultrapassou 300 milímetros, impactando mais de 600 mil pessoas e quase metade dos municípios no estado. O Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), no mesmo mês, alertou para chuvas intensas devido ao forte fenômeno El Niño em atuação na região.
Em abril de 2024, um novo boletim alertava para a maior probabilidade de chuvas acima da média, orientando o monitoramento constante de riscos para a população.
Duas semanas após as intensas chuvas que elevaram o nível do rio Jacuí, ocasionando o pior evento climático já registrado no Rio Grande do Sul, novos eventos meteorológicos adversos preocupam, com o aumento das inundações no lago Guaíba, que ultrapassou a cota de 5 metros em Porto Alegre.
O caso da capital gaúcha é emblemático. Uma sucessão de falhas nos sistemas de proteção contra inundações na capital permitiu que o centro histórico e dez bairros fossem diretamente atingidos, afetando mais de 150 mil pessoas e diversos equipamentos públicos, como praças, vias públicas, escolas e serviços de saúde.
Na linha de frente, o sistema de proteção conta com um conjunto de diques projetado para conter até seis metros de água, entre eles o muro da avenida Mauá. Contudo, as águas começaram a invadir o centro da cidade na cota de 4,5 metros, devido a brechas entre o muro e as portas, bem como ao mau funcionamento ou ausência dos motores das comportas. Essas falhas já haviam sido identificadas nas inundações de setembro do ano anterior.
Compondo este complexo, tem-se o sistema de drenagem urbana, uma componente fundamental dos serviços de saneamento básico responsável pela coleta e condução das águas pluviais para evitar alagamentos e inundações. No entanto, decorridas duas semanas desde o início das inundações na cidade, apenas 8 das 23 estações de bombeamento estão em funcionamento, demonstrando a incapacidade do sistema em lidar eficazmente com o desastre.
A insuficiência do sistema de proteção contra cheias já era apontada no Plano Municipal de Saneamento de 2015. No documento foi assinalada a falta de capacidade hidráulica instalada, com capacidade de vazão de água 70% abaixo do necessário, e o mau estado geral das instalações, incluindo os sistemas mecânicos e elétricos.
Além disso, o diagnóstico apontava para as precárias condições operacionais das casas de bombas, algumas atuando em níveis operacionais abaixo dos 50%. Dentre elas, as bombas das Estações de Bombeamento de Águas Pluviais (EBAP) 17 e 18, que retiram água do centro da capital, a região mais afetada.
Em 2020, a Prefeitura procedeu com a substituição dos motores em diversas EBAPs e realizou a automação das respectivas estações. Na EBAP 17, que apresentava falhas operacionais pelo menos desde 2018, o motor que anteriormente era acionado por meio de “botões e manivelas” foi substituído. No entanto, durante as inundações ocorridas em 2023, a referida estação voltou a apresentar defeitos operacionais.
A reincidência de falhas durante os eventos de 2023 indica que tais medidas não foram completamente eficazes, levantando questões sobre a manutenção e a capacidade do sistema em lidar com eventos extremos.
Osso e filé
Em Porto Alegre, desde 2019 a drenagem urbana é de responsabilidade do Departamento Municipal de Águas e Esgotos, o DMAE. A autarquia está na mira da privatização desde, pelo menos, 2017. Neste período, a Prefeitura da capital contratou o Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) para a realização do estudo para a privatização da companhia.
Na mesma época, uma inspeção especial do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS) apontou a interferência direta da Prefeitura na autonomia da companhia ao dificultar deliberadamente a contratação de pessoal, causando perdas no faturamento e transtornos à população devido à falta de água.
Além disso, o documento ressaltou a falta de evidências que sustentassem o interesse público na concessão do DMAE, apontando tanto para possíveis conflitos de interesses, devido ao papel do BNDES como intermediador para a captação de recursos privados, quanto para a suficiente capacidade do DMAE de obter recursos e cumprir as metas de investimento estabelecidas.
Em 2022, um novo ofício foi encaminhado pela Prefeitura ao BNDES reafirmando a intenção de privatizar a companhia e solicitando que os estudos considerassem a inclusão da drenagem urbana na modelagem de concessão do DMAE. Essa situação ilustra um conflito crítico entre a busca por eficiência na gestão de serviços públicos e a pressão por privatizações que, muitas vezes, podem comprometer a qualidade e o acesso desses serviços à população.
No Hub de Projetos do BNDES, a proposta é listada como “concessão parcial de abastecimento de água e esgotamento sanitário”, com investimentos estimados em R$ 5 milhões, sem menção à inclusão de drenagem urbana. De fato, devido aos altos custos associados à macrodrenagem, este serviço tem sido historicamente financiado por investimentos públicos, e não pelas tarifas de água e esgoto.
A privatização dos serviços de drenagem poderia resultar em aumentos significativos nas tarifas, alcançando valores hoje considerados impraticáveis. Atualmente, os excedentes gerados no caixa do DMAE contribuem para o capital de investimento em macrodrenagem. Ao retirar esse componente, a administração municipal ficaria apenas com os custos, enquanto os serviços lucrativos seriam transferidos para a iniciativa privada.
Os números da companhia revelam um cenário de desinteresse e negligência em relação à manutenção e fortalecimento do serviço de saneamento público em Porto Alegre. Ao longo de um período de dez anos (2012-2022), os investimentos do DMAE sofreram uma redução de 44%, enquanto os recursos alocados para a categoria “pluvial”, que abrangem a macrodrenagem, diminuíram pela metade.
Paralelamente, houve uma redução significativa na força de trabalho. Em 2012, a empresa contava com mais de 2.300 funcionários, número que declinou para aproximadamente 1.400 em 2022, resultando em queda na qualidade e capacidade de atendimento aos consumidores. Além disso, o tempo dedicado ao treinamento dos funcionários diminuiu em mais de 70%, afetando diretamente a competência técnica do departamento.
Estes dados conjuntos refletem um padrão de fragilização deliberada do DMAE ao longo dos últimos anos, colaborando para a deterioração do sistema de drenagem e impedindo uma resposta mais eficaz e imediata aos eventos extremos na capital gaúcha.
É o reforço da lógica do osso e do filé que tem acompanhado as privatizações do saneamento no país, em que o público assume as funções onerosas do serviço enquanto as lucrativas, como água e esgoto, são concedidas à iniciativa privada.
Nesta lógica, adotam-se medidas sistemáticas de enfraquecimento de companhias públicas de saneamento, muitas delas com excelentes índices de atendimento, para pavimentar o caminho da concessão às vias privadas. Prática essa que está na contramão do mundo. Enquanto o Brasil privatiza, França, Alemanha, Estados Unidos, entre outros, remunicipalizam seus serviços.
Diante do cenário de eventos climático extremos, é urgente a revisão e o aprimoramento das políticas e práticas públicas de gestão no setor de saneamento, visando garantir a eficiência, a sustentabilidade e a qualidade dos serviços prestados à população.
* Tamara Zambiasi – Doutoranda em Geografia, University of Cambridge. Associada ao ONDAS
Excelente ,oportuna,fundamental estudo .