Autor: Marcos Helano Montenegro
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Mais conhecida como COPASA, a Companhia de Saneamento de Minas Gerais se originou da incorporação em 1973 do Departamento Municipal de Águas e Esgotos de Belo Horizonte (DEMAE) pela COMAG (Companhia Mineira de Água e Esgoto). A COMAG havia sido criada pelo governo mineiro em 1963 para planejar, projetar, executar, ampliar, remodelar e explorar diretamente, no Estado, serviços urbanos de água potável e esgotos sanitários, mediante convênio com os municípios.
Em 31/12/2022 a COPASA atendia 584 municípios mineiros, sendo 228 com serviços de água e esgoto e o restante (em geral os menores) só com abastecimento de água. A subsidiária COPANOR, criada em 2007, atendia mais 48 municípios, dos quais 7 só com água.
Segundo a direção da COPASA ao final de 2022 o atendimento com água, medido pelo percentual de imóveis com disponibilidade de rede de distribuição de água tratada era de 99,8% em sua área de abrangência de abastecimento água e o de coleta de esgoto atingiu 90,8% dos imóveis na sua área de atuação de esgotamento sanitário, com 72,1% dos imóveis com disponibilidade de infraestrutura completa para tratamento do esgoto coletado.[1]
O faturamento anual da empresa, que já havia ultrapassado em 2022 a marca de R$ 6 bilhões, deve passar de R$ 7 bilhões neste exercício.
Mercado comemorou
No último dia 14, o mercado comemorou. Na data, a COPASA pagou mais R$127,4 milhões a título de dividendos aos seus acionistas que são o Governo de Minas Gerais, detentor do controle acionário da empresa com 50,03% das ações, sócios minoritários nacionais com 20,6% e os investidores estrangeiros com 29,1%.
Contando com os pagamentos feitos nos dois primeiros trimestres de 2023 os acionistas da empresa já receberam em 2023 R$ 387,5 milhões, o que corresponde a 38% do lucro líquido apurado no período e 7% do faturamento dos três primeiros trimestres. O que significa dizer que de uma conta de água e esgoto apresentada pela empresa no valor de R$ 100,00, vão para os acionistas R$ 7,00.
O retorno sobre o patrimônio líquido (PL, que corresponde aos valores que sócios e acionistas têm na empresa) variou nos exercícios de 2019 a 2022 de 6% a 13% com valor médio de 10,5% no quadriênio.
Os diretores da estatal são pagos com salários de mercado: em 2023 a previsão é que a remuneração média (13 meses) de um diretor da COPASA seja de R$ 96.526,88 mensais. [2] Com tais salários eles vem gerindo a COPASA tendo como prioridades aumentar o faturamento, maximizar os lucros e atender os interesses mais imediatos dos acionistas, assegurando o pagamento de dividendos vultosos aos acionistas, como mostra a tabela.
COPASA (em R$ 1.000)
Exercício | Receita operacional líquida (ROL) | Lucro líquido (LL) | LL/ROL (%) | LL/PL (%) | Dividendos (DIV) | DIV/LL (%) | DIV/ROL (%) |
2019 | 5.093.362 | 754.374 | 15 | 11 | 210.587 | 28 | 4 |
2020 | 5.288.943 | 816.477 | 15 | 13 | 1.048.026 | 128 | 20 |
2021 | 5.830.194 | 427.903 | 7 | 6 | 282.681 | 66 | 5 |
2022 | 6.112.523 | 843.362 | 14 | 12 | 391.105 | 46 | 6 |
2023 (3 trimestres) | 5.354.588 | 1.024.096 | 19 | – | 387.525 | 38 | 7 |
Fonte: COPASA – Relações com Investidores
Como dividendos, desde 2019 foi pago um total de R$ 2,32 bilhões em valores históricos – cerca de R$ 2,66 bilhões em valores atualizados pelo IPCA/IBGE para outubro de 2023 -, dos quais praticamente metade foi para o tesouro estadual e a outra metade para os acionistas minoritários.
No mesmo período, de 2019 até o final do 3° trimestre de 2023, a COPASA investiu R$ 4,6 bilhões. Se tivessem sido pagos dividendos no valor mínimo de 25% dos lucros, o total pago teria caído para R$ 966,5 milhões e R$ 1,35 bilhões poderiam ter sido capitalizados e disponibilizados para financiar investimentos adicionais necessários à universalização e à melhoria dos serviços prestados pela estatal mineira.
A trajetória de financeirização e corporativização da estatal teve como marcos a abertura de capital da empresa em 2003, a realização em 2006 do seu IPO (Oferta Pública Inicial de Ações), ingressando no Novo Mercado da B3 – Brasil, Bolsa, Balcão e, em 2008, a realização de oferta secundária de ações, quando o município de Belo Horizonte, segundo maior acionista até então, alienou a totalidade das ações que possuía e o Estado de Minas Gerais vendeu parte das ações que detinha, mas sem abrir mão do controle acionário.
A gestão da COPASA pelo governo Zema como se fosse empresa privada já foi denunciada mais de uma vez pelo Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS).
A ganância decide o que importa
Como se não bastasse, em 17 de novembro passado, o Conselho de Administração da COPASA, alinhando os seus interesses como administradores com os dos acionistas[3], e com parecer favorável do Conselho Fiscal, recomendou para deliberação de Assembleia Geral Extraordinária a ser convocada, a distribuição extra de dividendos para os acionistas no valor de R$ 372,5 milhões cujo pagamento deverá ocorrer ainda em 2023.
Segundo o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgotos do Estado de Minas Gerais – Sindagua, só alguns dias depois, em 21 de novembro, o presidente da COPASA se recusou a receber a comitiva formada por deputadas estaduais e lideranças comunitárias, que esteve na sede em Belo Horizonte, para pedir providências quanto ao desabastecimento em diversas localidades da Grande BH e cobrar porque não foi colocado em prática o plano de contingenciamento para evitar a escassez de água.
No início do mesmo mês, a COPASA tornou pública a autorização da Assembleia dos acionistas para contratar empréstimo de $200 (duzentos milhões de Euros) junto à Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD).
É típico: o endividamento da empresa é o reverso da descapitalização pelo pagamento de dividendos vultosos. Em outras palavras, os empréstimo financiam o pagamento de dividendos.
Cemig e Copasa vão para as mãos de Lula?
Não é, portanto, de se estranhar que o mercado tenha reagido tão mal com o anúncio de uma possível federalização das empresas estatais mineiras proposta pelo Senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG) ao presidente Lula, no âmbito de medidas para equacionar a dívida do estado mineiro com a União que atinge a astronômica quantia de R$ 159 bilhões, dos quais cerca de um terço acrescentado durante da gestão do governador Zema, do Novo.
Sem condições de bancar politicamente o Regime de Recuperação Fiscal, Zema deu um aval preliminar à proposta, cujos termos ainda estão por ser definidos.
No entanto, a situação já alarmou o mercado! “O mercado dá uma pausa na expectativa de melhora com a possibilidade de um governo mais populista voltar a tomar conta dessas empresas”, declarou um analista.
O Itaú BBA considerou que a potencial transferência do controle da Cemig (CMIG4) e Copasa (CSMG3) para a União é uma “notícia terrível”, pois seus analistas acreditam que a federalização poderia acarretar mudanças nas equipes de gestão dessas empresas, “que tem conseguido implementar mudanças para melhorar a eficiência das empresas, apesar das restrições de serem empresas estatais”.
Outro analista afirma: “O mercado não gosta da proposta de federalizar empresas porque historicamente a gestão pública não prioriza o retorno financeiro das empresas, que passam a ser usadas para outras finalidades”.
Ou seja, os oráculos do mercado preconizam que com a federalização há o risco de que os objetivos estratégicos destas empresas voltem a ser priorizados, e a remuneração dos acionistas não permaneça nos escandalosos termos atuais.
Tentando acalmar o mercado, em 23/11, a Copasa publicou Comunicado onde afirma que “foram apresentadas ao Governo de Minas Gerais alternativas, que ainda serão objeto de análise minuciosa, tanto pelos técnicos do Governo Federal, quanto do Governo Estadual, razão pela qual ainda não houve qualquer manifestação ou aceite do Governo do Estado sobre o ponto referente a eventual federalização das estatais estaduais com ações listadas na Bolsa de Valores.
Pedagogia da privatização
O episódio traz algumas lições preciosas.
As declarações dos analistas de mercado no episódio escancaram a incompatibilidade entre a financeirização das empresas prestadoras de serviços públicos essenciais e a perseguição de objetivos estratégicos para as quais foram criadas.
Investir para atender a todos, inclusive àqueles em situação de vulnerabilidade, no caso de serviços públicos essenciais, como são os de saneamento básico, não se coaduna com os interesses imediatistas dos acionistas, mesmo quando o controle acionário continua na mão do estado, como é o caso das sociedades de economia mista.
O pagamento de dividendos acima do mínimo assegurado pela legislação que causa descapitalização do prestador deve ser desestimulado tanto por disposição da Política Federal de Saneamento como por disposições regulatórias mais eficazes.
Confirma-se que a abertura do capital das empresas públicas e sua transformação em sociedades de economia mista administradas como empresas privadas traz riscos significativos à plena realização dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário, como já realçado por Leo Heller, quando relator especial da ONU para esses direitos.
Oportunidade preciosa
Na campanha que o elegeu presidente do Brasil, Lula afirmou que “água tratada é uma obrigação do Estado.” Entre as diretrizes programáticas de sua campanha consta a de nº 74, que afirma: “É importante garantir o direito à água e ao saneamento, por meio do reconhecimento da responsabilidade das esferas administrativas federal, estaduais e municipais na universalização dos serviços de saneamento básico à população brasileira e garantir a atuação das entidades públicas e das empresas estatais na prestação dos serviços de saneamento básico.”
Dessa forma, Lula tem, no contexto da federalização das empresas estatais mineiras, dentre as quais a Copasa, a oportunidade de realizar os compromissos assumidos em sua campanha à presidência, mas que até agora se mostram distantes de se materializaram em seu governo, especialmente a partir do posicionamento de alguns dos seus ministros, apoiando a privatização do saneamento iniciada por Bolsonaro.
Para isso, a proposta de eventual federalização precisa ser construída sob o pressuposto que a realização dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário é o objetivo estratégico que a COPASA deve perseguir, deixando em segundo plano tanto sua posição como ativo no abatimento da dívida de Minas Gerias quanto os interesses imediatistas do mercado.
Esta visão pode se estender a outros estados e prestadoras estaduais, como alternativa aos processo de privatização em andamento ou em fase de estudos, fazendo contraponto com o papel desempenhado pelo BNDES nos últimos anos.
Este é um dos maiores desafios para as forças populares e para os defensores dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário. E essa é a oportunidade para Lula, que já demonstrou não temer desafios, fazer valer suas palavras e seus compromissos de campanha.
[1] Segundo a COPASA os índices foram calculados conforme a Resolução ANA nº 106/2021.
[2] Ver página 260 do Formulário de Referência 2023 versão 15 da COPASA. Estes valores devem ser significativamente elevados pois a Assembleia Geral Extraordinária de 01/11/2023 aprovou um aumento de 40,3% na verba global relativa à remuneração dos membros do Conselho de Administração, do Conselho Fiscal e da Diretoria Executiva.
[3] “O principal objetivo da prática de remuneração (dos administradores) da COPASA MG é estabelecer um sistema de remuneração que auxilie no alinhamento dos interesses dos administradores com os dos acionistas, tendo como referência as melhores práticas de mercado.” Formulário de referência 2023 versão 15, item 8.1.a, página 255.
Excelente artigo, claro e objetivo alerta ao descompromisso com a universalização do saneamento básico. Parabéns!