ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS - Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Ficção à paulista privatiza saneamento

Autor: Amauri Pollachi*

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Talvez a maior farsa das últimas décadas, a privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – SABESP é um dos assuntos de maior destaque em diversos meios de comunicação. Sob o argumento de ampliar investimentos e atender com água e esgotamento sanitário à população de 375 cidades em menor prazo, o Governo Tarcísio de Freitas tenta dilapidar o patrimônio paulista, mediante a venda do controle da mais valiosa empresa de saneamento do Brasil.

Na tese do governo de Tarcísio, sob o controle de um conglomerado privado a SABESP teria maior capacidade de alavancar investimentos. Será que existe mesmo essa vantagem?

Quando se fala em empréstimos para investimentos em infraestrutura, a fixação dos juros para remuneração deste capital e o custo de risco associado são inversamente proporcionais à capacidade de oferta de garantias pelo contratante destes empréstimos. Isto é, quanto menor a garantia apresentada, maior o risco e, consequentemente, mais elevados são os juros cobrados para a operação. Obviamente, quanto maior é o custo financeiro dos investimentos, maior será a pressão dos custos que justificam a elevação das tarifas dos serviços públicos.

É notório que os ativos imobilizados que compõem o patrimônio da empresa prestadora de serviços de saneamento, ou seja, as estações de tratamento, as estações elevatórias, os reservatórios e as tubulações, são bens que estão a serviço público, embora estejam na posse transitória da empresa de saneamento. Esses ativos têm duas características indissociáveis: a sua reversibilidade ao poder concedente municipal ao fim do contrato e a suas inalienabilidade e indisponibilidade. Portanto, não representam garantia real a qualquer financiamento para um contratante, quer seja público ou privado.

Por ser uma empresa de economia mista sob controle acionário do Estado de São Paulo, os empréstimos internacionais contraídos pela SABESP devem ser aprovados pela Assembleia Legislativa e pelo Senado Federal, contando com garantia soberana estatal. No caso de insolvência da SABESP, o Governo do Estado deverá pagar a dívida e subsidiariamente o Governo Federal. Essa dupla garantia de entes federativos representa uma fortíssima garantia ao credor, propícia para contratação de empréstimos a juros mais baixos. No caso específico da SABESP, devido à sua privilegiadíssima avaliação AAA conferida pelas três principais agências mundiais de classificação de risco, os juros que incidem sobre todas as suas operações de financiamento são ainda mais reduzidos.

Por outro lado, se o Estado perder o controle acionário da SABESP, de onde viriam as garantias para os financiamentos? A resposta é evidente: da receita tarifária. Os empréstimos contraídos por empresas privadas de saneamento são garantidos pelo recebimento futuro de tarifas. Portanto, quanto maior a receita tarifária arrecadada pela empresa, maior será a garantia para futuros empréstimos. O interesse principal de controladores privados da SABESP seria o aumento das tarifas e da arrecadação tarifária para possibilitar a alavancagem de maiores valores de capital junto ao mercado financeiro.

Uma eventual redução das tarifas e, consequentemente, da receita causará aumento de taxas de juros e desaceleração de investimentos da empresa privada, pois ela tem como garantia real dos seus financiamentos a sua base tarifária. A Sabesp, como sociedade de economia mista,  não sofre esse efeito com a mesma magnitude por contar, além da receita, com a garantia soberana do acionista majoritário estadual.

Outra discutível vantagem alardeada para a venda da SABESP está em que a empresa privada contrataria obras e serviços sem licitações, portanto em menor prazo de entregas. Trata-se de mais uma peça que não se enquadra na realidade.

Contratar projetos, obras, materiais e equipamentos por meio de processos licitatórios pode parecer, em um olhar apressado, uma desvantagem da empresa pública frente à gestão privada.  No entanto, o processo de licitação pública, amparado em leis recentemente revisadas, busca oferecer maior transparência à população e garantir que se contrate a melhor proposta, com a melhor qualidade e o menor preço da melhor empresa habilitada.

Abrir mão desse processo é expor a empresa a negociações e favorecimentos de grupos ou empresas, inclusive do mesmo controlador. A consequência, via de regra, é a contratação a preços mais elevados e de qualidade inferior com favorecimento de subsidiárias ou de empresas “amigas”, fechando o mercado a poucos fornecedores de “confiança” dos controladores da empresa. Por exemplo, ao invés de promover concorrências entre empresas nacionais para fornecimento de equipamentos, contratam-se diretamente as empresas de seus países de origem que fazem parte da sua holding ou de conglomerados parceiros. A engenharia nacional fica a ver os navios de contêineres atracarem no porto de Santos. A população paulista também. Se os preços forem maiores não haverá prejuízo à empresa privada, pois será mais um argumento comprovado do aumento dos custos de investimento para justificar, mais uma vez, um generoso aumento de tarifas.

Ainda alega o Sr. Tarcísio que o controle da empresa privada terá uma regulação forte por meio de uma agência estatal que estabeleceria: os limites para a definição de tarifas para a população; a adequação da capacidade de pagamento do usuário à necessidade de amortização dos investimentos; e, a promoção da adequação econômico-financeira dos contratos para evitar lucros excessivos e aumentos abruptos de tarifas.

Essa ilusão também se desmancha no ar. As indicações para os cargos de direção das agências reguladoras de serviços públicos seguem critérios predominantemente políticos e sofrem severa interferência do lobby das empresas, cujos dirigentes costumam contribuir em campanhas eleitorais. As agências sofrem de vícios estruturais, uma vez que a sua autonomia é extremamente limitada ao não realizarem concursos, terem quadros absolutamente insuficientes para cumprir com suas atribuições ou praticarem uma política salarial incompatível com as funções de auditoria e controle que exercem. Para tudo dependem de autorização do poder público ao qual estão vinculadas, esse mesmo poder público que alardeia a existência de agências reguladoras, porém, convenientemente as mantém sem empoderamento. O Estado mínimo se expressa no mínimo controle.

Cai por terra a esperança de uma regulação estatal forte para controlar a empresa privada, capaz de manter tarifas acessíveis a todas as camadas da população e a todas as categorias de uso. A insuficiente estrutura das agências de regulação, em que grande parte das informações de controle são auto declaratórias e sequer são objeto de verificação, aliada à pressão política e empresarial que sofrem, demonstram que a privatização do saneamento paulista poderá ser uma aventura ou pior: um mergulho num poço sem fundo.

São óbvios ululantes que o cálculo tarifário em um ambiente privatizado sofre com a elevação de custos financeiros e de contratações “amigas”, que as agências reguladoras se mostram cada vez mais impotentes ante esse quadro dantesco de elevação de tarifas acima da inflação e péssimos serviços prestados e que a deterioração da prestação de serviços é diretamente proporcional à redução do quadro de funcionários e da massa salarial das empresas privatizadas, tal qual ocorreu com empresas de distribuição de energia em território paulista.

A obstinada condução do governo de Tarcísio de Freitas em seguir esse roteiro da privatização do saneamento sem sustentação na realidade é uma peça de ficção de baixa categoria, um filme B de Hollywood que, infelizmente, poderá conduzir milhões de pessoas para o futuro distópico sem água.


*Amauri Pollachi é conselheiro do ONDAS, mestre em Planejamento e Gestão do Território e especialista em saneamento.

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