Autores: Ricardo de Sousa Moretti e Edson Aparecido Silva*
Publicado originalmente no site Jornal GGN em 27 de janeiro de 2024
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Por que a universalização do acesso aos serviços de água e esgotos precisa incluir a meta de interceptar as ligações irregulares entre as redes de águas de chuva e de esgotos? O que estas conexões irregulares têm a ver com a saúde dos cidadãos? Estas são as questões que se pretende aqui debater.
Na concepção do sistema separador, utilizado no Brasil, os esgotos são recolhidos por uma rede que deveria levar a uma Estação de Tratamento de Esgotos e dali para os corpos receptores: rios, córregos, lagos, mar, entre outros (figura 1). As águas pluviais, que seriam teoricamente pouco poluídas, seguem diretamente para o corpo receptor, em tubulações de muito maior dimensão, já que a vazão de águas pluviais é muitas vezes maior que a de esgotos.
Figura 1– Sistema Separador Absoluto (SSA) de esgotos. A linha azul representa o encanamento da água da chuva que vai até um rio. A linha preta representa a rede de esgoto que está ligada a uma estação de tratamento de esgoto e, somente após o tratamento, o efluente é lançado no curso d’água.
Para avaliar essa diferença, tome-se um episódio de chuva de 100 mm, que corresponde a uma altura de água de dez centímetros numa superfície que estivesse exposta à chuva. Em um lote de 200 metros quadrados que esteja impermeabilizado, gera-se em algumas horas um total de 20 mil litros de água que atingem a rua e o sistema de drenagem das águas pluviais, ou seja, 40 caixas de 500 litros de água. O esgoto de uma residência usualmente não ultrapassa 500 litros em 24 horas. Com a crise climática, em 2023, tivemos chuvas extremas, que ultrapassaram 600 mm, em menos que 24 horas, em municípios do litoral paulista.
Além da diferença de dimensões entre as duas redes, há outra distinção relevante no olhar da saúde pública, que é o fato das redes de esgotos serem sifonadas, diferentemente das águas pluviais que não são. O selo hídrico do sifão (figura 2) que está presente nos vasos sanitários, ralos e nas peças hidráulicas de esgoto de um domicílio, é feito para evitar que o mau cheiro atinja o ambiente, mas, principalmente, para evitar o fácil acesso ao esgoto de mosquitos, baratas, ratos e outros animais, que poderiam trazer bactérias presentes nos esgotos para o ambiente onde estão as pessoas. Quando há ligação irregular de esgotos nas galerias e nas estruturas de águas pluviais há o risco de contato desses animais com os esgotos e, portanto, aumenta o risco de transmissão de doenças, ao que se soma o inconveniente do mau cheiro, que pode ser sentido nos bueiros e ralos de água de chuva, em geral.
Figura 2- As redes de esgotos contam com sifões (selos hídricos) para impedir o mau cheiro e o contato direto de insetos com os esgotos.
A conexão dos esgotos na água de chuva tem outras dimensões de saúde pública- a água de chuva, contaminada por esgotos atinge os lagos e rios, que mais adiante são utilizados como mananciais, o que torna mais oneroso e arriscado o tratamento da água para consumo humano. Os rios, lagos e praias são também utilizados para banho, apesar de receberem águas de chuva contaminadas com esgotos. Isso acontece mesmo onde, teoricamente, existe coleta e tratamento de esgotos disponível. Já se observa em vários locais do Brasil um processo problemático de cidades ou bairros 100%, em que há 100% de coleta de esgotos, 100% de tratamento de esgotos e 100% dos córregos e praias seriamente contaminados pela presença de esgotos, colocando em risco a saúde das pessoas.
As interconexões irregulares também fazem com que a água da chuva seja desviada para a tubulação de esgoto. Conforme explicado, quando chove, o fluxo de água da chuva é muitas vezes maior que o fluxo de esgoto, então a quantidade total de água residual a ser tratada na estação de tratamento de esgoto é muito maior durante os períodos de chuva. Geralmente, essas plantas não são equipadas para lidar com o volume adicional e seu funcionamento fica comprometido. A água da chuva em dutos de esgoto, que foram projetados com diâmetros menores para transportar muito menor vazão, também causa transbordamento. Esse transbordamento altera o regime de fluxo, adiciona pressão aos tubos e provoca a reversão do esgoto para dentro de casas situadas em terrenos baixos. Faz também que o esgoto atinja, irregularmente, as praias, rios e corpos receptores em geral.
Identificação de interconexões
Identificar as interconexões de água da chuva em dutos de esgoto não é uma tarefa fácil. É necessário medir e controlar a vazão em seções delimitadas do sistema de esgoto para localizar a infiltração irregular da água da chuva. Se a vazão na seção do tubo de esgoto analisada for maior do que o normal quando chove, é porque a água da chuva está entrando indevidamente na rede de esgoto em um local a montante. Quanto maior o número de pontos de controle de vazão, mais fácil é identificar onde está localizada a interconexão. Outra abordagem é a injeção de fumaça nas tubulações de esgoto. Tecnicamente, a fumaça não deveria sair deles porque o sistema de esgoto é protegido por sifões para evitar que o mau cheiro entre nos domicílios. No entanto, os dutos de água da chuva usualmente não têm sifão ou outro tipo de selo hídrico e, portanto, se houver uma interconexão entre os dois sistemas, a fumaça aparecerá nos ralos, possibilitando identificar a interconexão irregular.
O inverso, encontrar vazamentos de esgoto no sistema de águas pluviais é ainda mais complexo. Um procedimento básico é introduzir um corante em vasos sanitários e outros acessórios hidráulicos que direcionam os resíduos para a rede de esgoto e investigar se o corante chega ou não ao sistema de águas pluviais. Essa estratégia exige que um técnico entre em todos os domicílios tornando necessária uma campanha e operação ambiental massiva para que a operação seja viável. Outra abordagem, de alta tecnologia, é inspecionar os dutos de água da chuva durante os períodos de seca com um robô equipado com uma câmera para localizar pontos de descarga irregular de esgoto. Esta operação exige um planejamento detalhado e o robô deve ser projetado especificamente para a tarefa, pois todos os tipos de detritos são encontrados dentro da tubulação de água da chuva.
O Desafio de uma Política Pública de Interrupção de Interconexões
Além das dificuldades técnicas discutidas acima, existem também dificuldades institucionais que limitam e dificultam os esforços de desconexão. Os órgãos responsáveis pela manutenção das tubulações de águas pluviais e pela operação do sistema de esgoto, usualmente, não são os mesmos e cada um deles busca transferir a responsabilidade da desconexão para o outro. O fato dos dutos de água da chuva e de esgoto serem estruturas enterradas complica a questão porque as irregularidades não são visíveis.
O fornecimento de água potável geralmente é cobrado com uma tarifa que inclui o esgotamento sanitário, quando o serviço está disponível. Já a manutenção do sistema de água da chuva usualmente não é tarifado, sendo coberto diretamente pelos impostos. O modelo predominante de prestadoras de serviços de água e esgoto visa a cobertura das despesas integralmente com as tarifas arrecadadas e inclui o lucro quando o serviço é privatizado. A pressão por um resultado financeiro lucrativo, combinada com a falta de preocupação com a qualidade adequada da água urbana, desencoraja as prestadoras de serviços de água e esgotos a encontrar e desconectar conexões irregulares entre a água da chuva e os sistemas de esgoto já que não têm benefício financeiro direto pela ação. Este problema deve se agravar no contexto de ampliação do número de contratos de prestação de serviços de água e esgotos privatizados. Em ambos os casos, quer seja pública ou privada a prestação o serviço, é fundamental que o contrato entre o município e o prestador inclua metas de avanço na interceptação das ligações irregulares, que pode ser feito indiretamente através do estabelecimento de metas de melhoria da qualidade da água dos corpos receptores.
No momento em que a universalização do acesso aos serviços de água e esgoto se coloca como prioridade na busca de melhoria da saúde pública, considera-se fundamental avançar nas ações de interceptação entre as redes de águas pluviais e de esgotos, o que exige um olhar focado no problema e uma integração entre os diferentes órgãos que cuidam dessas redes.
*Ricardo de Sousa Moretti- professor visitante da UnB e integrante do BrCidades e do ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamentoe membro da Rede BrCidades
Edson Aparecido Silva- sociólogo, mestre em planejamento e gestão do território pela UFABC e secretário executivo do ONDAS.