ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS - Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Mobilização social barrou a privatização do saneamento em Jaguariúna/SP

Autores: Renata Furigo, Igor Tadeu de Araújo e Marcos Montenegro*

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Em 30 de agosto passado o Prefeito Gustavo Reis (MDB) comunicou que havia desistido do projeto de privatização dos serviços de saneamento básico de Jaguariúna – SP, cidade de 61 mil habitantes localizada na Região Metropolitana de Campinas. O anúncio foi feito em reunião com funcionários do Departamento de Água e Esgoto da Prefeitura e com representantes do Comitê em Defesa da Água (CDA).

No último ano da sua segunda gestão, não podendo mais concorrer à reeleição, o prefeito resolveu privatizar os serviços de água, esgoto e resíduos sólidos da cidade, em um processo marcado por peculiaridades, no mínimo, estranhas.

Tal processo teve início com a contratação de uma consultoria de engenharia no começo deste ano para realizar um estudo de viabilidade visando à participação privada nos serviços de saneamento, que ficou pronto em apenas quatro meses. A contratada foi a Fundação Vanzolini, entidade privada formada por professores da USP, que ficou encarregada de estruturar o arcabouço de venda do patrimônio público, sob o pretexto de “prestação de serviços de apoio técnico/consultoria técnica para avaliação do atual modelo de gestão e estruturação de modelagens, visando à participação de agentes privados na gestão dos serviços de saneamento básico” (1).

A contratação foi feita sem licitação (declarando-se o notório saber da Fundação Vanzolini), e sem a participação dos servidores da área de saneamento, que só ficaram sabendo do contrato quando publicado no Diário Oficial, no dia 12 de janeiro de 2024. Curiosamente, a Fundação delegou a elaboração do estudo foi outra empresa, chamada Instituto Movimento Cidades Inteligentes (IMCI), entidade próxima tanto do prefeito Gustavo Reis (MDB), quanto do secretário do Meio Ambiente, Matheus Ranzani, e que realizou o trabalho em pouquíssimo tempo, sem visitar as instalações da cidade, sem entrevistar os técnicos dos serviços e sem conhecer as realidades sociais e ambientais locais.

Um evento estranho era sucedido por outro, e sob o olhar atento dos servidores municipais, verificou-se que a contratação apressada e sem concorrência da Fundação foi feita no apagar das luzes do ano de 2023, para aproveitar a vigência da Lei de Licitações nº 8.666/1993, que foi revogada em janeiro de 2024. A Nova Lei de Licitações é muito mais detalhada e rígida para processos de compra da Administração Pública.

Em junho, foram disponibilizados para consulta pública os resultados do estudo, contendo o termo de referência, a minuta do contrato de concessão, dentre outros documentos que embasariam o processo de entrega do patrimônio público à iniciativa privada.

No mesmo mês, a administração enviou para a Câmara Municipal um projeto de lei que criava a Sociedade de Água e Esgoto de Jaguariúna (SAEJA), uma empresa de economia mista que seria objeto de privatização posterior. A Prefeitura alegava, com base nos estudos técnicos, que os investimentos necessários à universalização dos serviços não seriam possíveis sem a atuação da iniciativa privada.

Também causaram estranheza aos servidores do DAE os eventos de falta d’água que passaram a acontecer em meados de 2023, e de forma inexplicável se agudizaram desde o início do ano de 2024. No contexto já caracterizado,  formou-se uma grande suspeita de que as falhas do sistema eram propositais com o intuito de desqualificar o serviço público de abastecimento de água e causar revolta na população.

O processo tentava esconder os avanços na melhoria dos serviços de saneamento da cidade. Artigo recente intitulado Jaguariúna: Rumo à Universalização dos Serviços de Saneamento destaca o aumento no índice de tratamento de esgoto de 24,50% em 2009, para 95,81% em 2022, com 98,02% do esgoto coletado. As Estações de Tratamento de Esgoto passaram por processos de modernização com a substituição de produtos químicos para melhorar a qualidade do tratamento, como a utilização de policloreto de alumínio (PAC) para a remoção de fósforo e a troca dos aeradores para a otimização da remoção de matéria orgânica do sistema (2). Em 13 anos, a cidade melhorou significativamente seu serviço público de esgotamento sanitário, apenas utilizando a expertise de servidores públicos especializados. Os dados mais recentes apontam que os serviços saneamento da cidade alcançaram 98,25% de esgoto coletado e tratado e 99,98% de abastecimento de água (3). Esse feito, vale destacar, foi realizado a partir da administração pública direta, que apesar de ter diversas limitações em seu modelo de gestão, foi capaz de elevar os índices de saneamento da cidade.

Apesar da experiência dos funcionários públicos do setor de saneamento, o IMCI nunca recorreu a eles para conhecer os serviços ou obter informações precisas e atualizadas sobre os sistemas de água e esgoto da cidade. O estudo realizado apresentou dados completamente defasados, obtidos a partir do Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB) de 2014. Em um dos documentos apresentados como resultado dos estudos, exibe-se a Estação de Tratamento de Esgotos (ETE) Camanducaia com 3 unidades de tanques de aeração – decantadores (5), sendo que desde 2014, a estação opera com 4 tanques de aeração, seguidos de 4 decantadores. Uma mera atividade de observação de campo seria capaz de apontar um erro grotesco como esse, que somado a tantas outras questões, descredibilizaram totalmente o “estudo” realizado pelo IMCI e pela Vanzolini.

Por todas estas razões a decisão do Prefeito Gustavo Reis, secundado pelo Secretário de Meio Ambiente, Matheus Ranzani, despertou não só a indignação de servidores públicos do Departamento de Água e Esgoto (DAE), mas de parcela significativa da população jaguariunense, que reagiu de forma organizada, com a formação do Comitê em Defesa da Água (CDA). O CDA ocupou ruas e movimentou as redes sociais, mobilizando um enorme contingente de pessoas contra a privatização. O Comitê organizou manifestações semanais de protesto, cobrou posicionamento de vereadores, denunciou o processo ao Ministério Público, convocou audiências públicas, até conseguir que o Prefeito recuasse publicamente, retirando o projeto da agenda política municipal.

O Comitê em Defesa da Água (CDA) foi formado no dia 17 de março, após uma assembleia sindical em que servidores e ativistas sociais se juntaram para discutir o avanço das intenções privatistas no setor de saneamento da cidade. Desde o começo, o entendimento de que a superação da privatização somente viria a partir da mobilização popular era muito clara e que isso somente seria possível organizando diferentes setores da sociedade civil no Comitê. Desde então, diversas atividades foram organizadas, como atos públicos, panfletagens, faixaços nas rotatórias de alta circulação de veículos, participação nas audiências e sessões ordinárias, conversas com lideranças de bairros e agitação digital nas redes sociais.

O CDA também se dedicou em estudar as experiências de concessão dos serviços de saneamento para dialogar concretamente com a população. Um dos casos mais significativos é o que houve na cidade de Itu/SP, a cerca de 90 km dali, que fez a concessão dos serviços de água e esgoto em 2007, passando a gestão para a empresa Águas de Itu. Durante a crise hídrica de 2014 a população ficou sem água durante 15 dias e enfrentou um racionamento por 11 meses. Em 2015, após anos de descaso e revolta da população, a prefeitura remunicipalizou os serviços e até hoje se esforça para, com seus próprios recursos, garantir segurança hídrica para a população. Segundo a Prefeitura de Itu, a empresa privada não era transparente em seus processos técnicos e contábeis, aumentou muito a tarifa, sucateou os equipamentos, promoveu racionamento de água e descumpriu obrigações de investimentos na ampliação e melhoria dos serviços de abastecimento e tratamento de água (9). Quem acompanha as histórias de privatização da água e do saneamento no Brasil e no mundo sabe que as promessas de melhorias dos serviços são falsas, e o que se busca é apenas o enriquecimento de acionistas das empresas.

Apesar dos bons índices de saneamento, os funcionários do DAE de Jaguariúna demonstraram para a população que o atual estágio de precarização dos serviços de água é fruto da falta de investimentos, que por sua vez, resulta de escolha feita pelos governantes. Nos últimos anos, os governos municipais se preocuparam apenas com a expansão da cidade para atender aos interesses do capital imobiliário. Este processo que devasta bosques e florestas e provoca assoreamento de rios e córregos, vem acompanhado de omissões de agentes políticos na negociação de contrapartidas financeiras necessárias para os investimentos na ampliação dos serviços de água e esgoto. De forma recorrente, amplia-se a área urbana da cidade para valorização de terras privadas, mas os investimentos em infraestrutura são custeados pelos impostos e tarifas que a população paga aos cofres públicos.

O CDA se organizou também com a finalidade de disputar a narrativa na sociedade. Demandas aparentemente distintas – meio ambiente, probidade administrativa, transparência, cobrança de tarifas, crise hídrica, falta de serviços públicos, de maneira orgânica se resumiram em: “a água não é mercadoria” e “a água é do povo”. Com estas palavras de ordem, as pessoas panfletaram, uniformizaram camisetas, colocaram faixas nas rotatórias da cidade, e convocaram audiências públicas para pautarem o debate, sem permitir que o Prefeito, o Secretário de Meio Ambiente, ou mesmo o IMCI, capturassem o momento a seu favor.

O ONDAS foi chamado a participar deste processo, e de fato, o movimento do CDA era tão envolvente que rapidamente representantes do Observatório estavam participando das audiências públicas, fazendo discursos e acompanhando os gritos de guerra. Mais do que isso, o CDA solicitou reuniões, pediu informações e esclarecimentos e até mesmo oficinas de capacitação antes de cada passo do movimento. Esse trabalho inspirou algumas medidas, tais como a mobilização para coleta de assinaturas para um Projeto de Lei de Iniciativa Popular (PLP) com a finalidade de alteração da Lei Orgânica do município. Um dos principais pontos trazidos com essa iniciativa é a de demandar a realização de um plebiscito em futuros casos de concessão ou privatização no saneamento. Além disso, o movimento social tem pautado como alternativa à administração direta, modelo atual de prestação dos serviços, a criação de uma autarquia municipal com forte controle social. A proposta do CDA é pautar o projeto na Câmara Municipal, e quando da aprovação, participar da organização administrativa e financeira da autarquia. Outras demandas foram reconhecidas pelos participantes do movimento, como por exemplo, atualizar o Plano Municipal de Saneamento Básico e se dedicar à captação de recursos federais para realização de investimentos de curto, médio e longo prazo.

Quando comunicou a desistência desseguir com a privatização o Prefeito Gustavo Reis tentou justificar-se dizendo que “O estudo (…) tinha o objetivo de nos guiar, mas, ao ouvir atentamente nossas comunidades, cheguei à conclusão de que este não é o caminho que devemos seguir. Não vamos mais ter privatização. Agora, nosso desafio é buscar alternativas para garantir que os investimentos necessários sejam feitos para garantir o abastecimento de água para a população” (10).

Segundo a imprensa local, o prefeito foi provocado pelo Ministério Público Estadual a tomar esta decisão, já que o GAEMA (Núcleo Campinas do Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente) recomendou a suspensão dos trâmites até que se pudesse analisar a documentação à luz da legislação federal (11).

Pôde-se perceber, na imprensa hegemônica, um processo de negação da força motriz do movimento popular (CDA), desqualificando a força popular, porque se a reconhecer, corre-se o risco de ela se propagar rapidamente e desmontar estruturas de poder muito rígidas e arcaicas. Mas, não há como negar: a reação da população foi muito organizada, rápida e pragmática, disputando com vigor e destreza, os espaços de debate e influência política. As redes sociais foram o catalisador, mas a reunião de pessoas com distintos interesses em torno de um único objetivo foi a ponta da lança, que derrubou o projeto, que cutucou as instituições e mudou o rumo da história da cidade. Jaguariúna se livrou, pelo menos por hora, de 35 anos sombrios de saneamento privado e elitista.

Referências


*Renata Furigo e Marcos Montenegro integram a coordenação do Observatório Nacional dos Direitos á Água e ao Saneamento (ONDAS). Igor Tadeu é analista do DAE de Jaguariúna e militante do Comitê em Defesa da Água.

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