ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS - Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Nada de novo no front: com o Decreto n.º 11.964/24 o Governo Federal segue como agente incentivador das privatizações em saneamento

Autor: Haneron Victor Marcos*

_____________________

O título é provocador, não gratuitamente. Resta saber, se um incentivador consciente ou inconsciente, mas para isso é preciso que a Casa Civil abra suas portas para esclarecer ao setor público.

Do Presidente Lula ainda não tivemos a oportunidade de ouvi-lo reafirmar sua posição principiológica sobre os serviços públicos essenciais de saneamento, que carecem, no plano da justiça social, das rédeas do Estado. Entretanto, do BNDES sob o comando de Aloizio Mercadante, nada na superfície mudou da postura privatista reinante na gestão Bolsonaro.

E não foi por falta de aviso, eis que insistentemente alertado pela Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), pela Federação Nacional dos Trabalhadores em Água, Energia e Meio Ambiente (FENATEMA), e pelo Observatório Nacional dos Direitos Humanos à Água e ao Saneamento (ONDAS), por exemplo.

O pipeline de projetos de saneamento do BNDES que em 2021 ostenta as privatizações em Alagoas e Rio de Janeiro, esteve nos dois primeiros trimestres de 2022 adormecido, e a partir de então passou a ostentar projeto de PPP no Ceará (melhor valor de outorga), a privatização da CORSAN, e de concessão ou PPP (melhor valor de outorga) em Sergipe. Esses são os publicizados ao grande público, restando saber os inúmeros em fase germinal.

A outorga – contrapartida que o privado paga ao poder concedente pela exploração de um serviço público – segue figurando como um dos fatores determinantes aos gestores estaduais ou municipais à decisão sobre a privatização dos serviços de saneamento. Além de onerar as tarifas de um direito humano que já deveria estar alijado dos princípios mercadológicos, é um “abre portas” para toda sorte de desvios de finalidade, e mesmo corrupção.

É uma figura contraditória, inclusive, com os objetivos de universalização. Alex M. S. Aguiar, Conselheiro de orientação do ONDAS, adverte que as outorgas vêm consumindo o potencial de investimentos efetivos no setor; do exemplo da outorga de Alagoas (R$ 3,655 bilhões) extrai-se que superará o que na prática será investido diretamente em saneamento, da mesma forma com Rio de Janeiro (outorga consumindo 76% dos investimentos), e Amapá (com 24%).

Leilão do sistema de água e esgoto da cidade de Ourinhos (SP) realizado em abril de 2024 redundou na vitória do consórcio GS INIMA com o compromisso de investimentos em 30 anos na ordem de R$ 200 milhões, enquanto somente de outorga serão pagos R$ 277,5 milhões pela empresa. Resolve-se o caixa geral da prefeitura em detrimento das brechas públicas de saneamento e da modicidade tarifária.

Nessa esteira incentivadora, consectária da – sofista – Lei Federal n.º 14.026/20, em 26 de março de 2024 advém o Decreto Federal n.º 11.964, que regulamenta a emissão das “debêntures de infraestruturas” (Lei Federal n.º 14.801/24) e das “debêntures incentivadas” (Lei Federal n.º 12.431/11), alardeado – e em um contexto geral de maneira escorreita – com o objetivo de fomentar a execução de projetos essenciais para o país, considerados prioritários na área de infraestrutura, ou de produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação; pautas que definem a possibilidade de financiamento impulsionado por essas debêntures, que contam com incentivo fiscal. Como anunciou o Ministério da Fazenda, para área de infraestrutura, serão prioritários somente os projetos cujas ações sejam objeto de concessão, permissão, autorização ou arrendamento, o que se adequa ao conceito de debêntures, próprias de uma relação mercadológica e não de atuação direta do Estado.

O Decreto pode se mostrar alvissareiro para o incentivo – fiscal, e consequentemente material – para inúmeros setores prioritários ao desenvolvimento do país. Sem embargo, o maligno pode surgir também dos detalhes, e ele foi embutido, como lhe agrada, na nebulosidade.

Acanhada no §2º, do art. 5º, está a afirmação de que “a emissão dos valores mobiliários com benefícios fiscais fica limitada ao montante equivalente às despesas de capital dos projetos de investimento”. A intenção aparente daqueles que patrocinaram – ideologicamente – a inclusão desse dispositivo que em primeira ordem soa inofensivo, foi a de atrair ao conceito de despesa de capital (CAPEX) o valor das outorgas a serem pagas nos vindouros leilões de saneamento.

Essa impressão se reforça quando o atual Decreto regulamentador revoga, in totum, o antigo Decreto Federal n.º 8.874/16 que era expresso em dispor que “as despesas de outorga dos empreendimentos de infraestrutura fazem parte do projeto de investimento” (§3º, art. 2º). Essa previsão foi excluída da novel regulamentação, injetando, aliada aos precedentes, insegurança que volta a abalar o setor de saneamento, fundamentalmente para aqueles que erguem os pavilhões do saneamento público, enquanto direito humano.

Tudo isso se afina com o fato de que dias antes da publicação do Decreto notícias davam conhecimento da insatisfação do mercado e da associação nacional das concessionárias privadas de água e esgoto (ABCON) sobre a possibilidade de uma restrição. De última hora, a Casa Civil teria cedido aos argumentos da área econômica do governo e a pedidos parlamentares.

Espera-se que, a partir das portarias ministeriais setoriais (art. 15, Decreto Federal n.º 11.964/24), ocorra – em regulamentação complementar – uma democratização do debate, para que reste evidente e indene de dúvidas quais as rubricas do CAPEX estarão abraçadas para os incentivos fiscais e procedimentais inerentes às debêntures incentivadas e de infraestrutura. Entretanto, se a inclusão da outorga no contexto do CAPEX derivou de uma negociação com os representantes do setor privado, prescindível a vidência para sabermos o resultado final; seria mera aplicação da interpretação teleológica.

Se expurgarmos os valores de outorga, advindos no modelo pós-Lei Federal n.º 14.026/20 (equivocadamente nomeada de “novo marco do saneamento”), a percepção de que a evolução verdadeira se deu no ambiente do PLANASA e mesmo da atacada Lei Nacional do Saneamento Básico (Lei Federal n.º 11.445/07) é inapelável.

É preciso que o Governo Lula defina esse seu “politeísmo”, ou reza para o “deus mercado”, ou para Pachamama; os dois, em matéria de direitos humanos (saneamento), não têm acordo.


Fontes:

Aguiar, A. M.S.. (2022). As outorgas e a exploração privada dos serviços de saneamento. https://ondasbrasil.org/as-outorgas-e-a-exploracao-privada-dos-servicos-de-saneamento/

Arbex, P. (2024). Debêntures incentivadas: Governo quer (de novo) mexer no que funciona. https://braziljournal.com/debentures-incentivadas-governo-quer-de-novo-mexer-no-que-funciona/

Com atuação do BNDES, governo muda e permite pagamento de outorga de concessões com debêntures incentivadas. https://agenciainfra.com/blog/com-atuacao-do-bndes-governo-muda-e-permite-pagamento-de-outorga-de-concessoes-com-debentures-incentivadas/

GS INIMA vence o leilão de concessão de água e esgoto em Ourinhos, no interior de São Paulo. https://www.gsinimabrasil.com.br/noticias/gs-inima-vence-o-leilao-de-concessao-de-agua-e-esgoto-em-ourinhos-no-interior-de-sao-paulo/


*Haneron Victor Marcos – Doutor em gestão pública e governabilidade (UCV/PE), mastère spécialisé em gestão da inovação (Emse/FR), procurador e conselheiro de administração da CASAN, coordenador de assuntos jurídicos do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS)

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *