PARA ADOCICAR A VENDA DA COMPANHIA, GOVERNADOR DE SP ANUNCIA REDUÇÃO NA CONTA DE ÁGUA. MAS ESCONDE QUE ELA FICOU MAIS CARA NESTE ANO, COM REAJUSTE ACIMA DA INFLAÇÃO. FIZEMOS AS CONTAS: “BENEVOLÊNCIA” SEQUER DÁ PARA COMPRAR UM CAFEZINHO NA PADARIA
Autores: Amauri Pollach e Cláudio Gabarrone*
Publicado originalmente no site Outras Palavras em 26 de julho de 2024
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Anunciada como o marco inicial da gestão privada da Sabesp, maior empresa de saneamento das Américas, a redução em suas tarifas após finalização do processo de desestatização da empresa parece uma promoção duvidosa em período de black friday.
O governo estadual paulista anunciou ter cumprido seu compromisso de redução de tarifas, após fechar o negócio de venda de 15% de suas ações na Sabesp para a Equatorial Energia, que será a acionista de referência e de comando, e de outra parcela de 17,3% de suas ações para fundos de investimento selecionados e um punhado de pequenos investidores.
A partir de 23/07, houve redução de 1% para a tarifa residencial, 10% para as tarifas residenciais social e vulnerável, e 0,5% para outras tarifas, aplicáveis somente à primeira classe de consumo.
Qual será o impacto desse benefício para a empresa, agora sob comando privado? Qual será o impacto para o bolso de mais de 30 milhões de pessoas atendidas pela empresa?
Para responder às questões, é preciso melhor compreender como funcionam os cálculos dessas tarifas.
Desde 2008, a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp) regula, controla e fiscaliza a Sabesp e – mais importante para o bolso do consumidor – estabelece as tarifas praticadas pela empresa. Anualmente, em maio, a Arsesp autoriza um reajuste que considera a inflação e o eventual aumento em alguns insumos com forte impacto em suas despesas, como energia elétrica.
A cada período de quatro anos há um processo de revisão tarifária com ampla discussão pública, atualizando-se a base de ativos e a projeção dos investimentos previstos para os quatro anos seguintes. Dentro desse período se faz apenas uma revisão anual das tarifas, mais simples que considera índices de inflação e eventuais impactos significativos em custos específicos, como energia elétrica.
Em 8 de abril de 2024, com o processo de privatização em marcha acelerada, a Arsesp, por meio da Deliberação nº 1.514, autorizou a Sabesp reajustar as tarifas em 6,4469%, a partir de 10 de maio. No período dos doze meses anteriores a inflação foi de 4,4964%, medida pelo IPCA, isto é, o reajuste anual foi praticamente 2% acima da inflação, apesar da empresa ter obtido um lucro recorde superior a 3,5 bilhões de reais. Um número considerável e incomum de ajustes compensatórios foi proposto pela Sabesp e admitido pela Arsesp sem qualquer discussão pública.
Considerando as tarifas reajustadas acima da inflação desde maio/2024 e a redução tarifária atrelada à privatização, como ficará a receita da empresa?
Com base em uma proporção para as categorias de consumidores no faturamento da empresa e considerando que o benefício anunciado é aplicável somente à primeira classe de consumo, isto é, para o consumo mínimo de 10 m³/mês, o quadro a seguir mostra o impacto por categoria de consumidor sobre a receita da empresa.
O “descontão” da privatização causará uma perda da ordem de 0,16% na receita da empresa. Isto é, a redução de tarifas “reduz” o recente reajuste de 6,45% para 6,29%, um valor praticamente insignificante e que fica muito bem acomodado na “gordura” de 2,0% acima da inflação obtida. Praticamente não há arranhão para o excepcional negócio dos investidores que adquiriram ações da Sabesp na black friday paulista.
Vá lá! Ao menos ficará mais cheio o bolso dos consumidores, principalmente daqueles mais vulneráveis. Então, vamos avaliar o real impacto para as categorias residenciais
Deixamos de lado as demais categorias (comercial, industrial, assistencial e pública) em que a redução de 0,5% no consumo mínimo tem impacto irrelevante, tanto na receita da Sabesp quanto nas despesas das empresas.
Consideremos o valor da conta mensal de água e esgoto para uma família que resida no município de São Paulo, em que a Sabesp arrecada mais de 45% de sua receita e o CadÚnico registrava 1.025.006 famílias em situação de vulnerabilidade, em janeiro 2024.
Em São Paulo, o consumo médio mensal por domicilio é cerca de 15m³, volume de água que atende as necessidades de uma família de três pessoas.
Como se aplica a cobrança pelos serviços de água e esgoto prestados para essa família?
A tabela de tarifas está organizada por classes de consumo. A primeira classe é de 0 a 10 m³ por mês e corresponde a um valor fixo, cobrado mesmo que o consumo tenha sido abaixo de 10 m³. A partir da segunda classe, de 11 a 20 m³ por mês, o valor da tarifa é estabelecido por metro cúbico consumido.
A família paulistana do nosso exemplo, ao consumir 15m³ no mês tem a conta calculada pela soma de duas parcelas, tanto em água como em esgoto: a primeira com o valor fixo da primeira classe, e a segunda com o valor unitário da segunda classe multiplicado por 5 (cinco).
Há três categorias de tarifas residenciais aplicáveis: (i) vulnerável, se a(o) chefe de família estiver cadastrada(o) no CadÚnico e a renda familiar por pessoa está abaixo de R$218,00; (ii) social, se estiver no CadÚnico e a renda por pessoa está entre R$ 218,00 e ½ salário mínimo; e (iii) comum, quando não se aplicam as condições anteriores.
O quadro a seguir mostra, para as três categorias possíveis de enquadramento tarifário residencial, qual seria o valor da conta mensal da família paulistana que consome 15 m³ comparando-se as tarifas da tabela antes da privatização com as da tabela vigente após a privatização.
Observe que a redução – anunciada com grande alarde – foi somente na primeira faixa de consumo: 1% para a residencial comum e 10% para a social e a vulnerável.
Ofertada pelo governo Tarcísio imediatamente após a privatização da Sabesp, a benevolente redução, em reais, sequer possibilita a uma família com tarifa social comprar um cafezinho coado na padaria!
Para uma família com tarifa vulnerável não dá para comprar dois pãezinhos por mês!
Para quem tem renda acima de um salário mínimo, os 76 centavos de desconto chegam a ser um escárnio!
Portanto, é inconcebível festejar e fazer alarde sobre um não-benefício, totalmente distante da realidade e das necessidades cotidianas das pessoas.
O governo paulista poderia ter eliminado há quase um ano um prejudicial e injustificável prejuízo para o bolso das pessoas de baixa renda atendidas pela Sabesp. Mais de 1,5 milhão de famílias mais vulneráveis no estado de São Paulo sofrem com o descaso (ou sonegação) de acesso ao benefício de tarifas reduzidas da Sabesp. Por que isso acontece e o que tem a ver com a privatização da Sabesp?
SILVA e POLLACHI (2024)1 mostram que, em 2021, a Deliberação nº 1.150 da Arsesp determinou que a Sabesp incluísse todos usuários inscritos no CadÚnico nas categorias de tarifas vulnerável ou social2 até setembro de 2023. Mediante dados obtidos na Sabesp e no CadÚnico, o estudo demonstra que 964.720 moradias estavam enquadradas nas categorias social e vulnerável em dezembro de 2023. No entanto, vencido o prazo estipulado pela Arsesp, 1.698.112 famílias não estavam atendidas com tarifas reduzidas. Na cidade de São Paulo, há 462.466 famílias que não foram “agraciadas” com esse direito.
A data limite para que todas os potenciais beneficiários fossem atendidos com redução de tarifas era setembro de 2023. Entretanto, a partir de janeiro de 2023, quando se iniciou a atual gestão estadual, houve um freio no enquadramento de famílias levando a esse gigantesco “estoque” à espera do benefício, 75% superior à quantidade atendida.
O impacto no orçamento familiar é enorme. Para um consumo de 15m³ por mês, o valor da conta residencial comum de água e esgoto é de R$ 136,02. Com a tarifa vulnerável a conta cai para R$ 26,72 uma economia de R$ 109,30, que equivale a mais de 20 kg de arroz.
O cadastramento em tarifas reduzidas para mais de 1,6 milhão de famílias (ou 4 milhões de paulistas) está injustificavelmente atrasado há quase um ano!
A redução de tarifas trombeteada pelo governo Tarcísio é mais uma camada de vergonha nesse processo de privatização da Sabesp a preço vil.
Enquanto isso, as pessoas mais pobres são tratadas como massa de manobra e descaso com o seu direito de pagar muito menos pela conta d’água. Quiçá serão atendidos mediante um conveniente casamento de datas a partir da privatização da Sabesp, que ocorreu, como desejava o governo, antes do período das campanhas eleitorais municipais.
1 SILVA, Edson A.; POLLACHI, Amauri. Para privatizar a Sabesp, governo Tarcísio joga contra a população. Carta Capital, 29/06/2024. Disponível em https://www.cartacapital.com.br/blogs/br-cidades/para-privatizar-a-sabesp-governo-tarcisio-joga-contra-a-populacao/
2 Tarifa Vulnerável é aplicada para famílias com renda média por pessoa de 0 a 238 reais, enquanto a Tarifa Social atende famílias com renda média por pessoa de 238 reais a ½ salário mínimo.