Autores: Amauri Pollachi e Cláudio Gabarrone*
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Ao contrário do que anuncia o governo Tarcísio de Freitas, se a Sabesp for privatizada a conta d´água tende a aumentar muito mais que a inflação.
O governo tem divulgado que, após a privatização da Sabesp, haverá redução de 1% nas tarifas residenciais, 0,5% nas tarifas de consumidores comerciais e industriais e de 10% para as famílias que estão cadastradas em tarifa social ou vulnerável.
Entretanto, esse aparente benefício é similar às “promoções” na época de black friday, em que a loja oferece um grande desconto de 30% no preço de um produto que pouco tempo antes teve um aumento de 40%.
Para melhor entender o que está prestes a acontecer no preço das contas d’água da Sabesp, é preciso esclarecer como funcionam os cálculos de suas tarifas.
Desde 2008, a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp) regula, controla e fiscaliza a Sabesp e – mais importante para o seu bolso – estabelece as tarifas praticadas pela empresa. Anualmente, em maio, a Arsesp autoriza um reajuste que considera a inflação e o eventual aumento em alguns insumos com forte impacto em suas despesas, como energia elétrica.
Em 8 de abril, a Arsesp autorizou a Sabesp reajustar as tarifas em 6,4469%, a partir de 10 de maio. No período dos doze meses anteriores a inflação foi de 4,4964%, medida pelo IPCA, isto é, o reajuste anual está praticamente 2% acima da inflação, isso apesar da empresa ter obtido um lucro superior a 3,5 bilhões de reais.
Um número considerável e incomum de ajustes compensatórios foi proposto pela Sabesp e admitido pela Arsesp sem discussão pública, resultando no cálculo de reajuste mostrado na tabela a seguir, elaborada com base na Deliberação Arsesp nº 1.514.
Vigente o reajuste desde maio de 2024, qual seria o impacto sobre a receita da Sabesp com as reduções de tarifas divulgadas pelo governo estadual para entrar em vigor após a privatização? Haveria algum prejuízo para os futuros “donos” da Sabesp?
Com base em uma proporção para as categorias de consumidores no faturamento da empresa e considerando que o anunciado desconto seria para todas as faixas de consumo, isto é, desde o mínimo de 10m³/mês até acima de 50m³/mês, obtivemos o impacto na receita da empresa por categoria e total.
O “descontão” da privatização, coincidentemente anunciado após autorização do reajuste tarifário, causará uma perda em torno de apenas 0,8% na receita da empresa. Isto é, a redução de tarifas “reduz” o reajuste de 6,4% para 5,6%, um valor 1,2% acima da inflação no período. Um ótimo negócio para os investidores da Sabesp na black friday paulista.
Contudo, para os consumidores da Sabesp não será um bom negócio. Se privatizada a empresa, os próximos reajustes surpreenderão os consumidores com tarifas aumentadas muito acima da inflação novamente.
Sem qualquer discussão pública específica, o governo paulista alterou todas as regras de regulação tarifária, destruindo um modelo implantado há anos pela Arsesp e considerado como referência em todo o país.
Até hoje, a cada período de quatro anos há um processo de revisão tarifária com ampla discussão pública, atualizando-se a base de ativos e a projeção dos investimentos previstos para os quatro anos seguintes. Ao final desse processo aplica-se um coeficiente redutor sobre a tarifa, o chamado Fator X, que busca repartir com os consumidores os ganhos de eficiência alcançados pela Sabesp, obtendo-se então o preço base de tarifa para os próximos quatro anos.
Ao invés da política tarifária que considera um plano de negócios para o futuro, atrelada à venda da Sabesp impõe-se uma regra voltada para o passado, isto é, as tarifas serão totalmente revisadas a cada ano com base nos gastos de funcionamento e nos investimentos que foram realizados no ano anterior.
Conforme Oliveira (2024)[1], essa nova fórmula tem grande probabilidade de gerar aumentos tarifários elevados, pois as metas são excessivamente ambiciosas antecipando em quatro anos a universalização dos serviços e uma duplicação do volume de investimentos anuais, quando comparado ao histórico da Sabesp em anos recentes. A justificativa mais plausível está na redução de riscos para investidores, ao passo que a população estará desprotegida de aumentos tarifários muito acima da inflação. A maldade adicional é a eliminação da aplicação do Fator X que reduz a conta dos consumidores em função da eficiência da empresa. Isto é, qualquer ganho de eficiência, por exemplo, com redução de custos ficará somente nos cofres dos investidores da Sabesp, não mais no bolso dos consumidores.
Há mais um fato bastante obscuro, prejudicial e injustificável para o bolso das pessoas de baixa renda atendidas pela Sabesp. Para mais de 1,5 milhão de famílias mais vulneráveis do estado de São Paulo há descaso (ou sonegação) de acesso ao benefício de redução de tarifas praticada pela Sabesp, com a conivência do governo estadual. Por que isso acontece e o que tem a ver com a privatização da Sabesp?
SILVA e POLLACHI (2024)[2] mostram que, em 2021, a Deliberação nº 1.150 da Arsesp determinou que a Sabesp incluísse todos usuários inscritos no CadÚnico nas categorias de tarifas vulnerável ou social[3] até setembro de 2023. Mediante dados obtidos na Sabesp e no CadÚnico, o estudo demonstra que 964.720 moradias familiares estavam enquadradas nas categorias social e vulnerável em dezembro de 2023. No entanto, 1.698.112 famílias não estavam atendidas por esse benefício de redução de tarifas.
O impacto no orçamento familiar para quem tem acesso à Tarifa Vulnerável é enorme. Para um consumo de 15m³ por mês, o valor da conta residencial comum de água e esgoto é de R$ 136,15. Com a Tarifa Vulnerável a conta cai para R$ 28,38, uma economia de R$ 107,77, que equivale a mais de 20 kg de arroz.
Na capital paulista, 462.466 famílias não foram “agraciadas” com o direito à Tarifa Vulnerável que lhes está sendo sonegado, submetidas à escolha entre comer ou pagar a conta da Sabesp.
A data limite para que todas as famílias potencialmente beneficiárias fossem atendidas com redução de tarifas era setembro de 2023. Entretanto, a partir de janeiro de 2023 quando se iniciou a atual gestão, houve um freio no enquadramento de famílias conforme a deliberação da Arsesp, levando a um “estoque” gigantesco de famílias a serem beneficiadas, 75% superior à quantidade atendida!
A narrativa do governo destaca que o dia seguinte à privatização trará a redução de tarifa para todas as famílias vulneráveis. Só que isso poderia ter sido feito em setembro do ano passado. Se não aconteceu como deveria ser, é possível deduzir que somente após a venda da Sabesp será retomado – talvez de uma só tacada – o acesso de mais de 1,6 milhão de famílias a um direito que têm assegurado há muito tempo!
O benefício a que têm direito quase 4 milhões de paulistas lhes está sendo sonegado ou estão sendo tratados com descaso pelo Estado. Talvez para que sejam atendidos logo após a entrega das chaves da Sabesp prevista pelo governo para final de agosto, cerca de 40 dias antes das eleições municipais.
[1] OLIVEIRA, Hugo S. O antidemocrático e injusto processo de privatização da Sabesp. Nova TV Alto Tietê. 22/02/2024. Disponível em https://novatvaltotiete.com.br/noticia/7570/o-antidemocratico-e-injusto-processo-de-privatizacao-da-sabesp.html
[2] SILVA, Edson A.; POLLACHI, Amauri. Para privatizar a Sabesp, governo Tarcísio joga contra a população. Carta Capital, 29/06/2024. Disponível em https://www.cartacapital.com.br/blogs/br-cidades/para-privatizar-a-sabesp-governo-tarcisio-joga-contra-a-populacao/
[3] Tarifa Vulnerável é aplicada para famílias com renda média por pessoa de 0 a 238 reais, enquanto a Tarifa Social atende famílias com renda média por pessoa de 238 reais a ½ salário mínimo.
*Amauri Pollachi, engenheiro, conselheiro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS)
Cláudio Gabarrone, economista, foi superintendente da Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp)