Renata de Faria Rocha Furigo*
Em 2015, o Brasil assinou o compromisso da Agenda 2030, para cumprir 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Chegando a 2021, no cenário da pandemia da COVID 19, é possível acreditar que avançaremos neste compromisso? Dois objetivos nos interessam aqui: o ODS 3 – Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades; e o ODS 6 – Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos. Dadas as condições políticas atuais do Brasil, inclusive na gestão da pandemia, verificamos que o caminho para atingir esses dois objetivos parece bastante acidentado. Se, desde a Emenda Constitucional 95/2016, que, só em 2019, retirou 20 bilhões de reais do SUS, estamos assistindo, no setor de saúde, a um descontrole sobre doenças como malária, sarampo e febre amarela, redução da cobertura vacinal, dentre outros indicadores chave para o cumprimento do ODS 3, no campo do saneamento, a falta de política pública efetiva para atingir a universalidade do abastecimento de água e coleta e tratamento de esgotos inviabiliza o ODS 6.
Saneamento é condição fundamental para a dignidade humana e para a manutenção de outras formas de vida, garantindo o meio ambiente limpo, saudável e seguro. Em 2010, a ONU declarou que a água limpa e segura e o saneamento são um direito humano essencial para possibilitar os demais direitos humanos. Mas no Brasil, a falta de saneamento, que já expunha milhões de pessoas a diversas doenças de veiculação hídrica, em tempos de COVID 19, passou a decretar a sua morte.São milhões de brasileiras e brasileiros pobres, que moram em assentamentos precários urbanos, que sequer podem praticar isolamento social, devido às condições de moradia. Segundo a FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO (2020), 39,8% dos domicílios urbanos tem algum tipo de inadequação, seja por sua qualidade, por seu tamanho ou pelo acesso a infraestrutura básica. São situações em que faltam banheiros, não há cômodos suficientes para abrigar toda a família; elevado índice de coabitação (duas ou mais famílias residindo no mesmo imóvel); falta de caixa d`água, telhado ou piso precários.
Se, desde o início da pandemia, o governo brasileiro vem sabotando o Plano Nacional de Imunização, no caso do saneamento, comemorou, junto com empresários e bancos de investimentos, a aprovação da Lei 14026/2020, que reformou a Lei Nacional de Diretrizes para o Saneamento Básico (Lei Federal 11.445/2007). A promessa é de que, com a abertura do mercado de saneamento, e com a privatização das estatais, a iniciativa privada finalmente atenderá a essa carência da população pobre, investindo 700 bilhões de reais para construir e operar redes de água e esgoto, e assim, até 31 de dezembro de 2033, alcançar a universalização desses serviços.
A primeira questão intrigante são as razões que motivariam a iniciativa privada a disputar um mercado formado por usuários que ganham, na sua maioria, até 5 salários-mínimos (FJP, 2020). Trata-se de uma população que não tem caixa d`água, não tem banheiro, não tem ligação de água, não tem rede de esgoto e não tem serviço regular de coleta de lixo. Essa população mora nos lugares onde a implantação de infraestrutura é mais cara e, além disso, precisa de tarifa social, pois não tem renda suficiente para pagar as tarifas convencionais desses serviços.
Há um detalhe importante nessa promessa: o termo “universalização”, segundo a legislação brasileira, não significa exatamente atender a 100% das pessoas, mas ampliar progressivamente o acesso de todos os domicílios ocupados ao saneamento básico. O que se pretende com essa reforma legislativa, é que, até 2033 seja atendida 90% da população com coleta e tratamento de esgotos, e 99% da população com abastecimento de água. Faltou responder quando os 10% restantes serão atendidos, ou o que fazer com 2 milhões de pessoas sem abastecimento de água, segundo projeções do IBGE para o ano de 2033. Quanto a coleta e tratamento dos resíduos sólidos, a lei não impõe metas.
Atualmente o Brasil registra um déficit urbano de abastecimento de água de 7,1% da população. Esse déficit não é uniforme: na região Norte é de 29,6%, no Nordeste, de 11,8%; Sudeste, Sul e Centro Oeste têm déficits de 4,1%, 1,3% e 2,4%, respectivamente. Com relação a coleta de esgotos, o déficit urbano nacional é de 38,1%, mas na região Norte é de 84,2%; no Nordeste é de 63,3%; no Sudeste é de 16,3%; no Sul é de 46,9% e no Centro-Oeste é de 36,4%. Se a variação entre as cinco regiões é grande, a mesmo vai ocorrer entre os mais de cinco mil municípios. Não é possível falar de saneamento utilizando os mesmos parâmetros para todas as regiões, municípios, ou sequer dentro de um mesmo município. O que se pode dizer, invariavelmente, é que garantir saneamento é disponibilizar os meios seguros de acesso a água potável, afastar e tratar os esgotos, adotar estratégias adequadas de manejo das águas de chuva, e realizar a coleta e o tratamento dos resíduos sólidos. A forma de fazê-lo é aquela que melhor se adequa a realidade local.
Não se trata de um problema sem solução, pois há inúmeras formas de garantir saneamento, desde que tenhamos respeito pela diversidade socioambiental e cultural brasileira. A água limpa e segura pode ser obtida de várias formas: poço, nascente, água de chuva, rio, lago ou represa. Obviamente, nas grandes cidades, a maneira mais viável é por meio de redes de abastecimento conectadas a um grande manancial, mas pode haver soluções alternativas pontuais. Assim como é possível afastar e tratar esgotos domésticos de diversas formas: fossa séptica, biodigestores, sistemas ecológicos, redes públicas de coleta e tratamento. Já para os resíduos sólidos, é preciso ter serviço público de coleta, separação, tratamento e disposição final, que, por sua vez, pode ser a reciclagem, a compostagem, a reutilização ou o descarte seguro em aterros sanitários. Mas nesse universo de possibilidades, a compostagem pode ser feita na escala do domicílio, sem prejuízo da qualidade do tratamento.
Apesar de tantas formas possíveis, o governo brasileiro e os grupos empresariais, amparados pelo esforço retórico da grande mídia, transmitem a ideia de que só existe um jeito de universalizar o saneamento: construindo redes de água e esgoto no país inteiro. Estes agentes entendem que o saneamento é mais uma mercadoria a ser explorada para dar lucro. Nada se fala sobre a coleta e tratamento do lixo, muito menos se vê algum esforço coordenado para controlar as nefastas consequências das repetidas inundações e enchentes nas cidades. Sob este paradigma, pretende-se construir gigantescos sistemas de coleta e tratamento de esgotos, consumindo uma quantidade de dinheiro que não existe, sem garantir que todas as pessoas sejam atendidas, ou que os rios fiquem, finalmente, limpos.
A universalização do saneamento no Brasil não será atingida a partir deste paradigma do “saneamento-mercadoria”, principalmente porque grande parte das pessoas que não tem acesso aos serviços está localizada nas comunidades periféricas e pobres. Mesmo estes assentamentos, espalhados por praticamente todas as cidades brasileiras, são diversos, têm problemas distintos, de ordem física, ambiental e social, que exigem soluções específicas.
Este modelo de saneamento empresarial não dialoga com a realidade: reduz a complexa desigualdade socioterritorial a uma necessidade de padronização das soluções técnicas, visando minimizar os custos e maximizar os lucros do negócio. Mas a verdade é que este modelo exclui territórios em que tais soluções não são aplicáveis e grupos sociais que não podem pagar por elas, além de desrespeitar dinâmicas socioambientais que não necessitam delas. Trata-se de um modelo que padroniza a natureza, o espaço e o ser humano.
As soluções convencionais de redes de água e esgoto não se aplicam uniformemente nos diferentes e desiguais espaços das cidades. As redes de esgoto convencionais precisam de bairros, ruas e moradias convencionais, mas nada disso é comum nos assentamentos precários. Do ponto de vista socioeconômico, a tarifa convencional, que sustenta o modelo econômico vigente, não admite a incapacidade de pagamento por parte da população. O problema é que o déficit de saneamento está localizado nestes espaços.
Para percorrermos o caminho da universalização do saneamento, tendo algo positivo para apresentar ao mundo em 2030, é preciso um projeto mais arrojado, que se adapte melhor aos cenários existentes. Não se trata de questão tecnológica ou de viabilidade econômica, mas de realidades sociais e ambientais que precisam ser respeitadas. A participação da população nos processos decisórios sobre saneamento é fundamental para que se promova mudanças reais. Os assentamentos urbanos precários têm características próprias, que revelam a desigualdade social das cidades. Mas é nessa diversidade que as pessoas vivem seu cotidiano, a despeito de regras e padrões formais. Essas formas de morar e viver precisam ser compreendidas e respeitadas, e as pessoas que aí moram são capazes de pensar e participar das decisões que afetam suas próprias realidades. Por isso, moradia, urbanismo, saneamento, gestão de riscos e gestão de recursos hídricos são questões que pertencem a elas também.
É preciso superar o discurso da viabilidade técnico-econômica, ou da sustentabilidade econômico-financeira dos serviços de saneamento, pois eles não têm que ser viáveis para gerar lucros na bolsa de valores, mas para gerar ganhos ambientais e de melhoria efetiva das condições de saúde da população. Não nos servem mais os números de moradias ligadas as redes públicas de água e esgoto. É preciso saber se todas as pessoas estão recebendo água em quantidade suficiente para a manutenção de sua dignidade, e se têm banheiro conectado a um sistema de afastamento e tratamento de esgotos. Se a rede coletora não consegue conectar todas as moradias em uma rua, então é preciso que haja solução isolada de tratamento para estes casos. Os índices de doenças devem ser medidos e controlados no âmbito da Unidade Básica de Saúde, demonstrando-se que para cada ação positiva na condição de saneamento, existe uma reação positiva na saúde individual e coletiva.
Precisamos também medir a qualidade das águas de rios e córregos urbanos e rurais, impondo metas de despoluição a serem cumpridas paulatinamente pelos governos locais e regionais. Os serviços públicos de limpeza e varrição de ruas não podem mais ser um privilégio de alguns bairros centrais e nobres nas cidades. Finalmente, é preciso que não haja mais corte de água por inadimplência, mas que se garanta um volume mínimo de água gratuito, para o exercício pleno da dignidade humana. A tarifa social é um recurso que deve ser amplamente disponibilizado, sendo subsidiado pelos outros usuários não-residenciais e por aqueles que utilizam água de forma suntuosa, como piscinas e parques aquáticos. Estes são caminhos para a universalização, pavimentados por um pacto social honesto, participativo e bem financiado. Não vamos esperar 2030 chegar: vamos assumir agora que água, saneamento e saúde pública não são mercadorias e por isso, não dão lucro a ninguém.
REFERÊNCIAS
1. Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030. IV Relatório Luz da Sociedade Civil da Agenda 2030 do Desenvolvimento Sustentável Brasil. 2020. Disponível em https://brasilnaagenda2030.files.wordpress.com/2020/08/por_rl_2020_web-1.pdf. Acesso em 21 jul 2021.
2. UNITED NATIONS. Programa da Década da Água da ONU-Água sobre Advocacia e Comunicação (UNW-DPAC). O Direito Humano à Água e Saneamento. Comunicado aos Média. Disponível em: http://www.un.org/waterforlifedecade/pdf/humanrighttowaterandsanitationmediabriefpor.pdf. Acesso em: 20 fev. 2019
3. Fundação João Pinheiro. Metodologia do deficit habitacional e da inadequação de domicílios no Brasil – 2016-2019 . Belo Horizonte: FJP, 2020. 158 p. Disponível em http://novosite.fjp.mg.gov.br/wp-content/uploads/2021/03/14.05_Relatorio-Inadequacao-de-Domicilios-no-Brasil-2016-2019-versao-2.0_compressed.pdf. Acesso em 19 jul 2021.
4. BRASIL. Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico; cria o Comitê Interministerial de Saneamento Básico; altera as Leis nos 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 8.666, de 21 de junho de 1993, e 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; e revoga a Lei nº 6.528, de 11 de maio de 1978. (Redação pela Lei nº 14.026, de 2020).
5. IBGE. Projeções da População. Disponível em https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9109-projecao-da-populacao.html?=&t=resultados. Acesso em 14 jul 2021.
6. Brasil. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: 25º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos – 2019. Brasília: SNS/MDR, 2020. 183
*Autora:
Renata de Faria Rocha Furigo – Doutora em Urbanismo, Mestre em Saúde Pública, Engenheira Civil.Observatório Nacional dos Direitos a Água e ao Saneamento – ONDAS
Publicado originalmente em BMS – Brazilian Medical Students Journal