ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS - Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Universalização dos serviços de saneamento básico: o dilema das áreas rurais

autor: Alex M. S. Aguiar*

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A categorização espacial das pessoas e de seus domicílios sob os títulos “urbano” e “rural” há muito tem produzido – ainda que de modo silencioso – impactos negativos na progressividade do acesso aos serviços de saneamento básico no país. Embora mais de 80% das pessoas residam em áreas classificadas como urbanas, a vasta maioria do território nacional se encontra fora dos perímetros urbanizados. Segundo o Censo 2010 do IBGE, o contingente de pessoas classificadas como “população rural” no Brasil alcançava, àquele ano, 29.830.007 pessoas (15,6% da população total), equivalente à soma da população total estimada para o ano 2020 de três países sul-americanos: Chile (18,2 milhões), Paraguai (7,2 milhões) e Uruguai (3,3 milhões).

No contexto dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, essa concentração populacional tem sido utilizada nos âmbitos político-decisórios como justificativa para o adiamento do atendimento com esses serviços às pessoas que habitam as áreas fora dos perímetros urbanos. Em cenários de disponibilização de recursos financeiros insuficientes, a priorização de sua aplicação em áreas mais densamente ocupadas tem postergado sine die a realização do direito humano de acesso a esses serviços àquela população que habita áreas não classificadas como urbanas.

Sob as perspectivas da saúde e da qualidade de vida, as necessidades associadas ao abastecimento de água e ao esgotamento sanitário das pessoas não é diferente, independente de qual seja a situação na qual elas são classificadas, assim como seus domicílios ou a espacialidade na qual se inserem. Assim, é preciso destacar que os direitos humanos essenciais de acesso a esses serviços valem igualmente para todos.  Essa constatação, por si só, deveria ser suficiente para, em algum momento, reverter a histórica subordinação da população rural às prioridades culturais, sociais e econômicas impostas pelo establishment urbano.

As diversas abordagens de classificação das pessoas, dos domicílios e da territorialidade sob o título “rural” encerram, por vezes – senão constantemente –, raízes de um profundo preconceito, relegando a um plano sub-humano a realização de direitos essenciais a essa população – direitos esses desfrutados de modo até despercebido pela maioria da parcela urbana das pessoas, como o acesso à água potável e ao esgotamento sanitário. Esse preconceito, não raro, se perpetua sob argumentos financeiros e econômicos que inviabilizam as soluções tipicamente urbanas de atendimento e, então, justificam a ausência do Estado no provimento de acesso aos serviços de saneamento àquela população – que, em muitos casos, deixa até de se considera detentora de tais direitos.

Entende-se que “situação rural”, a despeito da possibilidade de obedecer a um conjunto de diferentes atributos para assumir tal classificação, tem sua essência vinculada a critérios culturais, socioeconômicos e de espacialidade. E são esses critérios os fatores que requerem, para promoção dos serviços de saneamento, a análise e o emprego de soluções sociais, técnicas e econômicas que diferem daquelas de aplicação quase padronizadas nos ambientes urbanos. O Programa Nacional de Saneamento Rural (PNSR), elaborado sob a coordenação da FUNASA, da UFMG, e do colegiado Grupo da Terra (GT) do Ministério da Saúde, discorre sobre alternativas referentes aos eixos estratégicos de Gestão dos Serviços, Participação Social, e Tecnologia, apontando diretrizes já validadas que apontam opções diferentes dos modelos padronizados aplicados às populações das áreas urbanas para atendimento às populações em situação rural.

Essas diferenças, embora concretas e facilmente perceptíveis sob as óticas cultural, social, da engenharia e da economia, se perdem, de algum modo, nos processos político-decisórios, notadamente em nuances de nosso arcabouço legal. Ficam latentes nesses processos as escolhas pelo propósito de maximizar a obtenção de receitas, potencialmente menores nas populações inseridas nas áreas fora dos perímetros urbanos, e, também, pelo propósito de angariar um maior capital político-eleitoral. Essas escolhas são feitas em detrimento à alocação de recursos – tanto para investimentos como para subsídios – às populações fora do ambiente urbano, deixando de lado a realização de seus direitos humanos de acesso à água potável e ao esgotamento sanitário.

Se a legislação brasileira define os municípios como titulares dos serviços de saneamento – expressando não apenas a propriedade, mas a responsabilidade de garanti-los a seus munícipes –, a ausência de similaridades estruturais entre os municípios obsta o exercício desse dever.

Em Minas Gerais, por exemplo, o Censo 2010 do IBGE apontava 72,0% dos 853 municípios mineiros com população residente inferior a 15.000 habitantes e que somavam um contingente de mais de 4 milhões de pessoas, quase 21% da população total do estado. Nestes pequenos municípios, a população classificada em situação rural representa 35,6% de seus mais de 4 milhões de residentes.  Em contrapartida, eram apenas 29 municípios com população superior a 100.000 habitantes, ou 3,4% dos 853, e que alcançavam uma população total superior a 8,5 milhões de pessoas, correspondendo a 43,4% da população total do estado. Nestes 29 municípios, a parcela da população classificada como em situação rural é de apenas 2,2%, um contingente de 184,6 mil pessoas.

Ao se observar os índices de atendimento da população total com abastecimento de água e esgotamento sanitário[1], esses dois grupos de municípios se mostram bastante diferentes: o grupo dos pequenos municípios e com expressiva parcela da população em situação rural tem índices médios de atendimento de água e de esgotamento sanitário de 61,7% e 47,2%, respectivamente. Já o grupo dos maiores municípios, cuja parcela da população classificada na situação rural é de apenas 2,2%, apresenta índices médios de atendimento da população de 89,2% para água, e 85,7% para esgotamento sanitário. Essa discrepância mostra o resultado da política de priorizar o atendimento aos municípios mais populosos, onde a parcela rural é menor, em detrimento dos menores municípios, onde o extrato da população classificado em situação rural é significativamente maior.

Tais diferenças estruturais, e que se refletem também em aspectos socioeconômicos, como a capacidade de pagamento das pessoas e o potencial de geração de receitas, foram desconsideradas ao longo da história nos momentos das decisões políticas referentes à prestação dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. Assim, a cooperação interfederativa prevista na Constituição Federal e que possibilitou em Minas Gerais o arranjo de concessão desses serviços ao estado, por meio de sua concessionária Copasa, resultou em uma maioria de instrumentos contratuais que restringiram a atuação daquela Companhia aos perímetros urbanos das sedes municipais e, em poucos casos, aos de alguns distritos municipais, deixando a cargo da administração municipal a responsabilidade de atender às demais parcelas de sua população. Percebe-se, aqui, uma possível imposição advinda da desigualdade de poder entre o estado e a demonstrada maioria de municípios fragilizados por seu pequeno porte, que corroborou a perpetuação de dificuldade em universalizar tais serviços no estado.

Essa condição desigual leva à reflexão de que um simples normativo legal prevendo a obrigatoriedade de atendimento à toda a população inserida nos territórios municipais nos contratos de concessão dos serviços teria impedido a extensão prolongada do desatendimento imposto às pessoas inseridas nas áreas fora dos perímetros urbanos dos municípios.

E, se não convém chorar sobre o leite derramado, cabe refletir sobre a adoção de medida tão simples na construção de um futuro mais justo: o projeto de lei PL 1922/2022 que tramita na Câmara Federal, e cujas propostas e elaboração tiveram origem no Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), destaca a inserção do atendimento às populações em situação rural por meio de sua proposta de nova redação do Art. 19, II da Lei 11.445/2007 modificada pela Lei 14.026/2020:

Art. 19 – A prestação de serviços públicos de saneamento básico observará plano, que poderá ser específico para cada serviço, e que abrangerá, no mínimo: […]

II – objetivos e metas de curto, médio e longo prazos para a universalização, considerando o atendimento das populações urbana e rural, admitidas soluções graduais e progressivas, observada a compatibilidade com os demais planos setoriais, e incluindo, nos termos do art. 3º-B, a provisão de conjuntos sanitários para as residências ocupadas por população de baixa renda e a solução para a destinação de efluentes, quando inexistentes, e o acesso à água e ao esgotamento sanitário em esferas de vida para além do domicílio, particularmente nos logradouros públicos.

Em outra abordagem, muitas alternativas se fundamentam na imposição às populações não urbanas da autogestão dos serviços como a única forma de provimento de acesso a eles, denotando a esquiva do estado de sua responsabilidade de prover os serviços àquelas pessoas, e a interpretação da existência de duas categorias de cidadãos: uma assistida e cuidada pelo estado, e a outra entregue à própria sorte.

A imposição da autogestão às populações residentes nas áreas fora dos perímetros urbanos é abjeta quando comparada à realidade da maioria da população urbana, que detém este acesso sem a necessidade de qualquer outra ação que não a de pagamento pelos serviços recebidos. A atribuição do Estado – aqui encerrando o conceito de poder público, quaisquer que sejam as esferas administrativas consideradas – na redução das desigualdades e no provimento de serviços essenciais à população não poderia ser travestida de caráter segregacionista, privilegiando alguns em detrimento de outros, quaisquer que sejam os argumentos políticos e econômicos empregados em suas justificativas. A utilização de recursos do Estado, que são na verdade recursos originados pelos contribuintes, nos subsídios a políticas que visam garantir serviços essenciais a todos tem sido substituída pelos subsídios intratarifários, transferindo para uma parcela da população (a de usuários dos sistemas) a responsabilidade que é do Estado.

Nesse contexto, fica claro que o movimento recente da política nacional de saneamento, com incentivo à prestação privada dos serviços, vai na contramão da universalização do acesso aos serviços, restringindo tal meta à população urbana do país em detrimento da priorização de atendimento às populações inseridas nas áreas para além dos perímetros urbanos – o principal endereço do déficit de atendimento pelos serviços de saneamento no país.

Direcionar os recursos públicos para financiar o atendimento às pessoas classificadas em situação rural é, no contexto da universalização dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, significativamente mais importante do que utilizar tais recursos no financiamento de outorgas e de outras operações de crédito voltadas para as ações de privatização ora em curso no país.

É preciso, contudo, a compreensão básica e a consideração de onde se encontram os déficits do saneamento, tão explorados no passado recente com objetivo de implantar o modelo privatista consagrado na Lei 14.026 de 2020, para, assim, torná-los focos da disponibilização e do direcionamento dos recursos públicos.

Urge, também, a tomada de decisões políticas que tirem da gaveta e que possibilitem e priorizem a aplicação do PNSR.  Só assim teremos a realização dos direitos humanos de acesso aos serviços de saneamento básico, e com sua verdadeira universalização.


[1] Derivados das planilhas da  última publicação do SNIS, ano de referência 2021.

* Alex M. S. Aguiar é engenheiro civil, mestre em Saneamento e diretor da H&A Engenharia. É membro do Conselho de Orientação do ONDAS.

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