autores: Amauri Pollachi e Ricardo Moretti*
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Muito há que se avançar no saneamento como forma de melhorar as condições de saúde coletiva e de qualidade dos rios, lagos e praias. A expansão do acesso aos serviços de água potável e esgotamento sanitário significa redução nas ocorrências de doenças de transmissão hídrica e conforme aponta a Organização Mundial da Saúde, a redução de gastos com tratamento dessas doenças é muito superior ao montante de investimentos em saneamento.
O grande desafio é ampliar o atendimento e melhorar a qualidade dos serviços de água potável e esgotamento sanitário nos locais onde são pouco atraentes sob uma lógica estritamente financeira, ou seja, nas comunidades informais e vulneráveis, nas áreas rurais, nos pequenos municípios, entre outros.
Como são serviços que constituem monopólio natural, é necessária e inevitável uma presença forte e marcante do poder público. A eventual presença da iniciativa privada nesses serviços exige grande cuidado e atenção para que os investimentos privados se dirijam para onde são necessários, ou seja, para locais em que não necessariamente há atratividade na lógica financeira estrita. É fácil imaginar como é difícil fazer esse direcionamento para que os investimentos ocorram no atendimento dos mais carentes e vulneráveis, garantindo o direito humano de acesso à água boa e ao saneamento adequado.
A publicação, em 5 de abril, de dois decretos regulamentadores da Lei federal nº 14.026/2020, que alterou o Marco Legal do Saneamento Básico, trouxe, em um primeiro momento, reações contrárias e precipitadas da mídia tradicional, sem concessão para a necessária reflexão do significado dessa regulamentação. Posteriormente, várias outras manifestações começaram a trazer luzes sobre o real sentido da regulamentação, deixando claro que a proposta vem no sentido da extensão dos serviços de saneamento e aceleração do atendimento das metas de universalização do saneamento.
Conforme os decretos de 2020 e 2021, agora revogados, mais de mil municípios e milhões de brasileiros estavam excluídos de oportunidades de investimentos em implantação de infraestrutura e operação de serviços de saneamento básico. Desfigurada pelos vetos presidenciais do governo Bolsonaro, a Lei 14.026/2020 ficou absolutamente afastada de seu objetivo de estabelecer a meta temporal de dezembro de 2033 para a ampliação significativa do atendimento em água e esgotos, pois desconsiderou os imprescindíveis mecanismos de transição de um modelo assentado sobre as empresas estatais e o sistema de subsídios cruzados, para um modelo municipal ou regional sob gestão privada sem estabelecimento de estruturas de governança e sequer das formas de financiamento e de regimes tarifários para atender às áreas precárias, rurais ou isoladas, justamente aquelas aonde estão os maiores déficits em saneamento.
Somaram-se às reações midiáticas as reações da Sabesp, de São Paulo, da Copasa, de Minas Gerais, da Corsan, do Rio Grande do Sul e da Casal, de Alagoas, empresas públicas sob controle acionário dos respectivos estados que solicitaram desfiliação da Associação de Empresas de Saneamento Básico Estaduais (AESBE). Essa decisão, talvez desapercebida do público em geral, é demonstrativa de condutas equivocadas. A primeira é pelo fato que essa entidade foi uma dentre as que tomaram assento em mesas de diálogo junto ao governo Lula, desde antes de sua posse, diálogo que contou também com a presença de entidades representativas do setor privado e dos serviços municipais de saneamento, cada qual com sua lista de reivindicações estabelecida após processos internos de consultas e convergências. As estatais de saneamento que se desfiliaram estavam presentes na AESBE quando a lista de sugestões foi elaborada. Pedir a desfiliação é uma atitude injustificável e nada madura, como se os decretos federais tivessem sido elaborados e assinados por essa entidade da qual faziam parte, o que definitivamente não foi o caso.
Portanto, cabe especular se receberam essa determinação de desfiliação da AESBE dos acionistas majoritários estaduais que, por via indireta, assim demonstrariam contrariedade com o governo federal cujos decretos dificultam planos de privatizações de governadores, em especial nos casos em que os recursos da privatização não são direcionados efetivamente para o saneamento. Dispositivos do Decreto nº 11.467/2023 restringem alocação de recursos federais para as concessões onerosas e facilitam mecanismos para regionalizações intermunicipais sem o protagonismo majoritário dos estados. Observem que as bilionárias concessões onerosas de saneamento têm sido marcadas por apropriações desses recursos sem qualquer destinação ao saneamento básico, e que causam forte pressão para aumento significativo no valor das tarifas, pois esta é fonte de ressarcimento aos financiadores privados pelo pagamento antecipado da outorga definido em leilão.
O segundo equívoco de conduta está em que os decretos possibilitam melhor equilíbrio econômico-financeiro para a atuação de empresas estatais, visando a promoção da universalização de saneamento. Parece um contrassenso que algumas dessas prestadoras de serviços de saneamento estatais recusem a alternativa de uma sobrevivência em base sustentáveis, que foi trazida pelos decretos em questão. Outra figura metafórica aplicável à atitude de desfiliação é a de um candidato a cargo público que posa antecipadamente para uma foto na cadeira do cargo antes de ter sido eleito. A história mostra que é uma iniciativa ingênua, prepotente e desrespeitosa com os eleitores, ou seja, com a população, considerando que o assunto ainda está sendo analisado e debatido, nos respectivos estados. Aliás, nesse embate a população foi relegada a segundo ou terceiro plano.
Por fim, soma-se à equivocada desfiliação o anúncio das empresas estatais Copasa e Corsan que solicitarão admissão à Associação Brasileira de Concessionárias Privadas de Saneamento (ABCON). Pasmem! São prestadoras de serviços de saneamento estatais que querem ser admitidas na associação das empresas privadas.
Nos seres humanos, identificam-se transtornos de personalidade como sendo persistentes comportamentos e sentimentos, diferentes do esperado, em determinado ambiente social e cultural. Metaforicamente, é possível analisar sintomas de transtornos de personalidade que podem acometer as empresas, pois são organismos submetidos a regras sociais, ambientais e culturais que têm vida enquanto forem constituídas por pessoas.
Teme-se que grandes prestadoras de serviços de saneamento estaduais, visíveis em milhões de torneiras dos lares brasileiros, estejam acometidas de graves transtornos de personalidade. Ao questionar sua própria identidade por força de desígnios de governantes passageiros, precisam observar o exemplo das companhias de saneamento que foram privatizadas e que hoje são amplamente desprezadas e criticadas nos lares ingleses.
Amauri Pollachi e Ricardo Moretti são conselheiros de orientação do ONDAS.
Parabéns por essa importante matéria sobre o que vem passando o setor de saneamento, vítima de conceitos ultrapassados, os quais o privado é sempre melhor o público. Tudo evoluiu; a governança, controle, programas de qualidade, etc.,de modo que nesse setor, minha empresa que é pública dá de 10 em qualquer empresa privada e ainda privilegia toda cadeia envolvida desde sociedade, trabalhadores, acionistas e fornecedores.
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