ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

A agenda internacional da água

Texto da interação ONDAS-Privaqua*
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A AGENDA INTERNACIONAL DA ÁGUA[1]
Autor: Léo Heller [*]

A arquitetura das organizações internacionais que atuam no tema relacionado à água é complexa e multifacetada. Em primeiro lugar, o próprio tema é multidimensional e multisetorial, indo, no campo internacional, desde o campo que se convencionou denominar de WASH (water, sanitation and hygiene, ou água, saneamento[2] e higiene), até a água em seu estado nos cursos d’água, no solo ou na atmosfera. Em segundo lugar, encontram-se diferentes organizações – agências das Nações Unidas, especialistas independentes, organizações não-governamentais – tratando do tema, com uma diversidade de enfoques.

Para se mapear essa arquitetura internacional, seria necessário abranger um conjunto de atores e acontecimentos. Neste texto, dou prioridade às instituições globais que tratam do tema, abordando também alguns próximos eventos de interesse. Ademais desta descrição, caberia também incluir agências regionais que dialogam com a temática da água, como a CEPAL, a OEA ou a OPAS. Poderiam também ser descritas instituições acadêmicas que lidam com o tema, como aquelas patrocinadas pela Unesco (a exemplo da Unesco-IHE, em Delft, Países Baixos) ou a própria Universidade das Nações Unidas, com sede no Japão.

Seguem algumas instituições relevantes nesse mapeamento:

UN-Water

Para se compreender a arquitetura das Nações Unidas relacionada ao tema, é útil observar a organização da UN-Water (ou ONU Água). Em sua página eletrônica, a organização se apresenta como sendo “o mecanismo de coordenação interagências das Nações Unidas para todas as matérias referentes à água doce incluindo o saneamento”. A organização, criada em 2003 pelo “Sistema das Nações Unidas dos Chefes Executivos dos Board para Coordenação” “proporciona uma plataforma para a abordagem de natureza transversal da água e para maximizar as ações coordenadas e a coerência ao longo do sistema”.

O espectro de organizações reunidas sob o guarda-chuva da UN-Water mostra a diversidade do setor. São 33 agências e programas da ONU, além de outras entidades das Nações Unidas, operando em questões relacionadas à água, “inluindo saneamento e desastres naturais”. Abrangem entidades tão distintas como a OMS, o Banco Mundial, a Convenção para a Diversidade Biológica, a ONU-Mulher e o Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos.

A UN-Water também conta com “parceiros”, quatro deles com “status especial” e que participa da tomada de decisões mais estratégicas, e 38 parceiros, formando um amplo espectro de entidades, desde aquelas que representam o setor privado, e que têm um peso importante no grupo, até aquelas que representam trabalhadores no setor ou entidades acadêmicas.

Uma nota digna de menção é de que o processo de tomada de decisões da organização ocorre por meio de reuniões periódicas. Pode-se dizer que, embora as agências da ONU tenham certa preponderância nas decisões, os agentes externos não deixam de exercer influência. Como em todo o Colegiado, nem sempre a participação é horizontal e simétrica, havendo discursos mais ouvidos, participações mais preparadas e consensos artificialmente produzidos. Nesse processo, nota-se uma postura relativamente acrítica das agências da ONU e da própria UN-Water em relação à participação dos agentes privados, que são muito poderosos no setor, ou de entidades que apoiam ou promovem a participação privada, sempre muito presentes e participativos nesse fórum[3].

A Organização desenvolve um conjunto de atividades, com destaque para a publicação anual do Relatório das Mundial das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento da Água (World Water Development Report). Trata-se de relatório temático, que procura pautar a ênfase a ser atribuída ao tema da água no ano em curso. Os temas têm oscilado entre abordagens mais técnicas ou econômicas e aquelas com visão mais social. O relatório de 2021 teve o título “Valorando a Água”. Relatórios anteriores aproximaram-se mais do tema da saúde global como o de 2020 (“Água e mudanças climáticas”) e o de 2019 (“Não deixando ninguém para trás”). O relatório deste ano abordará as águas subterrâneas (ver mais detalhes em Eventos), sendo relevante ao destacar a importância do uso dos aquíferos, mas, pela escolha do tema, pode fazer prevalecer um olhar mais técnico e menos social do acesso.

O JMP

O Joint Monitoring Programme – JMP é a instância das Nações Unidas custodiante do monitoramento das metas 6.1 (relacionada ao abastecimento de água) e 6.2 (relacionada ao saneamento) dos ODS. É composto pela OMS e pelo Unicef. O trabalho das duas agências, que já havia se iniciado na era dos ODM, vem consolidando como um espaço importante para reflexão sobre as questões relacionadas a WASH nas Nações Unidas. Particularmente o setor de Ambiente, Mudanças Climáticas e Saúde da OMS, vem trabalhando com temas relevantes na relação entre WASH e saúde.

O JMP vem produzindo relatórios periódicos sobre a situação do acesso a água, saneamento e higiene e no mundo e em cada país, no monitoramento das respectivas metas dos ODS. Têm sido produzidos relatórios sobre água e saneamento nos domicílios, tendo sido a última versão a de 2021. Interessante constatar o tom pessimista desse último relatório, ao sugerir que o cumprimento dos ODS em 2030, tanto para água quanto para saneamento e higiene, requereria quadruplicar o esforço observado nos primeiros cinco anos do período 2021-2030. O JMP também publicou relatórios sobre o acesso aos serviços em unidades de saúde, sobre lavagem das mãos, sobre água e banheiros nas escolas, com ênfase na Covid-19,

Relator Especial para os Direitos Humanos à Água e ao Saneamento

O Relator Especial para água e ao saneamento é parte dos chamados Procedimentos Especiais do Conselho de Direitos Humanos. Desde 2021, o atual detentor do mandato, terceiro relator especial, é Pedro Arroyo-Agudo, que vem de uma trajetória na Espanha e internacional de lutas ambientais. Foi um dos fundadores da Fundação Nova Cultura da Água, na Península Ibérica.

O relator realiza visitas a países, desenvolve relatórios temáticos, faz manifestações públicas, articula-se com a sociedade civil e com as instâncias da ONU, dentre outras funções. Para tanto, recebe apoio do Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos. Em 2021, apresentou um relatório temático sobre riscos e impactos da comodificação e financialização da água nos direitos humanos à água e ao saneamento. No relatório, o Relator Especial “propõe o desenvolvimento da governança democrática da água a partir de uma perspectiva sustentável e baseada nos direitos humanos e a implementação de estratégias participativas de adaptação a mudanças climáticas, no lugar da promoção da comodificação e da especulação financeira associadas à água”. Neste ano, ele publicou um relatório especial sobre mudanças climáticas e os direitos humanos à água e ao saneamento. No relatório, afirma que “o inadequado acesso à água Segura e ao saneamento, entre outros impactos da mudança climática, exacerba uma camada adicional de vulnerabilidade que as pessoas enfrentam, especialmente sua saúde”.

Sociedade civil internacional

Há um mosaico de organizações não-governamentais que atuam, ou que dialogam com o tema da água. Parte delas tem relação mais próxima com os direitos humanos, a exemplo da WASH United; outras têm um portfólio mais voltado para ações comunitárias, como a WaterAid; outras representam os prestadores privados de serviços de água, como a Aquafed; outras representam os trabalhadores em serviços públicos, como a PSI[4]; outras se alinham como movimentos anti-privatização, com o TNI[5]. Essas organizações, em algumas circunstâncias, tendem a trabalhar em conjunto, mas frequentemente se digladiam, por exemplo quando o tema é a privatização ou a comodificação da água.

Identificam-se também algumas instituições de caráter mais écnico, que reúnem empresas de engenharia e profissionais. Um exemplo é a International Water Association (IWA), que realiza eventos mundiais periódicos. Há alguns grupos de sociedade civil que consideram a IWA como uma entidade que, utilizando o enfoque técnico como um biombo, praticam uma visão acrítica sobre o acesso aos serviços e oculta seu apoio ao mercado privado da água.

Eventos

A UN-Water está programando uma série de eventos para lançamento de seu Relatório Mundial sobre o Desenvolvimento da Água, de 2022: “Águas subterrâneas: fazendo o invisível, visível”. O release de lançamento do relatório destaca que “esse recurso natural é frequentemente mal-entendido, e consequentemente, subvalorizado, mal gerido e mesmo abusivamente utilizado. No contexto de crescente escassez de água em muitas partes do mundo, o vasto potencial das águas subterrâneas e a necessidade de geri-las sustentavelmente não pode ser minimizada”. O lançamento ocorrerá em março, na cerimônia de abertura do Fórum Mundial da Água no Senegal, conforme apresentado a seguir.

O Fórum Mundial da Água é um megaevento, promovido pelo Conselho Mundial da Água. A nona edição do Fórum ocorrerá entre 22 e 27 de março em Dacar, sob o slogan “Segurança da água para a paz e o desenvolvimento”. É útil destacar que o oitavo Fórum ocorreu em Brasília em 2018, tendo sido o primeiro realizado nas Américas.

Os FMA têm sido um evento muito controvertido. De um lado, reúne muitas empresas, profissionais, governos, agências das Nações Unidas e diversos outros atores. Ao final do encontro, é tradicional a adoção de uma Declaração Interministerial sobre a água. De outro, tem sido taxado de “evento das corporações” pela sociedade civil, pois tradicionalmente promove a privatização dos serviços, o que é compatível com o perfil das entidades que compõem o Conselho Mundial da Água. Como contraponto, vem sendo paralelamente organizado pela sociedade civil o Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA), com uma agenda antiprivatista e de valorização das iniciativas comunitárias e tradicionais de gestão das águas

Considerações finais

Como se viu, a arquitetura e a agenda da água no plano global formam um complexo mosaico de agentes e visões, nem sempre em convergência nas abordagens e algumas vezes emergindo tensões entre esses agentes. O tema da água no âmbito das Nações Unidas talvez forme um interessante ângulo para análise da possível faixa de atuação das agências na transformação das relações globais. Provocativamente, pode-se sugerir que a água revela os limites e ambiguidades nessa atuação.

Assim, de um lado, muitas das iniciativas das Nações Unidas no campo da água, a exemplo de alguns dos relatórios mundiais da UN-Water e da forma como os ODS são monitorados, coloca na cena mundial uma visão progressista para avanço da discussão do tema. Para países que estão muito atrás na universalização do acesso, essas iniciativas sinalizam formas progressistas de abordar o tema e de atuar para a diminuição da desigualdade no acesso, que marca muito fortemente o padrão de acesso aos serviços em todo o mundo.

De outro, no entanto, pode-se perceber os limites desse avanço. É como se a corda esticasse até o limite da estabilidade do sistema de concertação mundial. Dois elementos podem ser evocados nesse particular, como exemplos.

O primeiro é a relação das Nações Unidas com a agenda neoliberal da água. É frequente se ouvir o discurso do “agnosticismo” do sistema para com a forma de gestão da água – a clássica ideia de que “não importa a cor do gato, desde que mate os ratos”. Ou seja, notam-se uma visão acrítica dos processos de privatização, uma ideia de que os representantes das grandes corporações[6] são parceiros e a adesão das agências à agenda de eventos das entidades representativas dessas corporações. Um exemplo dessa intenção são iniciativas como o Sanitation and Water for All (SWA), que se apresenta como uma “parceria ´multistakeholder´ hospedada pelas Nações Unidas, de governos e seus parceiros da sociedade civil, o setor privado, agências das Nações Unidas instituições de pesquisa e ensino, bancos de desenvolvimento e a comunidade de doadores”. Ou seja, a clássica ideia de que os atores são equivalentes e simétricos em sua capacidade de influenciar decisões “para o bem de todos”[7].

O segundo é a incorporação apenas parcial, por parte das agências, do marco dos direitos humanos. Se esse marco tem sido de alguma forma refletida nos padrões dos ODS, por exemplo, ressente-se de sua incorporação mais plena, seja nessa atividade, seja na própria missão do UN-Water. Um exemplo desse limite é o tema da desigualdade no acesso à água. A ONU reconhece e destaca várias faces dessa desigualdade, mas está longe de buscar explicar suas causas estruturais…

Em próximos textos sobre o tema, pretendo explorar mais especificamente alguns dos aspectos levantados neste sobrevoo, a partir de uma visão crítica dos avanços e limites da agenda internacional da água, na conquista de mudanças em profundidade no setor, na direção a realização dos direitos humanos à água e ao saneamento.

[1] Publicado originalmente em: FIOCRUZ. Cadernos CRIS/FIOCRUZ Saúde Global e Diplomacia da Saúde Nº. 02/2022, 1 a 14 de fevereiro de 2022 (p. 41-45).

[2] “Sanitation” equivale, no vocabulário utilizado no Brasil, a “esgotamento sanitário”, sendo que “saneamento” ou “saneamento básico” tem sido aqui empregado com o significado mais amplo, incluindo as áreas de abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos e manejo das águas pluviais. Como, entretanto, no nível internacional e nas várias outras tradições idiomáticas, “saneamento” (“sanitation”, “assainissement”, “saneamento”, “saneamento” em português de Portugal) é a expressão usada para refletir o esgotamento sanitário, manteve-se esse termo no presente texto.

[3] Como Relator Especial das Nações Unidas, tive oportunidade de participar de algumas reuniões da UN-Water e pude perceber como os representantes das entidades privadas estavam sempre presentes e preparados em suas intervenções. Nas reuniões presenciais, pré-pandemia, nem sempre outros representantes, sobretudo da sociedade civil, tinham recursos financeiros e disponibilidade para comparecerem, mas não era o caso do setor privado.

[4] Esta, na última reunião do Conselho Executivo da OMS propôs que esta deveria colocar a saúde pública à frente dos lucros privados, enfatizando a necessidade de uma recuperação da Covidque pririze instituições da saúde fortes, acima da provisão do mercado (ver Put Public Health ahead of Private Profits PSI tells WHO  – PSI – The global union federation of workers in public services)

[5] O TNI vem trabalhando com a promoção e o mapeamento de remunicipalizações de serviços nos vários países, por meio de um projeto denominado Public Alternatives, que “trabalha para a contrução de uma poderosa força contestatória que reverta a privatização e que ajude a construir serviços públicos democráticos, accountable e efetivos”.

[6] É importante notar que o setor de águas é extremamente oligopolizado, como poucas empresas dominando o mercado e com tendências crescentes de fusões e maior concentração.

[7] Essa visão reflete o conceito de “governança da água”, propagada pelo Banco Mundial na década de 1990.

Autor:
[*] Léo Heller– Engenheiro Civil pela UFMG; mestre em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos e doutor em Epidemiologia pela UFMG; pós-doutorado na University of Oxford; foi Professor Titular do DESA da UFMG, no qual atua como professor voluntário; é pesquisador do Centro de Pesquisa René Rachou, Fiocruz; foi Relator Especial dos Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário, da ONU.

* Privaqua é um projeto de pesquisa que busca entender o impacto da privatização dos serviços de água e saneamento nos direitos humanosRegularmente, o site do ONDAS publica notas do Privaqua de forma a dar transparência ao projeto e compartilhar alguns de seus achados preliminares.

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