O caso emblemático de Alagoas: com base em lei de Bolsonaro, governador oferece mananciais a especuladores financeiros, sem experiência no setor. Municípios são forçados, na prática, a aderir. Outros estados planejam negociatas semelhantes.
Título original: Nem a ditadura militar ousou tanto
Teia Magalhães*
A Secretaria de Estado da Infraestrutura de Alagoas – SEINFRA colocou em consulta pública a concessão dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário de 89 dos 102 municípios do Estaedo, divididos em duas Unidades Regionais de Saneamento Básico (URSBs): Agreste e Sertão compõem o chamado “Bloco B”, e Zona da Mata e Litoral Norte foram reunidos no “Bloco C”. As definições foram feitas pela lei estadual nº 8.357, em dezembro de 2020.
As Unidades Regionais de Saneamento Básico – URSB são uma nova modalidade de regionalização instituída pela lei feeral 14.026/20201, que mira a privatização dos serviços. O processo de criação de URSBs está acontecendo em outros estados também. Alagoas expressa, melhor que qualquer outro, o caráter autoritário do processo.
Inicialmente, foram privatizados os serviços na Região Metropolitana de Maceió, ocorrida em setembro de 2020, dois meses após a promulgação da lei nacional, dando início no Brasil ao processo de privatização das empresas estaduais de saneamento com base em modelagem desenvolvida pelo BNDES. O leilão que colocou sob controle privado as águas da capital alagoana e seu entorno foi vencido pela empresa BRK Ambiental. Seguiu-se a privatização de parte dos serviços prestados pela Cedae – Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro, com a oferta ao setor privado de quatro blocos, cada um formado por parte do município da capital e alguns municípios próximos, também obedecendo a mesma modelagem do banco. Desta vez as vencedoras foram as empresas Iguá Saneamento e a Aegea Saneamento, sendo que o bloco formado pela região mais pobre sequer recebeu proposta. Há outros modelos de privatização consolidados, como é o caso da concessão dos serviços de esgotamento sanitário no Mato Grosso do Sul, vencida pela empresa Aegea Saneamento, e estudos em curso para a privatização completa da Sabesp, companhia estadual de São Paulo, a maior do país, segundo revelou o novo secretário de Projetos e Ações Estratégicas do Estado de São Paulo, Rodrigo Maia, ao ser anunciado no cargo. Outros estados aprovaram leis de regionalização, como é o caso da Paraíba e do Rio Grande do Sul, e outros estão em discussão, como Minas Gerais. Também o Acre acabou de realizar o leilão para a concessão dos serviços de água e esgoto para os municípios do Estado.
Em Alagoas, para completar o processo, o governo lançou agora o processo de licitação da concessão dos serviços de água e esgoto das duas URSB, antes mesmo da adesão dos municípios ao arranjo regional proposto. “Dentre todos os processos de regionalização dos estados que temos acompanhado, o caso de Alagoas é o que se reveste de maior agressividade, pressa e voracidade em atropelar os municípios”, diz Marcos Montenegro, coordenador geral do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento – ONDAS.
De fato, a publicação de minuta do edital e seus anexos para concessão privada ocorreu antes da configuração efetiva das URSB pela adesão dos municípios. De forma atabalhoada, os planos regionais realizados pelas consultorias Ernest Young, Ema Engenharia Ambiental, Felsberg Advogados e Muzzu Associados, anexos ao edital, foram publicados sem indicação do valor do contrato (embora representantes do Estado se refiram a R$ 3,6 bilhões de investimentos) e com 49 páginas em branco no caso do Plano do Bloco B e 40 páginas em branco no Bloco C, justamente aquelas que apresentariam o diagnóstico detalhado de cada município.
Esta tentativa grosseira de impor a privatização fere a lei brasileira. Segundo esta, a organização regional da prestação de serviços públicos pode ocorrer de forma compulsória ou voluntária. É compulsória a integração do município a uma Região Metropolitana, Aglomeração Urbana ou Microrregião instituída pelo Estado, através de Lei Complementar, conforme prevê o artigo 25 da Constituição Federal. Outros arranjos regionais voltados para a prestação e/ou organização dos serviços públicos são voluntários, ou seja, o município pode aderir ou não a iniciativas de regionalização. É o caso dos consórcios públicos, que podem ser contratados pelos municípios para a prestação de serviços específicos definidos na sua criação.
As concessionárias para os dois blocos a ser privatizados em Alagoas serão escolhidas por meio de concorrência internacional, realizada na Bolsa de Valores de São Paulo, B3, pelo critério de maior valor de pagamento pela outorga, critério que o ONDAS crítica e desaprova por induzir a privatização, onerar a tarifa que será cobrada e retirar recursos dos serviços de saneamento. Podem participar empresas ou consórcios de empresas, entidades fechadas ou abertas de previdência complementar, instituições financeiras, fundos de investimentos e empresas com atividade de investidoras financeiras. Qualquer que seja sua natureza, precisam comprovar ter captado novecentos milhões de reais para a viabilização de empreendimentos de infraestrutura em qualquer setor, e possuir, em seu quadro permanente, profissional de nível superior que tenha experiência, no mínimo, na atuação em cargos executivos seniores equivalentes a diretor operacional ou superintendente operacional em sociedade empresária responsável pela operação de sistemas de distribuição de água e coleta domiciliar e tratamento de esgotos sanitários. Ou seja, a escolha recairá sobre empresas com capacidade elevada de alavancagem financeira e não sobre empresas com experiência em saneamento, confirmando a tendência recente de financeirização do setor.
Pesquisa elaborada pelo Instituto Mais Democracia, em parceria com a Fundação Heinrich Böll, apontou as deformações desta opção. Intitulado “Quem são os Proprietários do Saneamento no Brasil?”, e apresentada durante a realização do Fórum Alternativo Mundial da Água – FAMA, em março de 2018, em Brasília, o estudo mostrou que “os cinco maiores grupos econômicos atuantes na área de saneamento no Brasil já controlavam 85,3% do total de contratos”. BRK Ambiental (ex-Odebrecht Ambiental), Aegea Saneamento e Participações, e Iguá Saneamento estão entre eles. A BRK Ambiental pertence ao fundo de investimento canadense Brookfield. A Iguá é formada exclusivamente por fundos financeiros – FIP Água (63,48%), FIP MAYIM (24,01%), BNDESPAR (10,89%,) Cyan (1,55%), IG4 Water Investments (0,08%). Por fim, a Aegea é formada pela construtora Equipav, que detém 70,72% das ações, pelo fundo soberano de Singapura, GIC, com participação de 19,08%, e pela Itausa, holding dona do Itaú Unibanco, que detém 10,2% da empresa. Em função dos critérios do edital, é provável que os dois blocos que serão licitados reduzam a escolha aos membros desse seleto clube de investidores.
De acordo com o plano alagoano, publicado como anexo aos editais dos dois Blocos, cerca de 92% da população urbana do Bloco B e 81,3% no Bloco C é atendida com água. Com coleta de esgoto, os percentuais são bem mais baixos – 9,3% e 23,3%, respectivamente. Os prazos para universalização, constantes em Anexo do edital, estabelecem para o Bloco B a universalização do atendimento com água em 2027 para parte dos municípios e 2025 para municípios da região da bacia leiteira. Para esgotamento sanitário, a “universalização”, definida em 90% (!), seria alcançada em apenas 2033. Para o Bloco C, a universalização do atendimento com água seria em 2027 e em 2033 para esgotamento sanitário. Em cada bloco, a abrangência da concessão é restrita à área urbana das sedes municipais e respectivos distritos urbanos e povoados com mais de mil habitantes.
O decreto nº 74.261, de 7 de maio de 2021, dispondo sobre a regulamentação da estrutura de governança das duas Unidades Regionais de Saneamento Básico, dava um prazo de um mês para adesão dos municípios à regionalização proposta. Era uma pressa inusitada, que atropelava o exame criterioso dos municípios quanto à conveniência de aderir à regionalização proposta e à privatização. O estado teve que ampliar os prazos, pois até meados de agosto havia resistência dos municípios em fazer adesão. O governo alagoano, acostumado à submissão dos municípios que concederam seus serviços à CASAL – Companhia de Saneamento de Alagoas, a empresa estadual que hoje ainda detém a concessão dos serviços em 66 municípios nos dois blocos –, parece desconsiderar que nos dois agrupamentos de municípios há serviços prestados por Serviços Autônomos de Água e Esgoto – SAAEs, que nunca fizeram a concessão de seus serviços. São 3 SAAEs no Bloco B, e 20 no Bloco C.
A Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento – ASSEMAE, que congrega SAAEs de todo o Brasil, acompanha com apreensão a situação no Estado e tem buscado alertar os municípios sobre inconstitucionalidades da lei nacional que deu início a esse processo de regionalização. Também entrou com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no STF sobre o tema. “Há uma tentativa de desmonte do setor com a aprovação da Lei 14.026 em plena pandemia, com o governo enfiando esse desmonte goela abaixo dos municípios, alterando várias leis e colocando o peso da responsabilidade da falta de saneamento no setor público” diz Aparecido Hojaij, presidente da entidade.
Todo poder ao Estado
O fato de o estado colocar em consulta pública edital de concessão dos serviços sem anuência dos municípios – algo grave, uma vez que não pode fazer concessão de um serviço cuja titularidade é do município –, pode parecer até menos grave ao se analisar o teor da lei e de sua regulamentação, dada a ousadia com que Alagoas busca submeter os municípios, impondo sua vontade unilateralmente, e rompendo o pacto federativo.
A Lei 8.358 de 3 de dezembro de 2020 institui as duas Unidades Regionais de Saneamento Básico e cria um órgão colegiado, como “estrutura de governança” das URSB, no qual o Estado tem 50% dos votos. O decreto 74.261, de 7 de maio de 2021, que a regulamenta, deixa ainda mais explícita a intenção do estado de reinar sobre um serviço cuja titularidade é reconhecidamente municipal.
O texto do decreto trata da composição e do funcionamento do órgão colegiado, o Conselho de Desenvolvimento de cada uma das unidades regionais. Ele é composto por um representante do Executivo estadual, cujo voto tem peso 50, prefeitos municipais que aderirem à URSB, cujos votos terão peso conjunto de 40, sendo que cada município terá peso proporcional a sua população, e três representantes da sociedade civil, designados pelo governador, com peso 10, dentre integrantes de entidades, organizações ou movimentos sociais e populares, “ainda que não institucionalizados”. Além do mais, a presidência do Conselho será exercida pelo representante indicado pelo Estado. Ou seja, o Estado é o soberano, sempre terá maioria e o comando do Conselho, um enorme retrocesso democrático.
As atribuições do Conselho são aprovar o Plano Regional de Saneamento Básico, acompanhar as revisões dos instrumentos de planejamento, manifestar-se previamente sobre indenizações a concessionária em caso de extinção da concessão, pronunciar-se previamente sobre a intervenção do estado de Alagoas na concessão, manifestar-se previamente sobre quaisquer formas de extinção antecipada da concessão, pronunciar-se previamente sobre o ingresso e retirada de municípios da estrutura de prestação regionalizada, receber e analisar críticas, sugestões e reclamações de usuários e propor correção de falhas, submetendo parecer à Agência Reguladora. Tem, portanto, caráter consultivo, à exceção da aprovação do Plano. Mas com tal composição, todas as decisões serão expressão da vontade do estado “todo poderoso”. A adesão dos municípios às respectivas Unidades Regionais será celebrada por meio de instrumentos da gestão associada.
A gestão associada para a privatização
Se a composição do Conselho já assombra o espírito da cooperação interfederativa, o pior está nos anexos, que detalham o teor de dois instrumentos contratuais celebrados entre o estado e cada município: um Contrato de Gerenciamento e um Convênio de Cooperação, instrumentos da gestão associada. São considerados coligados a esses dois instrumentos dois contratos que serão celebrados pelo estado – um de concessão com empresa privada, para prestação dos serviços de distribuição de água e esgotamento sanitário, e outro com a Casal para produção de água, além de um contrato de interdependência firmado entre a Casal e a concessionária.
É o estado quem organiza e gere a delegação dos serviços, ou seja, define o conteúdo e as condições do contrato de concessão, celebra esses contratos e os de produção de água, prevê parâmetros, metas e indicadores de desempenho, restando ao município um papel de “rainha da Inglaterra”. Entretanto, se rescindir unilateralmente o Contrato de Gerenciamento, ou não cumprir suas obrigações, o município ficará sujeito a multa de 20% sobre os investimentos não amortizados realizados pela concessionária privada no município. E enquanto não ressarcir esses investimentos, a concessionária continuará como responsável pela prestação dos serviços.
Porque tanta pressa?
O plano inicial do governo alagoano parecia ser aprovar tudo ainda no primeiro semestre. A lei estadual é de dezembro e o decreto de maio, fixando prazo de trinta dias para a realização da primeira reunião do Conselho de Desenvolvimento, em que se daria a adesão dos municípios, cumprindo assim o prazo de 180 dias estabelecido na Lei 14.026 para a definição das URSBs. Entretanto, os municípios não fizeram a adesão tão depressa. Em 16 de junho, por exemplo, foi realizada uma reunião do governador com prefeitos do Bloco B. Dos 49 municípios, compareceram 32 e apenas 22 assinaram os documentos de adesão no evento. No dia 21 foi a vez dos municípios do Bloco C, onde houve assinatura de 15 municípios. Outros municípios estão aderindo depois dessas reuniões. Em audiência pública realizada em agosto, ainda sem adesão de todos os municípios, representante do Estado afirmou que pretende publicar o edital definitivo em setembro e fazer o leilão em dezembro.
No entanto, há resistência de alguns prefeitos, inclusive de municípios operados pela Casal, como é o caso de Arapiraca, o maior município do Bloco B. Segundo a imprensa alagoana, o presidente da Câmara Federal, Artur Lira (PP), estaria estimulando prefeitos, liderados pelo prefeito de Arapiraca, Luciano Barbosa (MDB) a não aderir às URSB para barrar a proposta de privatização do governo estadual, que é liderado pelo governador Renan Filho. A objeção de Artur Lira não é, obviamente, programática. Aliado de Jair Bolsonaro, ele está de olho nas eleições do ano que vem.
A Assemae também tem procurado alertar os prefeitos sobre os problemas de assinar os documentos com o Governo do Estado, e enviou carta aos prefeitos. “A Assemae recomenda aos prefeitos a não adesão às Unidades Regionais de Saneamento Básico propostas pela legislação estadual. Para aqueles que já formalizaram a adesão, a entidade orienta pela imediata saída do colegiado”, diz texto publicado no site da entidade.
Coincidentemente, este ano marca os 50 anos do Planasa, o plano nacional de saneamento do regime militar que comandou o país depois do golpe de 1964, e que fracassou em atingir as metas propostas, deixando como herança empresas estaduais desequilibradas economicamente, que até hoje arrastam problemas que se originaram naquele período, e as impedem de alcançar a universalização dos serviços. Uma das principais características desse plano era a obrigatoriedade de concessão da prestação dos serviços de água e esgoto a companhias estaduais de saneamento pelos municípios, seus legítimos titulares, para assegurar a obtenção de crédito para as obras de saneamento básico.
Agora, o estado de Alagoas vai mais longe. E os municípios alagoanos se veem compelidos a transferir às pressas não uma concessão a uma empresa estadual, mas a própria titularidade dos serviços ao governo do Estado para que ele faça concessão a empresas privadas, mediante pagamento de outorga, que negocia repartir, gota a gota, com os municípios para o equilíbrio de suas contas. Mais do que apressado, o processo adotado em Alagoas é profundamente retrógrado. É a volta dos métodos dos antigos coronéis que se imaginava terem ficado no passado com o avanço da democracia no país.
*Teia Magalhães – Consultora em saneamento e colaboradora do ONDAS