The Guardian, 28 de junho de 2023
A SITUAÇÃO MISERÁVEL DE THAMES WATER É UM DOS MELHORES ARGUMENTOS QUE TEMOS PARA DEFENDER A PROPRIEDADE PÚBLICA
autor: Mathew Lawrence*
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A privatização da água na Inglaterra e no País de Gales conseguiu apenas uma coisa: o enriquecimento de executivos e acionistas estrangeiros.
A Thames Water está à beira do colapso , com planos de emergência sendo elaborados para tornar temporariamente a empresa propriedade pública. É uma situação extraordinária: como uma empresa com monopólio regional sobre um serviço essencial não consegue se manter financeiramente sustentável? A resposta: um modelo de propriedade extrativista deixou a empresa carregada de dívidas e priorizou os retornos para seus investidores sobre as necessidades das pessoas e do meio ambiente. Como as taxas de juros subiram acentuadamente nos últimos meses, esse modelo de negócios inerentemente precário está sob pressão aguda e aparentemente fatal.
A história da Thames Water é emblemática dos fracassos mais amplos da privatização. Desde o final dos anos 1980, as empresas de água na Inglaterra e no País de Gales pagaram £ 72 bilhões (R$ 455 bilhões) aos acionistas. Para ajudar a pagar por essa generosidade, as empresas de água (e esgoto) – que foram vendidas sem dívidas – tomaram empréstimos em uma escala excepcional, acumulando um montante de dívidas de £ 53 bilhões (R$ 335 bilhões).
O que isso significou para os usuários? Em termos reais, as contas aumentaram cerca de 40% desde a privatização, mas o investimento das empresas diminuiu 15%. As consequências são evidentes: até 2,4 bilhões de litros de água por dia (equivalente a quase 1.000 piscinas olímpicas) são perdidos pelas companhias de água inglesas. Todos os dias, esgoto bruto é despejado em nossos rios e mares mais de 1.000 vezes em média, totalizando mais de 9 milhões de horas de extravasões desde 2016. Com essa escala de negligência, não é chocante que apenas 14% dos rios ingleses tenham um status ecológico adequado.
Quem, então, se beneficia desse modelo, já que não são nem as pessoas nem o planeta?
Investidores internacionais, por exemplo. De fato, mais de 70% do valor das companhias de água inglesas é de propriedade estrangeira. A Thames Water, especificamente, conta entre seus principais investidores uma subsidiária da autoridade de investimentos de Abu Dhabi, a China Investment Corporation e dois fundos canadenses do setor público. O Regime de Aposentadoria das Universidades (Universities Superannuation Scheme) também tem uma participação considerável, em uma relação paradoxal que vê um serviço vital que muitos beneficiários desse regime podem usar, vacilando sob a pressão da demanda por altos retornos para um sistema de pensões igualmente sob pressão.
Também não podemos esquecer as vantagens para os executivos de água: o CEO cessante da United Utilities, a empresa de água mais poluente do Reino Unido, ganhou impressionantes £ 1,4 milhão (R$ 8,85 milhões) este ano, vendendo suas ações antes de sua aposentadoria.
É um arranjo autodestrutivo em que a Inglaterra e o País de Gales são exceções globais: na verdade, eles são globalmente excepcionais por terem sistemas de água totalmente privatizados. Há uma razão simples para isso. Internacionalmente, a água é vista como uma perspectiva menos atrativa para os investidores privados em relação a outros setores de infraestruturas, até porque a natureza essencial do serviço faz com que os operadores não possam interromper o fornecimento de água em caso de inadimplência.
Para compensar, a política do governo tornou o setor uma opção de investimento mais atraente por meio de um regime regulatório flexível e, por exemplo, tornando relativamente mais fácil aumentar as tarifas.
Felizmente, existe uma grande variedade de modelos alternativos nos quais podemos nos inspirar. Em toda a Europa, a norma é que as infraestruturas e serviços de água sejam propriedade do setor público e operados com sucesso para atender o interesse público. Mas não é necessário olhar para tão longe na Europa continental: temos uma comparação pronta na Escócia, que resistiu efetivamente à privatização da Scottish Water. O contraste entre os dois é gritante: os usuários no resto do Reino Unido gastaram cerca de 10% a mais em contas de água do que na Escócia, e a empresa pública investiu 35% a mais por domicílio por ano do que as empresas privadas na Inglaterra.
Que lições podemos tirar dessa história? Primeiro, que essa privatização da água foi um sucesso absoluto em apenas um aspecto: o enriquecimento de seus acionistas no exterior e de seus executivos. Com a Thames Water possivelmente seguindo os passos da nacionalização de emergência da Bulb , devemos esperar que o fracasso de serviços públicos privatizados e altamente endividados se acelere. E talvez acima de tudo, a lição simples que quase todos os países do mundo já aprenderam: para algo tão fundamental e tão inadequado para a competição como a água, a propriedade pública para o benefício público é a única abordagem aceitável.
*Mathew Lawrence é diretor de Common Wealth e co-autor de Owning the Future com Adrienne Buller
Traduzido por Marcos Montenegro, Coordenador de Comunicaçãodo Ondas. Original em inglês disponível em: https://www.theguardian.com/commentisfree/2023/jun/28/thames-water-public-ownership-water-privatisation-england-and-wales-executives-shareholders
◾Leia também o artigo Privatização em colapso, de Marcos Montenegro.