Artigo de Alex. M. S. Aguiar* – publicado originalmente em Novo Jornal
_________________________
Vez por outra a privatização do saneamento no país, movimento que ganhou força no governo Temer e se consolidou com a aprovação pela caneta de Bolsonaro das propostas legislativas do deputado Geninho Zuliani (UNIÃO/SP) e do senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), recebe a adesão de discursos que enaltecem um suposto salto dos investimentos no setor a partir da lei 14.026/ 2020, insistentemente tratada como Novo Marco do Saneamento.Esses discursos tiveram origema partir das outorgas exorbitantes ofertadas pelos vencedores dos leilões ocorridos nos estados de Alagoas, Rio de Janeiro, e Amapá.
No estado de Alagoas, foram realizados dois leilões dos serviços de saneamento, que abrangeram três blocos configurados no estudo da privatização desses serviços realizado pelo BNDES. O primeiro leilão, em setembro de 2020, foi do bloco correspondente à Região Metropolitana de Maceió, abrangendo a capital Maceió e outros 12 municípios. Surpreendeu a todos o valor da outorga ofertada, de R$2,01 bilhões, quase 140 vezes maior que o valor mínimo estudado pelo BNDES, que foi de R$15 milhões. Já o segundo leilão, em dezembro de 2021,teve como objeto os blocos B (34 municípios) e C (27 municípios) restantes e foi vencido com a oferta de outorgas de R$1,215 bilhões e R$430 milhões, respectivamente. Assim, a soma das outorgas pagas pelo direito de explorar os serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário no estado totalizou R$3,655 bilhões.
Um sumário dos estudos realizados pelo BNDES para aquele estado foi apresentado em um evento ao fim de 2019 que contou com a presença do então governador do estado, Renan Filho, indicando que ao longo do prazo de 35 anos previstos para a concessão dos serviços aos privados seriam realizados investimentos de R$2,56 bilhões, sendo R$1,53 bilhões em água e R$1,03 bilhões em esgotos.Isso significa que as empresas que venceram os leilões de saneamento em Alagoas pagaram pelo direito de explorar os serviços muito mais do que vão, supostamente, investir ao longo de 35 anos de operação dos sistemas.
No Rio de Janeiro os leilões – também realizados em duas etapas, uma vez que no primeiro leilão um dos blocos não recebeu ofertas – tiveram outorgas vencedoras que totalizaram R$24,88 bilhões, que correspondem a 76% dos R$32,5 bilhões previstos pelo BNDES que deverão ser investidos pelas empresas vencedoras ao longo de 35 anos.
Já no Amapá, a outorga vencedora foi de R$930 milhões, correspondendo a 24% dos investimentos previstos nos estudos do BNDES.
É fundamental deixar claro que estas outorgas pagas serão recuperadas pelas empresas que venceram as licitações, e essa recuperação, incluindo juros e correções, se dará por meio das tarifas que serão cobradas da população usuária dos serviços. Uma vez que a tarifa remunera também os investimentos realizados, tem-se do que foi exposto que essa parcela será significativamente majorada, de modo a compensar o dinheiro das outorgas pagas aos estados. Essa operação, na realidade, pode ser entendida exatamente dessa forma: as outorgas são nada mais do que um empréstimo obtido pelo estado junto às empresas vencedoras, mas quem pagará esse empréstimo é a população.
E aí reside outro, senão o mais grave, problema: sendo a água um bem essencial à vida e à dignidade das pessoas, o aumento das tarifas podem significar a exclusão das pessoas do acesso aos serviços, violando o que é considerado um direito humano essencial. Em Alagoas, são mais de 1,6 milhões de pessoas, aproximadamente 50% da população do estado, em situação de vulnerabilidade financeira, integrando as categorias de extrema pobreza (renda per capita familiar até R$89), pobreza (renda per capita familiar entre R$89 e R$178), e baixa renda (renda per capita familiar entre R$178 e meio salário-mínimo) e que têm pouca capacidade de pagamento. No Amapá, são mais de 400 mil pessoas nessa condição, alcançando 45% da população do estado. No Rio de Janeiro, embora o percentual de pessoas em situação de vulnerabilidade financeira no estado seja mais baixo (26%), ele representa um contingente de mais de 4,5 milhões de pessoas.
Por fim, vale apontar que as outorgas têm sido pagas aos estados e, em menor escala, aos municípios sem que haja quaisquer compromissos de sua aplicação em saneamento, podendo ser utilizadas como e onde quiserem os administradores que as recebem. Uma vez que elas serão ressarcidas via as tarifas cobradas pelos serviços, isso tem o significado de deixar de aplicar os recursos originados com os serviços de saneamento na sua expansão e melhoria, para utilizá-los em outras áreas, eventualmente nem sequer tão prioritárias quanto o saneamento.
Vê-se que o saneamento básico, setor que implica de modo direto na saúde pública e na qualidade de vida das pessoas, tem sido reduzido à perspectiva de um mero negócio, podendo afetar negativamente milhões de brasileiros para beneficiar apenas alguns – nem tão brasileiros assim. É preciso, e é urgente, que o país tenha o olhar para os direitos humanos como ponto de partida para a formulação de suas políticas públicas, sob pena de agravamento progressivo das enormes desigualdades sociais que nos envergonham doméstica e internacionalmente.
Essa mudança de direção depende de nós, brasileiros, e das nossas escolhas nas próximas eleições. Que tenhamos, pois, não apenas juízo, mas também uma boa dose desenso de solidariedade ao escolher.
* Alex M. S. Aguiar – Engº Civil, Mestre em Saneamento pela UFMG. Diretor da H&A Engenharia, Conselheiro de Orientação do ONDAS.