Para garantir o acesso à água para todas as pessoas, principalmente no meio rural ou nas populações atingidas pela seca, Alexandre Henrique Bezerra Pires, coordenador executivo da ASA (Articulação do Semiárido Brasileiro), defende um modelo que tenha a gestão sob a governança dos próprios sujeitos de direito, simples, barato e descentralizado. Nesse sentido, a ASA desenvolveu o Programa 1 Milhão de Cisternas. “Para além das tecnologias de cimento e areia, nosso trabalho contribuiu para construção de uma nova visão sobre o Semiárido, seja para quem vive nele ou para quem o olha à distância”, afirma Alexandre.
Saiba mais sobre esse programa nessa entrevista exclusiva que o coordenador executivo da ASA concedeu ao ONDAS.
ONDAS: A ASA ficou conhecida pelo Programa 1 milhão de Cisternas (P1MC) e, portanto, com a luta pela garantia de água para as populações rurais do semiárido. Qual o balanço que a ASA faz das conquistas deste Programa e das perspectivas atuais e futuras?
Alexandre Henrique Bezerra Pires: A ASA e o P1MC foram construídos no mesmo período e completam 20 anos em 2019. O P1MC foi a grande “mola” impulsionadora de nosso debate sobre o acesso à água como direito e do que definimos como Convivência com o Semiárido. O Programa possibilitou incorporar muitas práticas já desenvolvidas pelas organizações que atuam no Semiárido e oportunizou muitos outros aprendizados para a ASA como rede e suas organizações, sobretudo no que se refere à construção, proposição, monitoramento e gestão de políticas públicas.
Quando foi lançado há 20 anos, o programa figurou como uma proposta ousada para uns e impossível de ser alcançada para outros. Mas, para nós da ASA, o P1MC materializava o direito das pessoas de terem água potável para beber e cozinhar. Imaginar naquele momento construirmos um milhão de cisternas era quase um sonho, porque o ambiente político ainda era pouco favorável, com poucas experiências de relação entre Estado e sociedade civil na construção de ações políticas para o Semiárido. Somente em 2003 esse ambiente se modificou. Isso porque quando se fala da seca ou do acesso à água com quem viveu na pele isso é mais fácil de sermos escutados do que quando falamos com quem só escuta ou estuda sobre a distante realidade.
Ao mesmo tempo, o CONSEA Nacional foi um importante instrumento para o exercício da democracia, oportunizando que governo e sociedade civil pudessem construir, mesmo em momentos de tensão, as condições para chegarmos em 2018 a 1 milhão de cisternas de placas no Semiárido.
Mas, para além das tecnologias de cimento e areia, nosso trabalho contribuiu para a construção de uma nova visão sobre o Semiárido, seja para quem vive nele ou para quem o olha à distância. A autoestima e a valorização dos saberes dos agricultores e agricultoras, princípios fundamentais de nosso método de trabalho, talvez sejam as maiores conquistas que temos. O reconhecimento internacional também é uma demonstração dessa construção: o P1MC foi premiado em 2017 durante a 13ª sessão da Conferência das Partes da UNCCD (COP 13), com o segundo lugar de Política para o Futuro. A FAO lançou em 2018 o Programa 1 Milhão de Cisternas no Sahel, inspirado na experiência brasileira, que teve José Graziano, ex-diretor geral da FAO, como um grande aliado.
Então, posso dizer que essa iniciativa nos enche de orgulho, embora o atual momento no Brasil nos coloque em dúvida sobre o futuro do programa devido a vários aspectos. Entre eles a não prioridade do governo para o atendimento aos mais pobres, o interesse em construir parcerias com governos estaduais, prefeituras e consórcios em detrimento de parceria com organizações da sociedade civil.
Ao mesmo tempo, a ASA tem buscado construir aliança com outros setores como o Congresso Nacional, por meio da Frente Parlamentar em Defesa da Convivência com o Semiárido, com o intuito de fortalecer a agenda no parlamento nacional. Também temos buscado diálogo com o Consórcio de Governadores do Nordeste e algumas agências multilaterais que reconhecem o nosso trabalho e com quem temos construído processos de intercâmbios de conhecimentos entre agricultores/as de outras regiões semiáridas, como o Chaco Trinacional, o Corredor Seco na América Central e no Sahel. A agenda da cooperação Sul-Sul é uma grande aposta da ASA para fortalecer a Convivência com o Semiárido na troca de saberes com outras regiões.
ONDAS: Em 2007 a ASA criou o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2). Quais são os objetivos deste Programa e como ele vem se desenvolvendo?
Alexandre Henrique Bezerra Pires: O P1+2 tem como objetivo central assegurar para as famílias, que já têm a fonte de água básica para o consumo humano e para cozinhar, uma segunda fonte de água destinada à produção de alimentos, seja para o consumo da família, seja para atender a uma demanda de abastecimento alimentar no mercado local. Atualmente, já são mais de 200 mil tecnologias construídas, por meio das quais as famílias acessam um processo de capacitação e intercâmbio de conhecimentos, reelaboram suas práticas produtivas e de consumo alimentar.
Quando o programa começou dizíamos, entre nós, que o Semiárido seria a região mais produtora de alimentos do Brasil, considerando que temos quase 2 milhões de estabelecimentos da agricultura familiar nesse território. Não esperávamos que essa iniciativa saísse do campo de prioridades do Estado brasileiro. O P1+2 fortalece perspectivas muito importantes para as famílias do Semiárido, entre elas o resgate de sua conexão com a terra, as práticas de cultivos e a criação de animais. Embora tenhamos vivido uma das maiores secas dos últimos anos, entre 2011 e 2017, as famílias agricultoras que tiveram acesso às tecnologias de água para produção não deixaram de produzir alimentos nem de manter o rebanho de animais, como estratégia de produção para alimentação e geração de renda. Contudo, estamos desenvolvendo hoje um projeto em parceria com o BNDES e o Ministério da Cidadania, que deve terminar em março de 2020 e não há nenhum horizonte até o momento para a continuidade do programa.
ONDAS: Como a chamada crise fiscal vem afetando o desenvolvimento destes programas?
Alexandre Henrique Bezerra Pires: A crise que vivemos tem afetado muito o conjunto dos programas e políticas sociais do governo federal. No entanto, entendemos que como dever de Estado o governo tem que atuar para preservar ainda mais as conquistas da população mais vulnerável, que são exatamente os segmentos atendidos por esses programas e políticas. Mas o que presenciamos é o aumento das pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza, além de mudanças na Constituição que ferem de morte o futuro dos mais pobres do Brasil, como a Emenda Constitucional 95 e o enfraquecimento da Política Nacional de Seguridade Social, que inclui saúde, assistência social e previdência, cujas mudanças afetam de forma imediata, a médio e longo prazo, a classe trabalhadora.
Agora, assistimos à movimentação no parlamento e governo para uma reforma tributária, que deve atingir ainda mais trabalhadores e trabalhadoras. O Programa Água para Todos do governo federal é um dos programas com cortes no orçamento para 2019 e sem previsão para 2020. Tudo indica que as necessidades dos grupos mais vulneráveis que são aqueles/as que não têm acesso à água, alimento, emprego, transporte, moradia, terra para trabalhar, entre outros, apenas aumentarão. Na contramão disso, e embora o governo fale de crise econômica, o que observamos é uma aliança entre o governo e o parlamento, sob o olhar indiferente do judiciário, perdoando as dívidas que o setor empresarial tem com o Estado brasileiro. Só para se ter uma ideia, em 2018, o REFIS que é o programa nacional de negociação de dívidas de empresas com o governo federal, perdoou uma dívida de aproximadamente R$ 48 bilhões de reais de empresas devedoras. Esse recurso poderia muito bem contribuir para a manutenção dos programas e políticas sociais.
ONDAS: Para a ASA, qual a responsabilidade do Estado brasileiro em assegurar os direitos humanos à água potável e ao saneamento?
Alexandre Henrique Bezerra Pires: A água como bem comum é direito de todos e todas! Esse foi o princípio balizador da ação da ASA. As organizações que deram origem à ASA e aquelas que se somaram na caminhada, trouxeram como fundamento de suas ações o questionamento sobre a negligência do Estado em garantir o direito da população do Semiárido o acesso à água. As políticas tradicionais investiam na construção de grandes açudes. Embora não sejamos contra para todos os casos, nosso questionamento sempre reside na questão do acesso, sendo que muitos açudes são construídos com recursos públicos e o modelo de gestão limita o acesso ao uso a alguns, por interesses econômicos e políticos locais ou regionais. Por isso, nossa defesa de um modelo que tivesse a gestão sob a governança dos próprios sujeitos de direito, que fosse simples, barato e descentralizado.
Não tem como pensarmos o acesso à água descolado do saneamento, porque entendemos que a perspectiva do saneamento está associada ao abastecimento. Nesse sentido, são muitas as experiências de saneamento rural desenvolvidas no Semiárido e, a partir delas e da nossa experiência com o P1MC e o P1+2, estamos apostando no Programa Nacional de Saneamento Rural, mesmo que a conjuntura política seja altamente desfavorável.
ONDAS: Qual a relação da ASA com o MST e com o MAB?
Alexandre Henrique Bezerra Pires: De forma geral podemos dizer que o MST e o MAB são nossos aliados políticos. Temos construído alianças para fortalecer as pautas desses movimentos, que são muito valiosas na percepção da ASA, porque não entendemos que a Convivência com o Semiárido diz respeito apenas ao acesso à água. Por isso, nos somamos no conjunto de pautas referentes aos direitos dos povos do Semiárido, como o acesso à água e às sementes crioulas, a educação contextualizada, a reforma agrária, a comunicação, além da defesa dos direitos daqueles grupos, comunidades e territórios que são atingidos pelas barragens.
No entanto, a ASA também se coloca como aliada de outros movimentos sociais como a CONTAG e CONTRAF (movimento sindical rural), MPA, CPT, PJR, movimentos de mulheres, movimento agroecológico, movimento indígena e quilombola, entre outros. Entendemos que atuamos em um território onde nossas alianças se constroem em defesa de direitos e contra as diversas formas de opressão e injustiça.
ONDAS: No atual estágio, como a ASA avalia a contribuição da transposição do São Francisco para o acesso à água das populações do semiárido?
Alexandre Henrique Bezerra Pires: Desde o princípio dessa iniciativa, a ASA se posicionou contrária por entender que o acesso das populações rurais do Semiárido a essa água seria algo muito distante de suas necessidades imediatas, sendo que nunca foi apresentado um plano que contemplasse o atendimento a essa demanda. Além disso, trata-se de uma obra de alto custo para o Estado brasileiro e, sobretudo, enfatizamos que, realizar uma obra dessa magnitude com a Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco nas condições ambientais em que se encontrava, seria condenar o rio à morte. Entendemos que há um descompasso na lógica de gestão do bens comuns disponíveis no Semiárido, entre eles as águas do São Francisco, com o modelo de desenvolvimento adotado para a região. Há uma frágil política de gestão e recuperação das bacias hidrográficas no Semiárido. As ações descontroladas de uso da água para irrigação, a falta de saneamento básico das cidades ribeirinhas que jogam seus dejetos diretamente nos rios, a perda das matas ciliares associada à ausência de proteção das nascentes, o desmatamento do Cerrado e da Caatinga são alguns dos aspectos que caracterizam a fragilidade na política de proteção dos mananciais.
Para a ASA, as águas da transposição servem à necessidade de abastecimento de algumas grandes cidades, como Campina Grande, e a projetos econômicos, que devem gerar mais algumas centenas de conflitos, além daqueles trazidos com a construção da obra. Por outro lado, nós apostamos em soluções de simples aplicação, baixo custo e gestão descentralizada. Assim, evitamos problemas seculares e geramos maior autonomia das populações sobre os bens comuns. Também defendemos que, como a transposição das águas do rio São Francisco é uma realidade, teremos que exigir cada vez mais dos governos municipais, estaduais e federal a recuperação da Bacia Hidrográfica, a preservação do Cerrado e da Caatinga, o investimento em saneamento básico e a gestão democrática das águas.