ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Como empresas privadas de saneamento influenciam políticas, leis e normas técnicas no Brasil: o relatório anual das atividades da ABCON/SINDCON em 2021

Texto da interação ONDAS-Privaqua*
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COMO EMPRESAS PRIVADAS DE SANEAMENTO INFLUENCIAM POLÍTICAS, LEIS E NORMAS TÉCNICAS NO BRASIL: O RELATÓRIO ANUAL DAS ATIVIDADES DA ABCON/SINDCON EM 2021
Autora: Estela Macedo Alves [**]

ABCON/SINDCON – Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto – é uma entidade que reúne grande parte das empresas privadas que realizam serviços de saneamento no Brasil. Tem como propósito, de acordo com a apresentação da entidade, tornar possível que o setor privado seja protagonista na universalização do saneamento básico no Brasil. A entidade foi criada em 1996 e hoje agrega 18 holdings [1] e mais de 130 concessionárias; tem em seu histórico a participação ativa na construção das diretrizes nacionais do saneamento, sua regulamentação e inclusive na normatização da execução dos serviços de saneamento. Atuou como articuladora entre as empresas privadas e o poder legislativo federal, desde a publicação do Marco Legal do Saneamento de 2007 (COLONEZE, 2022). A entidade influenciou nos Projetos de Lei que culminaram na Lei Federal 14.026 de 2020, a revisão do Marco Legal do Saneamento, que enfim abre todas as portas para a prestação privada dos serviços de saneamento no Brasil.

O papel da ABCON/SINDCON como ator influente na construção de políticas públicas de saneamento, no cenário brasileiro, foi descrito em outro ensaio desta série ONDAS – Privaqua, por Coloneze (2022). Sendo assim, no presente texto, vamos focar em discutir as ações apresentadas no Relatório Anual 2021 (ABCON SINDCON, 2021), que procura demonstrar o sucesso da entidade no atendimento aos interesses das empresas privadas de saneamento, garantindo grande influência nas decisões, no que diz respeito a leis, regulamentação dos serviços e até mesmo do cálculo tarifário.

O posicionamento ABCON SINDCON

As 42 páginas de conteúdo do Relatório Anual 2021 (ABCON SINDCON, 2022) trazem, de forma simples e direta, as conquistas da Associação, no primeiro ano de implementação das diretrizes estabelecidas pela Lei 14.026 de 2020. Destaca a evolução conquistada pelo setor privado, nesse período, após a abertura do mercado para a livre competição entre as empresas privadas e com maior segurança jurídica, na suposta busca pela universalização dos serviços de água e esgotamento sanitário. A entidade aponta que, nos 18 meses desde a aprovação da Lei Federal 14.026, houve crescimento de 7% na proporção da população brasileira atendida pelas empresas privadas associadas à ABCON SINDCON, afirmando que as empresas têm contribuído para a construção de um caminho em direção à universalização do saneamento no país.

Para continuar a busca incessante pela conquista de mercados na prestação de serviços de saneamento, o qual a Associação chama de “universalização”, prega-se a aplicação de transparência, regras de governança e cumprimento de normas e leis evitando a corrupção no setor, a chamada compliance [2]. Tratando-se do cumprimento de leis e normas, observa-se que, uma vez que a própria Associação colabora na edição das leis e normas, conforme discutiremos a diante, obviamente já prevê aquilo que poderá ser cumprido. Em seguida, afirma enfaticamente que fará com que seus associados trabalhem para cumprir as diretrizes legais, inseridas nas agendas do poder público por elas mesmas!

No relatório, destaca-se que as contratações de empresas de saneamento por processos licitatórios, como previsto na Lei 14026 de 2020, resultaram no aumento da participação privada no setor de saneamento. No período que vai desde a promulgação da Lei 14026 de 2020 até o fechamento do relatório, sete leiloes já haviam sido realizados com sucesso (ABCON SINDCON, 2022, p.8). As empresas vencedoras dos leiloes já realizados são: Grupo Águas do Brasil; Aegea Saneamento; Allonda Ambiental; Aviva Ambiental; Conasa; Cymi; Equatorial Participações; Investimentos S.A. e SAM Ambiental e Engenharia. As quatro primeiras, associadas e participantes ativas da ABCON SINDCON (2022, p.42-45).

De forma geral, os leilões são estruturados pelo Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e apoiados pelo Ministério do Desenvolvimento Regional e do Ministério da Economia (BRASIL, 2021; BNDES, 2021), com os quais a ABCON SINDCON interage de forma bastante ativa, conforme descrito no Relatório. De acordo com o Plano Estratégico da entidade, para o período 2021-2024, sua atuação se dará com olhar global sobre o setor, de forma proativa e sistemática, em nível nacional. A leitura e interpretação do documento permite identificar como um setor econômico específico estabelece coalizões de defesa de interesses com setores do governo, conseguindo influenciar de forma contundente as decisões políticas.

Nota-se que o poder do setor econômico do saneamento privado chegou a um nível de especialização tal, que conseguiu se colocar na janela de oportunidade que se abriu desde 2018, na edição dos Projetos de Lei que culminaram na revisão do marco legal do saneamento, em benefício desse grupo. É possível perceber o desequilíbrio de poder entre o grupo representado pela ABCON SINDCON e outros grupos do setor de saneamento, que não têm o mesmo espaço político para influenciar e formar coalizões nos diversos níveis de poder, num Estado dominado por ideias conservadoras, elitistas e neoliberais.

Alguns dos resultados comemorados pela ABCON no Relatório Anual 2021

São apresentados os resultados alcançados em prol dos associados, que haviam sido estabelecidos pela Associação, com base nos objetivos estratégicos do Plano da Associação. Selecionamos para esta discussão, apenas alguns dos resultados que exemplificam a forte influência da entidade nas decisões de políticas públicas, em nível nacional, e que geram fortes conflitos de interesses com o interesse público e a paridade de forças que a democracia brasileira deveria prezar, de acordo com a Constituição Federal de 1988.

Como primeiro resultado, o relatório apresenta a realização de um evento da Associação no Congresso Nacional, com a participação do Ministro Rogério Marinho (MDR) e do Secretário Nacional de Saneamento, Pedro Maranhão, além de parlamentares, inclusive Ricardo Barros, então líder do governo na Câmara dos Deputados (ABCON SINDCON, 2022, p.13). Nesse evento, foi entregue a esses representantes do povo, uma Agenda Legislativa dos Operadores Privados de Saneamento, com uma análise sobre cada projeto de lei em tramitação no Congresso que tem relação com o setor. Dessa forma, os principais líderes estiveram presentes e receberam o manual com orientações sobre como devem se posicionar, em relação ao tema do saneamento, de acordo com os interesses das operadoras privadas.

O segundo resultado destacado diz respeito à formalização de contribuições junto à Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA), quanto a diversos temas que deverão ser obedecidos pelas empresas privadas agregadas na Associação. Ou seja, a associação representante das empresas privadas enviou para a ANA documentos em que explica como devem ser as exigências que elas mesmas deverão seguir! Tais como:

– Indicadores e padrões de qualidade dos sistemas de abastecimento de água e de esgoto;

– Indicação de como devem ser escritas as cláusulas aditivas aos contratos de água e esgoto;

– A metodologia de cálculo de indenização de ativos para o segmento de água e esgoto que a ANA deverá cobrar das próprias empresas proponentes;

– Estudo sobre o conteúdo mínimo dos contratos de equilíbrio econômico-financeiro das empresas privadas, entre outras.

Foi relatado também pela Associação, o sucesso na conquista da aprovação de 2 Normas de Referência da ANA, segundo suas demandas:

– A NR 1/2021, que dispõe sobre o regime e a estrutura de cobrança sobre prestação de serviço público de manejo de resíduos sólidos e inclui os procedimentos de reajuste e revisão tarifária.

– A NR 2/2021 ”que dispõe sobre a padronização dos aditivos aos Contratos de Programa e de Concessão, para prestação de serviços de abastecimento de água potável e esgotamento sanitário, para incorporação das metas previstas no art.11B da Lei 11.445/2007” (ABCON SINDCON, 2022, p.13).

O terceiro resultado trata da elaboração de subsídios técnicos que venham a fundamentar o posicionamento dos deputados em relação aos projetos de lei da Agenda Legislativa e encaminhá-los aos relatores.

Entre outros resultados da atuação política da Associação no ano de 2021, que são enumerados e comemorados, estão:

– A “Retirada do Projeto de Lei 10.108/2018 (abastecimento de água por fontes alternativas) da pauta de discussão da CDU”;

– Aprovação do Projeto de Lei 3.729/2004, que trata do Licenciamento Ambiental, na Câmara dos Deputados (ABCON SINDCON, 2022, p.16), entre outras, beneficiando, dessa forma, as empresas associadas.

Por fim, entre as inúmeras ações no sentido de exercer forte influência nas decisões do poder público, chama muita atenção o resultado que tem como título “Atuar na elaboração e publicação de 100% de Decretos do Executivo Federal relacionados à regulamentação do novo marco legal do setor” (ABCON SINDCON, 2022, p.17). Afirma-se que a ABCON SINDCON apresentou ao Ministério da Economia e ao Ministério do Desenvolvimento Regional contribuições para a elaboração do Decreto 10.710/2021, sobre as formas de comprovação da capacidade econômico-financeira das empresas prestadoras de serviços de saneamento. Afirma-se ainda a conquista da Associação na elaboração da Cartilha com orientações aos órgãos reguladores.

Considerações finas (e indignadas)

Qual a parcialidade de leis e normas de regulamentação de serviços públicos, prestados por empresas privadas, e que foram idealizadas pelas maiores empresas do setor?

A presidente do Conselho de Administração da ABCON e do SINDCON, Teresa Cristina Querino Vernaglia, é do quadro da empresa BRK Ambiental Participações, uma das maiores empresas de saneamento do país, que atua em mais de 100 municípios, atendendo mais de 16 milhões de clientes (BRK, 2021). Além dela, todo o quadro administrativo, fiscal e técnico da ABCON SINDCON é composto pelos representantes das empresas mais fortes do setor de saneamento do Brasil, que estão presentes em todas as concorrências públicas.

As mesmas concorrências são regidas por normas não tão públicas e nem tão democráticas, pois tiveram a contribuição declarada e efetiva de um único lado: o mais forte. Em geral, há menor relevância na manifestação do contraponto da sociedade, das empresas públicas e de outros setores da sociedade civil, pois estes tiveram menos espaço de participação e não têm abertura nos principais níveis de governo, neste momento.

As ações da entidade podem parecer uma forma legítima de participação de um setor da sociedade civil, no entanto, alertam para forte desequilíbrio de forças que existe na sociedade, uma vez que não houve chamamento público e não se tem conhecimento deste tipo de abertura à participação para outros grupos. Usuários dos serviços de saneamento, movimentos de moradia, movimentos de atingidos por barragens, comunidades quilombolas, indígenas e tradicionais, são grupos que serão afetados pelas decisões tomadas pelo poder público, sob tutoria de grupos financeiramente muito fortes, como este representado pela ABCON SINDCON.

Notas:

[1] Holding é um tipo de empresa ou sociedade que centraliza a gestão de outras empresas, assim, sua função principal é administrar e controlar bens de diversas empresas.

[2] Compliance é outro dos vocabulários muito explorado por empresas. Significa o cumprimento de normas legais, de regulamentações, das políticas e das diretrizes estabelecidas para aquele determinado setor. Também faz parte das práticas de compliance, evitar e corrigir desvios e corrupções que possam ocorrer. Em inglês, to comply significa “cumprir”.

Referências:
ABCON SINDCON. Sobre a ABCON SINDCON. On-line, 2022. Disponível em: <https://abconsindcon.com.br/institucional>. Acessado em: 21/03/22.

ABCON SINDCON. Relatório Anual 2021. On-line, 2021. Disponível em: <https://abconsindcon.com.br/relatorio-anual>. Acessado em: 21/03/22.

BNDES – Banco Nacional do Desenvolvimento. Com apoio do BNDES, Rio vende terceiro bloco de saneamento por R$2,2 bilhões. On-line, 27/12/2021. <https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/imprensa/noticias/conteudo/com-apoio-do-bndes-rio-vende-terceiro-bloco-de-saneamento-por-2%2C2-bilhoes>. Acessado em: 21/03/22.

BRASIL, Governo Federal. Leilão concede serviços de água e esgotamento sanitário de 61 município de Alagoas. On-line, 15/12/2021. Disponível em: <https://www.gov.br/pt-br/noticias/financas-impostos-e-gestao-publica/2021/12/leilao-concede-servicos-de-agua-e-esgotamento-sanitario-de-61-municipios-de-alagoas>. Acessado em: 21/03/22.

BRK AMBIENTAL. Institucional. On-line, 2022. Disponível em: <https://www.brkambiental.com.br/quem-somos>. Acessado em: 21/03/22.

COLONEZE, Y.F. Como ocorreu a atuação da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (ABCON) para alimentar de vez a maior participação da iniciativa privada na prestação dos serviços de saneamento? On-line, 09/02/2022. Disponível em: <https://ondasbrasil.org/atuacao-da-abcon-para-alimentar-participacao-da-iniciativa-privada/>. Acessado em: 21/03/22.

Autora:
[**] Estela Macedo Alves – Pesquisadora no Instituto René Rachou / Fiocruz Minas Gerais. Pós-doutoranda Programa USP Cidades Globais. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (2003), mestre em Planejamento Urbano e Regional (2009) e doutora em Ciência Ambiental (2018) ambos pela Universidade de São Paulo.

* Privaqua é um projeto de pesquisa que busca entender o impacto da privatização dos serviços de água e saneamento nos direitos humanosRegularmente, o site do ONDAS publica notas do Privaqua de forma a dar transparência ao projeto e compartilhar alguns de seus achados preliminares.

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