ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Concessão de água e esgoto gera incerteza

 

Reportagem do Diário do Comércio (Belo Horizonte – MG), publicada em 18/2/22, aborda a questão da concessão dos serviços de água e esgoto, em especial no estado de Minas Gerais. O secretário-executivo do ONDAS, Edson Aparecido da Silva, foi um dos entrevistados.
Repórter: Sandra Carvalho (para ler no original, clique aqui – capa e página 6)

CONCESSÃO DO SANEAMENTO PODE PREJUDICAR MUNICÍPIOS MINEIROS
Prestação de serviços pela iniciativa privada para universalizar acesso pode não ser viável em todas as 853 cidades 

Um dos grandes desafios do Brasil é fazer com que a água tratada chegue a 99% da população e que pelo menos 90% dos habitantes tenham esgoto tratado até 2033, em cumprimento à Lei 14.026/2020, chamada de o novo marco regulatório do saneamento. Além de estabelecer meta, a legislação mudou a natureza da contratação dos serviços nos municípios, que deixou de ser por contratos de programas e passou ao modelo de concessão à iniciativa privada, via licitação, estimulando a concorrência, pressupondo-se melhoria. Um ano e cinco meses após a promulgação da legislação, em Minas Gerais, Estado com grande diversidade regional, ainda pairam dúvidas e incertezas sobre como tudo vai acontecer, e se realmente vai dar certo nos 853 municípios.

Isso porque pelo menos 215 cidades em Minas não têm sequer um plano de saneamento, segundo a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad). Além disso, em localidades onde o acesso à água e ao esgoto tratados ainda está em  percentuais bem abaixo da média nacional, a contratação do serviço pelo município, no modelo de concessão, pode significar, segundo especialistas, encarecimento das tarifas. Pode, ainda, ocorrer desinteresse de empresas em ofertar o serviço em lugares onde os desafios sejam grandes, inviabilizando a prestação.

Diante disso, a criação de unidades regionais de municípios para a viabilidade econômica dos contratos de concessão é uma saída prevista na nova legislação e que fica a cargo do Estado. Um projeto de lei que prevê a criação de 22 unidades foi enviado pelo Governo de Minas à Assembleia Legislativa. No entanto, as cidades não são obrigadas a aderir ao bloco regionalizado. Já a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), que atende 75% das cidades em Minas, embora possa perder em renovação de contratos com o novo modelo, enxerga boas oportunidades com a mudança nas contratações.

Nesse contexto, a sonhada universalização do acesso à água e esgoto tratados no Estado é tema desta semana do #JuntosPorMinas. O projeto do DIÁRIO DO COMÉRCIO aborda desafios e gargalos que podem ser transformados em oportunidades de crescimento econômico e  inclusão social em Minas Gerais.

Viabilidade financeira é fundamental
A grande justificativa dos congressistas brasileiros para a aprovação da Lei 14.026/2020 que alterou o código do saneamento (Lei 11.445/2007) foi de que a concessão dos serviços de água e esgoto à iniciativa privada irá estimular a universalização do acesso e a qualidade dos serviços. Deputados e senadores a favor diziam, na época da tramitação, como um mantra, que seriam necessários R$ 700 bilhões em investimentos para que os serviços chegassem a 100% da população, algo longe da realidade dos cofres públicos.

Para a presidente-executiva do Instituto Trata Brasil, Luana Siewert Pretto, as mudanças no marco do saneamento representam de fato o melhor caminho. “Antes no Brasil, cada região, Estado ou município tinha uma meta. Um grande ganho com a legislação foi o estabelecimento de metas, uma uniformização nesse sentido. O grande desafio agora é ter recursos para que isso aconteça. As companhias hoje atuantes terão de comprovar capacidade econômico-financeira e operacional para se chegar a essas metas”, observou.

A própria Copasa, que detém contratos de programas em 640 dos 853 municípios mineiros, também vê a nova legislação de forma otimista, embora a renovação de seus contratos de programas com as cidades fique impedida. Ou seja, a companhia terá de participar de uma licitação e concorrer com outras empresas para prestar o serviço.

“É uma grande oportunidade de transformação e o momento de a companhia se preparar de forma mais severa para o ambiente concorrencial. O novo marco pretende colocar todos os operadores do saneamento no mesmo nível de disputa”, ressaltou a diretora de relacionamento e Mercado da Copasa, Cristiane Schwanka.

Segundo ela, hoje, a tarifa cobrada pela companhia leva em conta o modelo de subsídio cruzado. Cidades onde o serviço é mais sustentável mantêm o serviço naquelas onde a realidade é outra. Isso uniformiza a tarifa e viabiliza o acesso. “Com o novo marco, a cidade poderá se associar a um consórcio de municípios.

Pode, inclusive, contratar mais de um operador. São muitas possibilidades. Mas é preciso sempre levar em conta a sustentabilidade financeira da prestação de serviço”. Esse é exatamente um dos pontos de preocupação para o secretário-executivo do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), Edson Aparecido da Silva. “Quando passa a se relacionar com o mercado, o interesse de uma empresa é a sustentabilidade financeira para que seus acionistas tenham lucro. E a universalização do saneamento é uma questão social, de saúde pública, incompatível com o lucro. Experiências recentes no Brasil e mundo afora já nos mostram que as empresas vão querer atuar onde já há infraestrutura, como, por exemplo, a RMBH, onde não precisará muito investimento. Em locais mais desafiadores, como o Norte de Minas, por exemplo, certamente haverá pouco interesse”.

Projeto de lei
Mas para viabilizar economicamente a prestação de serviços pela iniciativa privada em locais mais desafiadores, a criação de blocos regionais é um dos mecanismos do novo marco legal. Dessa forma, cidades onde há maior viabilidade técnica e financeira se agrupariam com aquelas onde há menor para a contratação.

A criação desses blocos fica a cargo do Estado. Um projeto de lei enviado pelo Governo de Minas à Assembleia em julho (PL 2884/2021) cria 22 unidades regionais de abastecimento de água e esgoto (Uraes). A proposta, que está na Comissão de Constituição e Justiça, visa a propiciar o ganho de escala e a viabilidade técnica e econômica, para a universalização”. Mas, a adesão dos municípios é facultativa.

Segundo a Agência Reguladora de Serviços de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário do Estado de Minas Gerais (Arsae), após aprovadas e definidas as Uraes, o processo e licitação para a concessão do serviço poderá ser feito por elas.

Recursos necessários
Ainda conforme Edson Silva, do Ondas, aquela justificativa inicial de parlamentares de que havia a necessidade de investimentos de R$ 700 bilhões para universalizar o acesso ao saneamento era falaciosa. “Repetiam os R$ 700 bilhões como um mantra, para convencer, alegando que não haveria recursos públicos. Mas estudos da própria Agência Nacional das Águas e Saneamento e de outros órgãos e institutos mostram que seriam necessários em torno de R$ 350 bilhões.

Além disso, o dinheiro para financiar as empresas privadas que prestarão os serviços virá exatamente dos cofres públicos, via BNDES. Então, o melhor caminho teria sido direcionar recursos às políticas públicas, dando continuidade a Lei 11.445/2007, uma vez que as ações de saneamento são de longo prazo”.

Modelo não deu certo em vários locais
Exemplos pelo País e pelo mundo de experiências negativas com a concessão da prestação de serviços de saneamento à iniciativa privada não faltam, segundo Edson Silva,do Ondas, que também é assessor de saneamento da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU).

Segundo ele, no Amapá, Estado que recentemente fez a concessão da prestação do serviço de água e esgoto, a empresa vencedora da licitação vai atuar somente na área já consolidada com saneamento, e não irá atender às áreas periféricas, rurais e quilombolas. “O governo do Amapá pretende agora criar uma empresa pública para cuidar dessas áreas que não serão atendidas, pois não houve interesse da empresa. Em Tocantins, o serviço estadual também foi privatizado.

Passado um tempo, a empresa vencedora quebrou o contrato e devolveu as áreas para o  Estado, que precisou criar autarquias”, apontou. Mundo afora, os exemplos também não são bons. Estudo do Instituto Transnacional (TNI), centro de pesquisas com sede na Holanda, mostrou que, de 2000 a 2019, 312 cidades em 36 países precisaram reestatizar serviços de tratamento de água e esgoto. Entre elas, estão Paris (França), Buenos Aires (Argentina), La Paz (Bolívia) e Berlim (Alemanha).

“Não há no mundo e no Brasil experiências positivas de privatização do acesso à água e ao esgoto tratado. Você não resolve um dos problemas mais complexos do País com uma perspectiva dessas, entregando para a iniciativa privada resolver. O acesso tem que ser para todos, independentemente da capacidade de pagamento pelo serviço”, afirmou a doutora em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos pela UFMG, Uende Aparecida Figueiredo  Gomes.

Projeto SanBas
Uende é coordenadora do projeto SanBas, parceria entre a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e a UFMG, que permitiu que pesquisadores, professores e estudantes se juntassem aos moradores, trabalhadores da área de saneamento e gestores de 30 municípios de Minas Gerais de até 50 mil habitantes, para pensarem juntos sobre o saneamento e elaborarem os Planos Municipais de Saneamento Básico. “Trata-se de um direito humano reconhecido pela ONU, cuja garantia depende, principalmente, de políticas públicas”, afirmou.

Contrato da Copasa com a PBH vence em 2032
O município de Belo Horizonte tem um contrato de programa com a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) até 2032, ou seja, pelos próximos dez anos, a cidade continua transferindo à companhia a execução de serviços de água e esgoto, orientada pelas políticas públicas do município. Conforme as alterações no marco regulatório do saneamento, quando vencer o prazo desse contrato, a prefeitura da Capital não poderá renová-lo.

Terá de fazer uma licitação para a concessão do serviço. A Copasa poderá concorrer com qualquer outra empresa que apresente comprovação de capacidade financeira e operacional de executar os serviços tendo como base as metas para 2033. No entanto, para se adequar ao novo marco regulatório, a cidade terá de promover alterações no contrato vigente com a Copasa, seguindo as diretrizes da legislação no sentido de universalizar o acesso à água e ao esgoto tratado em 11 anos. Sobre isso, a Prefeitura de BH informou, por meio de nota, que iniciou as tratativas com a Copasa. Em 30 de dezembro, o município manifestou à companhia anuência em firmar um Termo de Atualização Contratual, com vistas à inclusão de metas e de conteúdo mínimo, conforme a Lei 14.026/2020.

A cidade também solicitou à Copasa a disponibilização de informações necessárias para a avaliação do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, “para que se tenham todas as definições visando à possível atualização do instrumento até a data limite prevista no novo Marco Regulatório do Saneamento Básico”.

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