Para o Secretário-Geral Adjunto da Internacional de Serviços Públicos (ISP), David Boys, o setor de saneamento está relacionado a questões ligadas a bens e recursos naturais, à própria existência, e, por isso, não deve ser privatizado. “Serviços vinculados aos recursos naturais não podem ser monopolizados por empresas. Serviços essenciais à vida têm de estar em mãos públicas”, afirma. Para ele, o caminho é o fortalecimento da democracia, com mais transparência e controle social público.
Confira a entrevista exclusiva concedida por David Boys ao ONDAS:
ONDAS: Fundada em 1907, a ISP (PSI) já tem 112 anos. Neste mais de um século, como a entidade evoluiu? Como se moldaram seus objetivos, suas bandeiras e métodos de luta?
David Boys: Nossas filiadas representam trabalhadores de governos locais, estaduais ou nacionais. Sendo assim, a política determina uma série de coisas na vida dessas pessoas, como as condições de trabalho, salários, benefícios etc. Podemos dizer, então, que a política influencia no âmbito do trabalho de maneira geral e mais especificamente na vida desses trabalhadores.
O modelo neoliberal foi implantado pela primeira vez pela ditadura de Augusto Pinochet, no Chile, e seguido por outros governos, como de Margaret Thatcher, no Reino Unido, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos. A verdade é que nos anos 1980 e 1990 foi enorme o ataque aos serviços públicos e ao papel do Estado. Tentava-se convencer a população de que o problema era o governo. E a maioria aceitava isso.
Atualmente, o neoliberalismo impõe aos governos a adoção de políticas de austeridade, bloqueando sua capacidade de investir em serviços públicos, abrindo caminho, desse modo, para o investimento privado. Nesse sentido, os tratados de livre comércio que se discutem hoje permitem a entrada de empresas e investidores privados nos serviços públicos, e, uma vez dentro, fica quase impossível tirá-los.
Neste momento, o Estado está muito debilitado e não consegue enfrentar a pobreza e as desigualdades de gênero, raça e classe sem ter orçamento e investimentos adequados. Isso é resultado de 50 anos de distorção gerada pelo capitalismo, pelos mais ricos e pelas multinacionais. Há também ataques frontais ao sindicalismo, de forma que a taxa de sindicalização tem baixado em todo o mundo. O nível mundial, no setor privado, hoje é menos de 10%, mas no público está entre 25% a 30%.
Estamos em um momento-chave, de luta por justiça fiscal, contra acordos de livre comércio que limitam o papel do governo, contra as privatizações, as políticas de austeridade, a crise climática etc. Podemos ver o controle do capital e das multinacionais sobre quase todos os governos, e inclusive dentro das Nações Unidas. Acredito que a solução desses problemas passa, principalmente, pelo fortalecimento da democracia.
Trata-se de um momento complicado, mas de boas lutas, e o servidor público é fundamental nesse processo.
Entendemos que os sindicatos do setor público devem ter uma relação com a comunidade, com a cidade, que depende dos serviços públicos prestados. Além disso, é evidente que quando há uma população em situação de pobreza, um bom serviço público melhora a vida das pessoas. Há pesquisas que indicam que um serviço público de qualidade pode equivaler a até 75% do salário dos mais pobres. A ISP acredita em uma aliança com a sociedade civil para avançarmos na luta de classes, para defender os direitos humanos, e lutar contra a pobreza, a discriminação e a desigualdade. Os sindicatos devem sair de sua zona de conforto (o âmbito estritamente laboral) e efetivamente olhar para fora, isso em forte articulação com os movimentos sociais.
ONDAS: Qual o foco da atuação da ISP no que diz respeito especificamente aos serviços públicos de água e saneamento?
David Boys: Com o avanço do neoliberalismo, ganhou destaque, a partir dos anos 1980, a concessão de serviços de água e saneamento com base no modelo francês. Isso porque as duas gigantes do setor são francesas e possuem um orçamento de mais de 40 bilhões de euros. Elas chegaram a esse ponto porque tinham todo um mecanismo de influência, do nível global ao local.
A ISP lutou muito contra essa privatização, tendo o Brasil como aliado. Tínhamos claro que não era apenas uma questão contratual; tudo passava pela política. Conseguimos, nos anos 2000, fazer muitas alianças nessa luta, por isso, para nós, a área do saneamento é muito simbólica.
O setor de saneamento está relacionado a questões ligadas a bens e recursos naturais, à nossa própria existência. Por tudo isso, essa nossa luta teve muita ressonância.
No final das contas, as empresas francesas mudaram seu modelo de gestão. Não conseguem mais contratos extremamente longos, como por exemplo de 30 anos, como acontecia no passado.
ONDAS: Qual a relação dessa ação com a defesa do direito humano à água e ao esgotamento sanitário?
David Boys: Depois de um longo processo de campanha em nível nacional e internacional, em 2010 a ONU votou para que a água e o saneamento passassem a ser considerados direitos humanos. Esse reconhecimento é fundamental.
Mas hoje o problema está nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Enquanto a ONU diz que temos que assegurar o acesso universal até 2030, muitos governos implantam políticas de austeridade, o que vem acontecendo no mundo desde a crise financeira de 2008.
Os países passaram a buscar dinheiro no setor privado, principalmente em investidores institucionais, como fundos de pensão e fundos de seguro. Esses investidores privados estão entrando em todas as áreas e já representam uma ameaça pior do que a gestão das empresas privadas. O modelo visa tirar o máximo de lucro sem fazer nada, só com engenharia financeira, sem se preocupar com resultado ou impacto. Lucro não combina com serviços públicos de boa qualidade, acesso universal e interesses coletivos.
ONDAS: Quais os argumentos centrais da ISP na defesa do abastecimento de água como serviço público prestado por entidades públicas?
David Boys: Quando um governo entrega esse serviço a uma empresa que tem como prioridade maximizar o lucro, está abrindo a caixa de Pandora para distorções impressionantes, que constatamos em muitos países.
Serviços vinculados aos recursos naturais não podem ser monopolizados por empresas. Serviços essenciais à vida têm de estar em mãos públicas. O governo não é necessariamente uma boa mão, mas avança com o fortalecimento da democracia, com a questão da maior transparência e com o controle social público. É nesse sentido que precisamos atuar.
Uma empresa pública pode comprar bens e serviços do setor privado, mas é o público que decide. O privado, caso entre, deve fazê-lo apenas como prestador. No saneamento, a lei de mercado não funciona porque nesse caso a população só pode ter acesso se tiver dinheiro.
No Brasil, o que vemos são serviços de saneamento locais, até porque é difícil transportar água. Por outro lado, há tensões entre empresas estaduais e municipais. As estaduais têm interesses privados, têm muitas vezes acionistas. Já as municipais dependem do subsídio cruzado para manter o serviço.
O que precisamos é fortalecer o setor de saneamento público com boa regulação e bons mecanismos de financiamento, que deve vir do governo federal. Além disso, lutar por condições de trabalho dignas, porque o conhecimento desses trabalhadores é fundamental para que seja oferecido um serviço de qualidade.
ONDAS: Observa-se na Europa e na América Latina uma série de processos de retorno aos prestadores públicos dos serviços de abastecimento de água. Quais os casos que você considera mais emblemáticos?
David Boys: Internacionalmente, tanto governos de esquerda quanto de direita optaram pela remunicipalização. A análise é sempre que a privatização encarece e dificulta os serviços. Muitos governos ainda estão estudando como terminar esses contratos com empresas privadas, porque não é fácil remunicipalizar ou reestatizar. O prestador muitas vezes não abre as informações porque quer renovar o contrato.
Em Paris, a privatização executada por Jacques Chirac em 1985 (quando era prefeito da cidade) aconteceu de maneira obscura. Ele dividiu a cidade e entregou o serviço de saneamento para duas empresas francesas, hoje conhecidas como Veolia e Suez. 20 anos depois, um governo de esquerda resolveu não renovar esse contrato. Cinco anos antes do término, houve uma consulta à população da cidade, que mostrou sua insatisfação com a privatização. Foi uma briga contra o setor privado e seus aliados no governo, que terminou em 2010. Com 9 anos de experiência após a remunicipalização, os resultados são excelentes.
Na Argentina, havia uma crise econômica que fez o peso se desvalorizar. A empresa concessionária do serviço de saneamento de Buenos Aires, então, queria receber em dólares ou aumentar muito as tarifas. O governo não aceitou, encerrando o contrato. A empresa acionou os tribunais privados internacionais para pegar milhões do governo. E o governo de Buenos Aires teve de perguntar ao sindicato como administrar a empresa remunicipalizada, porque havia perdido tal conhecimento durante os muitos anos de privatização.
ONDAS: De que forma as entidades sindicais brasileiras participam da ISP?
David Boys: No Brasil, as 32 entidades filiadas relacionam-se e participam da ISP de diversas formas. Existem as instâncias periódicas e oficiais, tais como o SUBRAC (reunião anual da sub-região Brasil), os encontros e atividades dos Comitês Temáticos e as atividades em nível interamericano tais como o IAMREC (Comitê Executivo Regional Interamericano), que se reúne anualmente, e o IAMRECOM (Conferência Regional Interamericana), a cada 5 anos, assim como o Congresso Mundial, que acontece também a cada 5 anos. E a Secretaria Sub-regional do Brasil apoia, subsidia politicamente e acompanha as lutas das entidades filiadas, participando das instâncias coletivas, campanhas e demais atividades por elas promovidas.
Ademais, realizamos seminários e debates sobre temas relevantes – nacional e internacionalmente – para o aperfeiçoamento e fortalecimento da organização sindical, tais como justiça fiscal (acabamos de lançar o estudo “Justiça fiscal na América Latina é possível?”) e igualdade de gênero (tivemos um seminário em outubro deste ano sobre violência de gênero no trabalho abordando a recente Convenção 190 da OIT sobre o tema), entre outros. Temos organizados no Brasil os seguintes Comitês: Mulheres, Jovens, LGBT, Combate ao Racismo e à Xenofobia. Outra frente de luta forte é a contra as privatizações. A ISP é, inclusive, parte atuante do estudo feito em 2014 pelo TNI (Transnational Institute) sobre reestatização e remunicipalização de serviços públicos, e a maioria dos casos são do setor de água e energia. E temos tido também uma excelente parceria com a FES, DGB, KOMMUNAL e FORSA sobre vários temas e que entre outros países beneficiam também o Brasil.
Apoiamos e participamos de Fóruns e espaços que expressem a luta por direitos trabalhistas, serviços públicos de boa qualidade e a soberania nacional. Nesse sentido, compusemos por exemplo a Coordenação do FAMA (Fórum Alternativo Mundial da Água), que ocorreu em março de 2018 na cidade de Brasília, do qual participei de uma mesa de debates em defesa da água como direito. Além disso, a ISP tem participado e apoiado o Fórum Social Mundial, entre outros.
Atualmente, estamos iniciando parceria com o ONDAS com o objetivo de apoiar o estudo que verifica o acesso à água e as tarifas sociais quando estão sob gestão pública em comparação com a gestão privada, abrangendo cidades do Brasil e da França.
Conheço e acompanho bastante as lutas das brasileiras e brasileiros, inclusive sei que a ISP Brasil fez em dezembro de 2018 uma queixa formal junto à Organização Internacional do Trabalho por causa do desrespeito à Convenção 151 – que garante liberdade de organização e negociação coletiva para o setor público –, assim como também fez queixas formais na OIT contra o Poder Judiciário, que vem reprimindo a organização dos trabalhadores por meio de práticas antissindicais.
Vejo que governo do presidente Jair Bolsonaro tem atacado fortemente os direitos humanos, trabalhistas e sociais, desmontando e privatizando serviços e políticas públicas que eram estratégicas para a inclusão e o desenvolvimento econômico e social do país. Pretende, inclusive, privatizar a água e a energia: tentou sistematicamente por meio de Medidas Provisórias, foi derrotado e, agora, em relação ao saneamento, tenta novamente por meio do nefasto Projeto de Lei 3261/2019.
Vejo o cenário brasileiro com bastante preocupação, porém vejo também muita resistência e garra dos movimentos sociais, de estudantes, dos sindicatos, das feministas e partidos progressistas em barrar o desmonte, as privatizações, a perda de diretos e de soberania nacional, na verdade tentando restabelecer a democracia no Brasil. E nós da ISP estamos e estaremos juntos em todas essas frentes democráticas!
ONDAS: Com o as questões de gênero e juventude integram a pauta da ISP?
David Boys: Somos muito sensíveis às questões de gênero e acreditamos que os serviços públicos também têm o papel de apoiar a mulher para que ela se libere das responsabilidades historicamente designadas a ela.
Se não há acesso à água encanada, por exemplo, são sempre as mulheres e as meninas que vão buscar. Quando não há um serviço de saúde de qualidade, muitas vezes as meninas têm de deixar a escola para cuidar das crianças ou familiares doentes em casa. Tudo é feito para tirar a mulher da vida coletiva.
Nos sindicatos, também vemos isso. No setor da saúde, por exemplo, a maioria das trabalhadoras são mulheres, mas os cargos de liderança estão com os homens. Por isso, a ISP foi a primeira central sindical mundial que insistiu na paridade de gênero em todas as delegações de nossas instâncias.
O Comitê Mundial de Mulheres da ISP é muito atuante na ONU e, por meio da discussão e pressão sobre questões como assédio e violência contra a mulher nas relações de trabalho, conquistamos a recente Convenção 190 da OIT sobre o tema.
ONDAS: Quais são os principais desafios colocados no enfrentamento das privatizações e defesa dos serviços públicos nos países do Hemisfério Sul?
David Boys: Temos de ter como foco o fortalecimento da democracia e enfrentar os problemas que temos para além de nossos sindicatos. Se ficarmos pensando apenas em nossas condições trabalhistas, seremos extintos enquanto entidades sindicais.
Precisamos de um sindicalismo social e não só corporativista, que é um de nossos piores inimigos.
O Hemisfério Sul tem de analisar quanto dinheiro perde com a falta de justiça fiscal, quanto dinheiro sai do país pelas transnacionais. Também temos de lutar pela transparência e pelo controle público nos governos, para que os recursos públicos sirvam de fato para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.