autores: Léo Heller* e Rogério Correia**
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O prefeito de Valadares desencadeou um processo para a privatização dos serviços de água e esgoto no município, como uma pretensa solução para os problemas atuais e caminhar rumo à universalização do atendimento. Tal modelo, se implementado, colocaria esses serviços nas mãos da iniciativa privada por um período de 30 anos.
O movimento posto em marcha pelo atual prefeito André Merlo converge com a visão de grupos econômicos que vêm defendendo o chamado novo marco do saneamento básico – a Lei 14.026/2020, aprovada pelo Congresso com o apoio decisivo da equipe econômica ultraliberal do governo Bolsonaro. Essa lei nada mais fez que enfraquecer a gestão pública dos serviços de saneamento básico e abrir as portas para um movimento de privatização, comodificação e financeirização, sem precedentes no mundo contemporâneo.
Há, entretanto, um conjunto de evidências acumuladas, que desmistificam o mantra da privatização como panaceia para a universalização dos serviços, e que deveriam ser consideradas pela população valadarense nessa importante decisão[1]:
- Não há demonstração, nas diferentes experiências de privatização dos serviços de água e esgoto mundo afora, de que esse modelo tenha desempenho superior que modelos públicos de gestão, seja na melhoria dos serviços, seja na contribuição para acelerar a universalização do acesso ou, sobretudo, em assegurar acessibilidade econômica ou redução da desigualdade. O próprio Banco Mundial já afirmou que são contraditórios os resultados dessa experiência, por ele fortemente promovida nas décadas de 1990 e 2000.
- A frequente assimetria de poder, que envolve a relação entre poderosos grupos privados e poderes locais com limitada capacidade de fiscalizá-los e controlá-los, tem gerado abusos, invariavelmente preponderando os interesses econômico-financeiros dos prestadores sobre os genuínos interesses da população.
- Serviços como os de água e esgotamento sanitário, caracterizados como monopólio natural, impõem desafios, muitas vezes insuperáveis, para a adequada regulação da prestação privada, dada a capacidade de influência das empresas sobre a decisão autônoma dos reguladores.
- É forte a tendência de que o prestador privado dos serviços priorize a maximização de seus lucros e distribuição de dividendos aos seus acionistas, comprometendo o volume de investimentos e provocando aumentos abusivos das tarifas, inclusive as cobradas de populações empobrecidas.
- É enganosa a tese de que a privatização atrai novos investimentos para o setor. Via de regra, investimentos realizados pelas empresas são financiados por bancos públicos e oneram as tarifas pagas pelos usuários. Ao contrário, países que lograram universalizar seus serviços décadas atrás somente atingiram esse patamar com maciços investimentos públicos, combinados com políticas públicas estáveis e com ênfase no planejamento de curto, médio e longo prazos.
- Em direção contrária à privatização do saneamento, a tendência internacional tem sido reestatizar os serviços, não privatizar. Levantamento realizado pelo TNI – Transnational Institute revelou 311 casos de remunicipalização desses serviços entre 2000 e 2019, em todas as regiões do mundo e em países com diversidade de níveis de desenvolvimento (disponível em https://www.tni.org/en/publication/the-future-is-public-0).
- Casos recentes no Brasil vêm apontando a impropriedade de generalização do modelo privado de prestação dos serviços públicos de saneamento básico. A experiência malsucedida de Manaus, a revolta popular contra a desastrosa privatização de Ouro Preto, os aumentos tarifários abusivos em Pará de Minas e a absurda outorga paga pela concessão no Estado do Rio de Janeiro, financiada com empréstimo de 19,3 bilhões de reais pelo BNDES nos estertores do governo Bolsonaro, são apenas algumas advertências do que se pode esperar nos casos de privatização.
- Uma vez assinado contrato de longo prazo com a empresa concessionária, sua reversão antes do término da vigência é penosa, politicamente desgastante e em geral financeiramente desvantajosa para o município. Prazos de 30 anos de contratação são demasiadamente longos para prever alterações nas dinâmicas demográfica, econômica, cultural, social e, sobretudo, decorrentes das mudanças climáticas, que podem incidir sobre os serviços.
- O SAAE de Governador Valadares carrega uma longa tradição de prestação de serviços ao município. Foi criado em 1952, com apoio da então Fundação SESP, atual Funasa, tendo sido a primeira autarquia de água e esgotos do Brasil. Foi muitas vezes referido como um ótimo exemplo de gestão municipal. Remover a gestão pública de uma entidade muito reconhecida pela população requer justificativas muito consistentes, que estão longe de estarem presentes na atual proposta.
- O modelo de licitação previsto em Valadares, no qual é vencedora a empresa que oferece o maior valor de outorga, é completamente incompatível com a meta de universalizar os serviços com acessibilidade econômica, incompatibilidade que já tem sido observada em outras experiências recentes no país. A outorga corresponde a um recurso financeiro aportado ao tesouro municipal, que raramente é empregado na melhoria ou expansão dos serviços de saneamento. São recursos livres, para a administração municipal alocar como bem entender. Por outro lado, a concessionária precisará recuperar esse valor aportado e não há outra maneira de fazê-lo a não ser com a majoração das tarifas, penalizando assim as populações com renda mais baixa.
Estas razões deveriam ser suficientes para uma profunda reavaliação da decisão tomada pelo prefeito, para pautar a audiência e a consulta pública convocadas e, por fim, para orientar a decisão da Câmara de Vereadores, nessa crítica quadra da história dos serviços de saneamento de Governador Valadares
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*Léo Heller – Pesquisador, Instituto René Rachou, Fiocruz-Minas; Ex-Relator Especial da ONU para os Direitos Humanos à Água e ao Saneamento
**Rogério Correia – Deputado Federal, PT/MG