ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário em perspectiva: regulação dos serviços de saneamento e a pandemia

 

Texto da interação ONDAS-Privaqua*
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DIREITOS HUMANOS À ÁGUA E AO ESGOTAMENTO SANITÁRIO EM PERSPECTIVA: REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS DE SANEAMENTO E A PANDEMIA

Autor: Davi Madureira Victral

Instituto René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz, Brasil

O Brasil viu seu setor de abastecimento de água e saneamento encarar obstáculos significativos durante a pandemia da Covid-19, quando a lavagem das mãos era considerada uma das principais barreiras contra a expansão da doença. A crise de saúde global destacou a fragilidade das infraestruturas existentes, evidenciando a vital importância desses serviços básicos para a saúde e o bem-estar da população. No entanto, à medida que a demanda por água crescia, surgiram questionamentos sobre a capacidade das políticas regulatórias do setor em lidar com emergências. Entidades tanto nacionais quanto internacionais, como UNICEF, SIWI e OMS[i], debateram e elaboraram recomendações focadas nas instituições estatais com o intuito de minimizar os impactos da pandemia, levando em consideração os déficits regionais de atendimento e os sistemáticos cortes de fornecimento por inadimplência, bem como a acessibilidade econômica e física aos serviços.

Nesse contexto, decidimos observar as ações e atividades dos entes reguladores do setor no Brasil durante a pandemia[ii], com o intuito de compreender como estas instituições poderiam acionar, ou não, os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário em um momento de crise como o vivenciado nesses últimos anos.

Observamos as medidas de confinamento e distanciamento social aplicadas para conter a disseminação do vírus, e como estas exerceram pressões diretas sobre o setor de abastecimento de água e saneamento. A operação cotidiana desses sistemas ficou ameaçada, com muitos trabalhadores impossibilitados de realizar suas funções presencialmente. Ademais, a recessão econômica impactou as receitas das empresas encarregadas dos serviços, levantando dúvidas sobre sua capacidade de manter investimentos necessários para ampliar e aprimorar as infraestruturas.

Dessa forma, foi possível identificar duas abordagens distintas por parte dos entes reguladores. Algumas dessas instituições – cerca de 35% [iii] – responderam ágil e proativamente, assegurando a continuidade dos serviços e a segurança dos trabalhadores. Outros encontraram dificuldades em conciliar as necessidades das empresas com a proteção dos direitos dos cidadãos, focando suas respostas apenas na sustentabilidade financeira dos prestadores de serviços.

Nesse cenário de diversidade nas respostas das agências reguladoras, tornou-se evidente a complexidade inerente à tarefa de equilibrar interesses comerciais e direitos fundamentais dos cidadãos. As agências que conseguiram adotar medidas que garantiram a operação efetiva dos serviços sem comprometer a qualidade e o acesso equitativo apresentaram uma abordagem sensível às necessidades da população, com foco na disponibilidade, acessibilidade econômica, qualidade e segurança da provisão dos serviços.

A pandemia trouxe à luz não apenas a importância da regulação eficaz dos serviços essenciais, mas também a necessidade de um olhar para os direitos humanos que considere as implicações sociais, econômicas e de saúde pública em todas as decisões regulatórias. Encontrar um caminho que permita a continuidade dos serviços sem comprometer os direitos humanos fundamentais se tornou um desafio crucial para as agências reguladoras, destacando a importância de uma abordagem equitativa e centrada nas necessidades da sociedade como um todo. Observamos neste trabalho que foram poucas as reguladoras do setor que conseguiram caminhar para essa abordagem.

A discussão sobre a universalização do acesso à água potável e esgotamento sanitário ganhou destaque. Para atender a essa urgência, uma regulamentação mais abrangente é necessária, não apenas durante crises e situações excepcionais, mas também nos tempos de normalidade. Isso envolve políticas que vão além da prestação de serviços, considerando a capacidade de adaptação das infraestruturas, a inclusão de populações marginalizadas e em condições de vulnerabilidade, e a prevenção de interrupções abruptas nos serviços. A pandemia ressaltou a interconexão entre a disponibilidade de água limpa, esgotamento sanitário adequado e a capacidade de responder efetivamente a emergências de saúde pública.

Ao observar os entes reguladores através da lente dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário, deparamos com os impactos relativos à igualdade e à não-discriminação da população, especialmente em comunidades marginalizadas e pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica.  Como resposta aos primeiros momentos da pandemia, as medidas de prevenção e controle de contaminação, conforme as recomendações da OMS, principalmente a lavagem regular das mãos com água limpa e sabão afetaram diretamente essa população. No entanto, o sucesso dessas políticas depende fortemente da disponibilidade de acesso a serviços adequados de abastecimento de água e de serviços de esgotamento sanitário em residências, espaços públicos, instituições e ambientes de trabalho.

Para parte da população, garantir água segura e sabão suficientes para manter a higiene adequada apresenta desafios consideráveis. De acordo com dados da OMS[iv], quase 40% da população mundial não tem acesso a instalações de lavagem de mãos com água e sabão. A prevenção e a contenção da pandemia exigiam disponibilidade ampliada de água para higiene pessoal nas residências e instituições de saúde. Ignorar esse aspecto por parte dos formuladores de políticas públicas aumenta o risco de agravar a vulnerabilidade de comunidades e indivíduos já confrontados com condições precárias de moradia, água, esgotamento sanitário e saúde.

A regulação do setor e os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário

A discussão ganha relevância à medida que ações afirmativas entram em cena, buscando garantir que serviços essenciais alcancem essas populações historicamente marginalizadas. Enquanto lidamos com os impactos da Covid-19, é crucial explorar estratégias que assegurem que o acesso a esses serviços fundamentais seja uma realidade para todos, independentemente de fatores geográficos e do contexto socioeconômico.

Apesar de terem sido adotados pelas Nações Unidas há mais de uma década, os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário enfrentam obstáculos persistentes em países como o Brasil. A análise da presença do conteúdo desses direitos nas respostas das agências reguladoras do setor no Brasil revelou desigualdades gritantes; embora a equidade e a não-discriminação fossem contempladas no conteúdo analisado, as respostas regulatórias raramente mencionaram comunidades negligenciadas ou populações vulneráveis, como moradores de assentamentos informais, pessoas em situação de rua e migrantes.

As medidas de equidade e não-discriminação frequentemente se concentraram em aspectos econômicos, como isenção ou adiamento de tarifas. Isso se relaciona com a ausência de uma compreensão abrangente do princípio da sustentabilidade, que muitas vezes foi limitado a considerações econômicas. O estudo também revelou a falta de respostas relacionadas ao acesso a banheiros.

Essas conclusões têm implicações profundas para entender como as autoridades reguladoras aplicam os princípios e diretrizes dos direitos humanos. A implementação efetiva desses princípios em resposta à pandemia oferece uma oportunidade crucial para avaliar a aplicação prática desse conteúdo no Brasil, reduzindo as disparidades no acesso a serviços essenciais. Isso ressalta a importância de uma compreensão abrangente e da implementação dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário no Brasil, mesmo que não estejam formalmente consagrados na legislação brasileira. Esse entendimento pode ser uma base poderosa para transformar as políticas e regulamentações de água e saneamento, tornando-as mais efetivas e preparadas para lidar com futuras emergências.

No pós-pandemia, o desafio estende-se aos reguladores para monitorar e mitigar os impactos sofridos pelos provedores de serviços. A autoridade regulatória desempenha um papel crítico, e é essencial definir procedimentos claros para situações de emergência, alinhados aos princípios dos direitos humanos.

A pandemia de Covid-19 trouxe à tona a importância de uma resposta ágil e resiliente do setor de saneamento em face de crises, reforçando a necessidade vital de manter os serviços básicos para garantir a saúde e o bem-estar da população. As ações tomadas pelos órgãos reguladores ressaltam a possibilidade de superar os desafios impostos pela pandemia, mantendo os serviços de saneamento de maneira segura e eficaz. Nesse contexto, a elaboração de planos de contingência emerge como ferramenta-chave para assegurar a continuidade dos serviços e a segurança dos trabalhadores do setor.

A universalização do acesso aos serviços de água e esgotamento sanitário constitui um direito humano fundamental, e os órgãos reguladores têm um papel central em garantir essa prerrogativa. Contudo, essa busca pela universalização não se concretiza sem a implementação de políticas públicas e regulamentações que busquem promover a equidade, prevenir a discriminação na oferta dos serviços e assegurar a sustentabilidade econômica e ambiental do setor.

Diante disso, é crucial que os órgãos reguladores atuem de maneira decisiva para incorporar os direitos humanos à água e ao ao panorama regulatório brasileiro, pautando suas ações nos princípios e diretrizes desses direitos. A garantia do acesso à água potável e ao saneamento não é apenas essencial para o bem-estar da população, mas também reflete diretamente na saúde pública. Portanto, o papel dos órgãos reguladores é determinante para que esse direito seja concretizado efetivamente para todos os cidadãos do Brasil.

[i] Ver https://www.wsp.org/sites/wsp/files/publications/WSP-Practical-Guidance-Measuring-Handwashing-Behavior-2013-Update.pdf

[ii] Projeto realizado como tese de doutorado de Davi Madureira Victral com orientação do Professor Leo Heller no Programa de Pós-Graduação em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos da UFMG.

[iii] ARSAE – MG, ARSESP – SP, e ADASA – DF são exemplos identificados no estudo como entes reguladoras proativas, com respostas focadas no prestador de serviços, mas também na população, e com presença de conteúdos dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário nas respostas durante a pandemia.

[iv] Ver https://www.who.int/publications/m/item/save-lives-clean-your-hands-in-the-context-of-covid-19

 

* INTERAÇÃO ONDAS-PRIVAQUA: DE OLHO NA PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO

Privaqua é um projeto de pesquisa que objetiva entender processos de privatização dos serviços de água e esgotos, tendo por orientação teórico-analítica o marco dos direitos humanos. Neste espaço do site do ONDAS, o Privaqua publica periodicamente textos curtos sobre a temática do projeto, visando divulgar achados parciais, compartilhar reflexões e disseminar elementos da literatura científica sobre o tema. A intenção é a de dialogar com um público não necessariamente familiarizado com a linguagem acadêmica e com os veículos tradicionais de comunicação científica. Trata-se de uma tentativa de exercitar o que se denomina de divulgação científica, para público não-especializado, transpondo os chamados “muros acadêmicos”. O desafio é de, sem perder o rigor, disseminar aspectos do tema da privatização dos serviços de saneamento, visando sobretudo qualificar as atividades da militância do setor.

➡️ Clique aqui e leia todos os textos já publicados da interação ONDAS-Privaqua 

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