autores: Julia Azevedo Moretti e Ricardo de Sousa Moretti*
Publicado originalmente pelo site Carta Capital em 28 de agosto de 2023
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Alguns séculos antes de Cristo, os legisladores gregos se queixavam da dificuldade de fazer cumprir as leis por eles estabelecidas. Essa dificuldade não pode ser considerada uma jabuticaba brasileira – o queixume de que, especificamente no Brasil, há leis que pegam e leis que não pegam ignora o desafio histórico que é fazer com que os bilhões de seres que habitam o planeta sigam algumas regras indispensáveis à nossa convivência, à nossa sobrevivência.
Ao contrário das leis dos homens, as leis da natureza sempre pegam. A lei da gravidade, por exemplo, é seguida com disciplina rígida pelas águas que, inexoravelmente, se direcionam para os pontos mais baixos arrastando consigo o que encontram, bem como pelas marés que oscilam diariamente (e em alguns casos extraordinariamente – figura 1) de acordo com a atração exercida pela lua na Terra. Os fenômenos são naturais, mas os desastres deles decorrentes têm muito pouco de natural, sendo socialmente construídos e afetando sempre as populações e territórios em situação de maior vulnerabilidade.
Algumas leis dos homens buscam se apoiar nas leis da natureza, respeitando meio físico e os limites e possibilidades por ele dados para apropriação, uso e ocupação do solo. Nesse texto vamos falar especificamente de duas leis brasileiras que respeitam dinâmicas naturais, regidas por suas leis, para estabelecer parâmetros e regras de desenvolvimento territorial: as leis que tratam de áreas de preservação permanente e de terrenos de marinha e terrenos marginais de rios.
Desde a última grande glaciação, cujo auge ocorreu 18 mil anos atrás, o nível do mar passou por grandes variações, para mais e para menos. No passado recente constata-se uma clara elevação do nível do mar e estima-se que sua cota média seja hoje cerca de 140 metros acima do que foi na última glaciação. Para os negócios do mercado imobiliário, que tem interesse na utilização dos terrenos situados no entorno da zona costeira, seria muito conveniente que o nível do mar tivesse um comportamento estável, estático. Mas a situação é bem diferente. As mudanças de nível do mar estão associadas às variações de maré, aos regimes de vento que interferem nas alturas das ondas, mas sofrem também grande influência das mudanças climáticas. Os terrenos situados no entorno do mar se alteram numa velocidade muito maior do que podemos inicialmente crer.
Nas últimas décadas, aconteceu uma aceleração das mudanças climáticas, que são claramente constatadas por medições científicas, como mostram os seguidos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC). Essas mudanças levam, claramente, a uma alteração do nível do mar e a modificação dos terrenos situados no seu entorno. Atualmente, é quase inquestionável a influência das ações do homem nas mudanças do clima, tanto que cientistas propõem que o planeta entrou numa nova era geológica, o Antropoceno. Esse novo período geológico tem como nota característica as grandes transformações na crosta terrestre e nas suas dinâmicas influenciadas pela ação do homem.
Os desastres que aconteceram no Havaí e no litoral paulista neste ano mostram as dimensões e os riscos das mudanças em curso. Quando se analisam os grandes desastres que aconteceram no Brasil em um passado recente, constata-se que algumas milhares de vida e muitos bilhões de reais teriam sido poupados se as duas leis anteriormente citadas, da proteção e gestão de terrenos de marinha e de áreas de preservação permanente, tivessem sido obedecidas. Entre os movimentos de terra mais letais está o fluxo de detritos, que acontece junto aos cursos de água situados a jusante de áreas de elevada declividade. As graves consequências das inundações e enchentes se fazem sentir de forma mais aguda justamente nas áreas dos entornos dos corpos d’água e em especial nas áreas que sofrem influência da ação das marés e do nível do mar, em geral. A lei da gravidade faz com que grande parte da consequência dos acidentes de natureza geotécnica se concentre nas áreas de maior declividade, no entorno dos cursos de água e na zona costeira, que são justamente as áreas protegidas por essas duas leis, que podem ser consideradas uma tentativa importante de aproximar as leis dos homens das leis da natureza.
O Código Florestal (Lei nº 12.651/12 ) estabelece as áreas de preservação permanente (APP), que são espaços especialmente protegidos pela função ambiental que cumprem, independentemente da existência de vegetação nativa (art. 3º, Lei 12.651/12). Uma vez delimitadas as APPs, conforme parâmetros legais, o exercício de atividade econômica e as condutas sociais sofrem limitações (em especial a restrição à supressão de vegetação) para garantir a proteção das funções ambientais e assegurar uma integração das atividades humanas com a natureza de forma equilibrada e sustentável. O Código Florestal, que completou 11 anos, se mantém constantemente sob ataque, seja prorrogando prazos para cumprimento de suas regras – com sucessivos movimentos para postergar a regularização ambiental -, seja flexibilizando regras para permitir ampliação do desmatamento ou conivência com supressões ilegais de vegetação que fragilizam as APPs.
Os terrenos de marinha, de propriedade da União (art. 20, VII, CF), são regulados pelo Decreto-Lei nº 9760/46. São áreas que visam proteger os terrenos no entorno imediato do contato da terra com o mar ou outros corpos d’água que sofram influência da maré, aliás muitos deles também áreas de preservação permanente, como restingas e mangues. São áreas de especial interesse e que merecem proteção desde os tempos coloniais, cumprindo importante função de garantir o livre acesso ao mar e proteção do ambiente litorâneo (função socioambiental), bem como indutor do desenvolvimento nacional estratégico. Sempre existiram interesses privados em torno desse imenso patrimônio imobiliário e tensões por causa de impulsos tendentes à privatização desses bens, seja ampliando os bens destinados a uso privativo e apropriado por pessoas e empresas com maior poder econômico, seja por mecanismos de repasse para fundos de investimento. São leis, projetos de lei, medidas provisórias que vêm, recorrentemente, buscando ampliar a privatização de um patrimônio que pertence a todos os brasileiros.
Em qualquer um dos casos, as medidas de proteção e gestão desses bens devem levar em conta diferenças entre situações consolidadas (especialmente com usos urbanos) e áreas ainda preservadas que sofrem pressões por novos usos em detrimento de práticas de povos e comunidades tradicionais. Mas, principalmente, deve-se ter em conta uma dimensão da injustiça ambiental e climática, ou seja, as profundas diferenças impostas aos grupos sociais com menos recursos financeiros, políticos e informacionais no que diz respeito à exposição a riscos ambientais e, ao lado da desigual distribuição do risco, também desigualdades no acesso aos benefícios da cidade e do ambiente, lembrando que muitas vezes os que menos contribuem com a degradação ambiental geral são os que mais sofrem os riscos e os impactos negativos. Certamente não é a privatização desse patrimônio que irá assegurar essa gestão democrática e destinação desses imóveis ao cumprimento de funções estratégicas e socioambientais.
Uma proposta de emenda constitucional atualmente em discussão no Congresso Nacional (PEC 03/2022), de transferência de propriedade dos terrenos de marinha, esvazia a gestão dessas áreas feita pela União e pode ter consequências ambientais desastrosas.
Trata-se de medida que, claramente, visa atender aos interesses imobiliários e aos interesses dos que querem ter exclusividade no seu contato íntimo com o mar. A proposta afronta os interesses do povo brasileiro em várias dimensões. Entrega para particulares que têm elevado poder aquisitivo um patrimônio público de valor financeiro inestimável. Porém, mais que questões financeiras, a proposta coloca a descoberto a possibilidade de ampliar radicalmente e de forma descontrolada terrenos frágeis, que sofrem sistematicamente grandes variações e que cumprem um papel estratégico para proteger o território de interface com o mar e com os grandes rios brasileiros.
As mudanças levarão a um aumento descontrolado da ocupação nos terrenos situados no entorno imediato do mar, aumentando inclusive a privatização destes espaços que são de interesse para o usufruto público, como praias. A extinção destas unidades de proteção pode ainda ter implicações diretas no aumento da frequência e da intensidade dos acidentes que vão acontecer nas zonas costeiras. A ampliação da ocupação em terrenos frágeis aumentará significativamente as consequências dos eventos extremos e a quantidade de áreas em situação de risco. A ocupação que se deseja liberar com a extinção das faixas de marinha e com os relaxamentos da ocupação de áreas originalmente previstas para proteção da vegetação constitui um verdadeiro atentado aos interesses do povo brasileiro e uma afronta a todos aqueles que entendem que a sobrevivência do homem no planeta depende, cada dia mais, do reconhecimento de que nossas leis precisam se aproximar e respeitar as leis da natureza.
* Julia Azevedo Moretti é doutora em Direito pela USP e pós-doutoranda na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP;
Ricardo de Sousa Moretti é professor visitante da UnB, integrante do ONDAS- Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento e membro da rede BrCidades.