ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Prestadores públicos sufocados pela falta de financiamento

autor: Marcos Helano Montenegro*

Publicado originalmente pelo site Outras Palavras em 25 de agosto de 2023

_____________________

Os que acompanham criticamente as políticas públicas de saneamento básico no Brasil sabem que o objetivo maior da Lei 14.026/2020 (erroneamente propagada por seus defensores como o novo marco do saneamento) é desestruturar os prestadores públicos estaduais e municipais seja pela extinção do contrato de programa, pela comprovação da capacidade de atingir metas inviáveis e pelo estímulo a concessões (inclusive PPPs) como o remédio para todos os males.

Favorecendo os privados, a estratégia de estrangulamento dos prestadores públicos vem, de fato, desde o final da década de 90 e se dá pela obstaculização do acesso ao crédito para o financiamento dos investimentos. Quando o Brasil quebrou em 1998 no final do primeiro governo de FHC e se submeteu ao FMI, uma das medidas exigidas pelo “acordo” foi o contingenciamento do crédito ao setor público, o que se concretizou por meio de resolução do Conselho Monetário Nacional (CMN).[1]

A suspensão da assinatura de um contrato, já aprovado, entre a Caesb do Distrito Federal e a Caixa Econômica, para financiamento do Sistema Pipiripau, com o qual a falta de água recorrente em Planaltina e Sobradinho seria equacionada é um exemplo dos efeitos da medida do CMN. Com o contingenciamento do crédito, a entrada em operação do sistema, financiado diretamente por recursos tarifários, atrasou mais de dois anos.

De lá para cá os obstáculos à tomada de crédito para os prestadores públicos de saneamento básico nunca foram completamente removidos. Foram reduzidos durante os governos de Lula e por ocasião do PAC, mas seguem até hoje impedindo que os prestadores públicos, sejam sociedades de economia mistas e empresas públicas não dependentes, mesmo que comprovem capacidade de endividamento e capacidade de pagamento, tenham pleno acesso a recursos disponíveis para financiar os investimentos necessários à expansão e modernização dos serviços, como é o caso dos recursos do FGTS. Os SAAEs, autarquias municipais, têm ainda mais dificuldades tendo em vista que a capacidade de tomar crédito é analisada considerando a situação das contas do município e não apenas a da autarquia.

O Engenheiro Clovis Francisco do Nascimento, diretor da Secretaria Nacional de Saneamento do Ministério das Cidades em 2003, explicava: “É a política do pau de sebo. Você pensa que está perto de conseguir o prêmio, aí escorrega e não consegue contratar.”

Por meio de suas resoluções, sempre em nome do controle do endividamento público, o CMN tem dificultado o acesso ao crédito das companhias estaduais e municipais e das autarquias municipais ainda que apresentem baixo nível de alavancagem e elevada capacidade de endividamento, uma vez que as restrições impostas são baseadas em limites genéricos e não levam em consideração a capacidade econômico-financeira individual dos potenciais tomadores de recursos. Tal situação evidentemente tem consequências negativas sobre o ritmo de avanço para chegar à universalização e pressiona a elevação das tarifas, cuja receita se torna a principal fonte de financiamento do investimento necessário. Fica clara, a desconsideração de aspectos importantes do saneamento, tais como inclusão social, saúde pública, mitigação de impactos ambientais negativos, e o predomínio do enfoque meramente fiscal para o setor, que despreza os direitos de toda a população à água potável e ao esgotamento sanitário.

O exame do fluxo de recursos associado aos financiamentos dos investimentos dos serviços de saneamento ilumina o que estamos afirmando. A Tabela 1 mostra que os recursos pagos em retorno dos empréstimos do FGTS são maiores que os desembolsos do Fundo para financiamentos de investimentos em andamento no período 2019-2022.

Aliás, este quadriênio também é exemplar para ilustrar a ociosidade dos recursos disponíveis para contratar operações de crédito no âmbito do saneamento básico (ou do Programa Saneamento para Todos). Conforme consta da Tabela 2, no exercício que apresentou melhor desempenho, a execução orçamentária não ultrapassou 42%. Em outros termos, enquanto se propagandeava os mecanismos de incentivo à privatização constantes da Lei 14.026/2020 como solução para atingir a universalização, mais de R$ 11 bilhões disponíveis para financiar os investimentos necessários à universalização ficaram ociosos nos anos 2019-2022, deixando de gerar benefícios à qualidade de vida da população e ao meio ambiente.

Fonte: Relatórios de gestão do FGTS

Fonte: Relatórios de gestão do FGTS

Fonte: Relatórios de gestão do FGTS

Os números da Tabela 3 agrupam as informações das contratações anuais em períodos de 6 anos e demonstram como os recursos do Fundo vem sendo pouco aproveitados há anos. Entre 2005 e 2010 a média de execução atingiu 60%, o maior valor desses períodos. Nos últimos seis anos a contratação foi de apenas 49% dos valores que o Orçamento do FGTS disponibilizou.

Examinando a série histórica das contratações chama atenção a irregularidade dos valores anuais (Gráfico 1). Revela-se claramente a maldição sobre os investimentos dos prestadores públicos, pelo predomínio da política de controle do endividamento público sobre a política de saneamento e a busca da universalização e da modernização dos serviços. A irregularidade no volume das contratações afeta não só os prestadores de serviço, mas também os fornecedores de materiais, equipamentos e serviços cujas demandas sofrem variações imprevisíveis.

Fonte: Relatórios de gestão do FGTS

A involução dos saldos das operações de crédito para saneamento básico do FGTS é ilustrada no Gráfico 2, demonstrando que o Fundo vem reduzindo persistentemente o volume de recursos disponibilizados aos prestadores públicos. Ao mesmo tempo, este gráfico mostra a reduzida importância dos financiamentos contratados pelos prestadores privados que desprezaram esta fonte de recursos.

As informações do Gráfico 3 demonstram que vem ocorrendo um processo de decadência do financiamento dos investimentos em saneamento básico pelo FGTS. O saldo total das operações de crédito do Fundo destinadas a todas as finalidades cresceu 127% enquanto o saldo das operações das operações destinadas ao saneamento básico ao final de 2022 é apenas 42% do valor correspondente de 2005 (em valores atualizados para 31/12/2022).

Fonte: Demonstrações financeiras do FGTS

Fonte: Demonstrações financeiras do FGTS

O Gráfico 3 mostra também que os prestadores privados vêm utilizando pouco as operações de crédito do FGTS para financiar seus investimentos preferindo outras fontes que consideram menos burocratizadas, o que já não aconteceu no último biênio (ver Tabela 1).

Vários Relatórios anuais de Gestão do FGTS são explícitos quanto à razão da ociosidade da execução do Orçamento de Contratações do Fundo. O Relatório de Gestão de 1999, exercício cujo grau de execução foi de 0,2%, traz o seguinte:

“A manutenção em 1999, do contingenciamento de crédito ao setor Público, estabelecido pelo Conselho Monetário Nacional em dezembro de 1997, impediu a realização de novas contratações no exercício desta prestação de contas.”

O Relatório de Gestão de 2001, com execução de 0,01%, traz observação semelhante:

“O setor privado foi responsável pela totalidade das contratações realizadas em 2001, devido ao contingenciamento de crédito ao setor público estabelecido pelo Conselho Monetário Nacional conforme Resolução Nº 2.827, de 31 de março de 2001.”

Mais de 20 anos passados, o Relatório de Gestão de 2022 informa, na mesma toada:

“(…) em 2022, a quantidade de contratações poderia ter sido ainda maior. No entanto, como sabido, o setor público vem enfrentando uma série de obstáculos, impactando sobremaneira o processo de seleção de propostas e, consequentemente, o número de contratações. Dentre essas adversidades, pode-se citar, por exemplo:

i.a revisão dos limites de endividamento voltados ao setor saneamento, para entes públicos, regulamentados pelo Conselho Monetário Nacional – CMN;

Mas este último relatório informa sobre dificuldades adicionais a superar para a contratação de operações em 2022, quais sejam:

“ii. as exigências estabelecidas no art. 50 da Lei no 11.445, de 2007, no art. 4o do Decreto no 10.588, de 2020, no Decreto no 10.710, de 31 de maio de 2021, e no Decreto no 11.030, de 1o de abril de 2022;

a aplicabilidade do inciso II do art. 7o do Decreto no 10.588, de 2020, referente à alocação de recursos públicos federais e financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da União; e

a suspensão das validações e contratações pela CAIXA, em decorrência da necessidade de pacificação interna quanto às exigências trazidas pela alteração do marco do saneamento para o acesso ao crédito gerido pelo gestor da aplicação.”

Aí está claro como os dispositivos e prazos constantes da Lei 14.026/2020 e a maneira atabalhoada com que que foi regulamentada por meio de sucessivos decretos dificultaram ainda mais o fluxo de contratações dos financiamentos para os prestadores públicos.

Avaliação de técnico da empresa estadual de saneamento da Bahia confirma o prejuízo causados pela lei 14.026 e seus regulamentos

“Entre 2020 e 2022, as captações pela Embasa de recursos do FGTS junto à Caixa Econômica Federal, por meio do processo seletivo operado então pelo MDR, foram bastante lentas e instáveis. A Embasa chegou a pleitear mais de R$ 700 milhões para dez empreendimentos, tendo parte deste processo se iniciado em 2020 e até o final de 2022 os recursos não haviam sido liberados. A maior parte dos empreendimentos já tinha portaria emitida pelo MDR e aguardava a validação da CEF, enquanto outros ficaram no aguardo de novas portarias. A demora estava associada à morosidade na aprovação do financiamento pela CEF, visivelmente motivada pela insegurança jurídica que a Lei 14.026/2020, e os Decretos 10.588/2020, e 10.710/2021, trouxeram para os prestadores, bem como pelas restrições impostas pelos limites arbitrários para o endividamento público no âmbito do CMN/BACEN. O fato é que, para os municípios beneficiários dos empreendimentos citados, um tempo precioso foi perdido na caminhada rumo à universalização.”

Tudo reforça a tese de que a universalização do saneamento básico está sendo vítima de uma política monetária conservadora, que por meio do contingenciamento do crédito ao setor público, prejudica os prestadores públicos dos serviços de água e esgoto.

O economista Clóvis Scherer, que representa a CUT no Grupo Assessor Permanente do Conselho Curador do FGTS, chama atenção para o fato que por se caracterizar legalmente como instrumento das políticas públicas de habitação, saneamento, mobilidade e infraestrutura urbana os financiamentos do Fundo são regulamentados tanto pelo Conselho Curador quanto pelo Ministério das Cidades, como gestor das aplicações.

Este não é o caso dos financiamentos do BNDES e da própria Caixa Econômica, por meio do FINISA que utiliza outras fontes que não o FGTS. Mais ágeis, suas operações de crédito consomem as margens disponíveis para as operações de crédito e dificultam ou inviabilizam as do FGTS.  Por outro lado, não se articulam com o Plano Nacional de Saneamento Básico e estão à margem das orientações do Ministério das Cidades.

Não se pode desconsiderar a hipótese de intencionalidade nas dificuldades colocadas pelo Conselho Monetário Nacional aos prestadores públicos que o Relatório de Gestão do FGTS de 2022 identifica. Afinal, os prestadores privados se apresentam como a alternativa para promover a universalização se afirmando como capazes de realizar os investimentos que os prestadores públicos não conseguem financiar.

O desafio do novo governo do Brasil é, o quanto antes, remover as travas que dificultam sobremaneira que investimentos significativos que podem ser feitos por empresas estaduais e serviços municipais sejam financiados pelo FGTS, garantindo o aproveitamento integral dos recursos destinados ao setor pelo Orçamento de Contratações do Fundo que ainda precisa ser ampliado.

As operações de crédito para o financiamento de investimentos pelos prestadores públicos devem ser excepcionalizadas e não sofrerem restrições de qualquer natureza por parte do Conselho Monetário Nacional, assegurando a plena aplicação dos recursos disponíveis, sem deixar de considerar, a capacidade de pagamento dos tomadores, já que os recursos de financiamento oneroso pressupõem retorno(no caso do FTGTS, pertencem aos trabalhadores), sendo necessário garantir a adimplência das operações de crédito.

A remoção das restrições colocadas pelo Conselho Monetário Nacional permitirá aos prestadores públicos com capacidade de pagamento comprovada acessar não só os créditos do FGTS, mas de outras fontes onerosas como o BNDES e Fundos Constitucionais de Financiamento do Centro-Oeste (FCO), do Nordeste (FNE) e do Norte (FNO).

Os prestadores de serviço constituídos sob a forma de sociedade por ações, contam com outro mecanismo de financiamento oneroso: a emissão de debêntures incentivadas para financiar projetos previamente cadastrados e considerados prioritários pelo Ministério das Cidades (antes MDR).

Previstas pela Lei no 12.431/2011 as debêntures incentivadas são definidas como um mecanismo de captação no mercado as debentures incentivadas para saneamento vem sendo compradas pelo próprio FGTS, pelo Fundo de Investimento do FGTS (FI-FGTS)[2] e pelo BNDES.

Em 2022, o MDR informava já terem sido captados R$ 5,46 bilhões no mercado de capitais, para financiar obras de saneamento, incluindo investimentos no manejo de resíduos sólidos. Em matéria recente, a Folha de São Paulo informou que dos R$ 5 bilhões aplicados pelo BNDES em infraestrutura em 2023, R$ 3,7 bilhões foram destinados a saneamento por meio de subscrições de debêntures emitidas pelas grupos privados Iguá (o BNDES adquiriu R$ 1,8 bilhão de uma emissão de R$ 3,8 bilhões) e pela Aegea (R$ 1,9 bilhão de R$ 5,5 bilhões). Pelo visto, mudou o governo mas o BNDES continua priorizando os concessionários privados

A opção do financiamento por meio da venda de debêntures tem sido bastante utilizada pelas concessionárias privadas mas os prestadores estatais também encontram obstáculos para sua utilização. É um assunto que merece maior aprofundamento.

É necessário lembrar que além do contingenciamento do crédito pelo Conselho Monetário Nacional, remanescem e precisam ser ainda removidos os obstáculos adicionais ao acesso ao crédito por prestadores públicos na regulamentação da Lei 14.026/2020.

No âmbito do financiamento oneroso com recursos disponibilizados por bancos e fundos públicos se apresenta um desafio estrutural, qual seja alinhar as ações de crédito com as aplicações não onerosas, tendo como referência o Plano Nacional de Saneamento Básico e dando coerência ao esforço de universalização.

O financiamento oneroso não atende todas as necessidades, particularmente, dos investimentos em expansão e melhoria nas regiões mais pobres. A análise regionalizada do déficit mostra que ele se concentra nas regiões Norte e Nordeste, onde cujos estados têm coincidentemente os menores valores de renda média per capita, segundo a PNAD Contínua do IBGE.[3] Para estas regiões é preciso aplicar uma estratégia coerente com a realidade social dirigida tanto à população urbana quanto à rural, e que necessariamente deve contar principalmente com recursos não onerosos.

Outra parte significativa do déficit está nas áreas periféricas das nossas metrópoles. Aí é necessário um enfoque integrado que articule soluções para os problemas de saneamento, mobilidade e habitação, eventualmente complementando recursos não onerosos com recursos onerosos.

Estas são algumas das medidas que, aliadas ao indispensável esforço de melhoria operacional e qualificação institucional, são necessárias para de fato avançar na universalização, na consecução do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável n° 6 e na progressiva realização dos Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário em nosso país.

E, sem dúvidas, são bandeiras que esperamos ver empunhadas pela recém-criada Frente Parlamentar em Defesa do Saneamento Público.

(Em 22/08/2023)


[1] MONTENEGRO, M.H.F. (1999). Retomar os financiamentos do FGTS para o saneamento. Brasília: Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior – Câmara dos Deputados.

[2] https://www.caixa.gov.br/Downloads/fgts-relatorio-gestao/RELATORIO_GESTAO_FGTS_2022.pdf

[3] Rendimento nominal mensal domiciliar per capita da população residente, segundo as Unidades da Federação – 2022. PNAD Contínua feitas no 1º, 2º, 3º, e 4º trimestres de 2022.


* Marcos Helano Montenegro é engenheiro civil, membro da Coordenação Executiva do Ondas – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento e diretor nacional da ABES – Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental.

O autor agradece as contribuições e as revisões atentas de Adauto Santos do Espírito Santo, César Ramos, Clóvis Scherer, Edson Aparecido da Silva, João Batista Peixoto e Ricardo Moretti.

2 comentários em “Prestadores públicos sufocados pela falta de financiamento”

  1. Vicente Andreu Guillo

    Muito boa e consistente toda a análise. Sugiro ao Montenegro desenvolver a parte final do seu texto, relativo às propostas, e, se possivel, cruzando com os investimentos do novo PAC em alguns dos setores (água para todos, cidades resilientes, etc). Gostei muito.

  2. Maria Teresa Chenaud

    Parabéns Montenegro pelo texto esclarecedor mostrando os limites e possibilidades para a tão propagada universalização do saneamento. É preciso, de fato, conhecer para tentar atacar tantos “ vícios ainda presentes” no processo de financiamento. O ONDAS mais uma vez contribui para o avanço do conhecimento com a mais precisa informação. Gratidão

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *