ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Governança da água e do saneamento, entre a austeridade e a financeirização (resenha)

Texto da interação ONDAS-Privaqua*
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RESENHA
Artigo: Water and sanitation governance between austerity and financialization 

ALMEIDA, R.P. e HUNGARO, L. Water and sanitation governance between austerity and financialization. Utilities Policy. V.71, n.X, ago.2021. Disponível em: <https://doi.org/10.1016/j.jup.2021.101229>. Acesso em: 16 jan. 2022.

Autoras
Estela Macedo Alves – Pesquisadora de pós-doutorado no Instituto René Rachou / Fiocruz. Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (2003), mestrado em Planejamento Urbano e Regional (2009) e doutorado em Ciência Ambiental (2018), ambos pela Universidade de São Paulo.

Ana Lucia Britto – Coordenadora de Projetos do ONDAS. Graduada em geografia pela PUC-Rio, mestre em Planejamento Urbano e Regional pela UFRJ e doutora em Urbanismo pela Université de Paris XII. Professora associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do PROURB – Programa de Pós-graduação em Urbanismo da UFRJ.

Resenha – Water and sanitation governance between austerity and financialization
O artigo de ALMEIDA  e HUNGARO (2021), Governança da água e do saneamento, entre a austeridade e a financeirização [tradução nossa], traz os resultados de uma pesquisa quali- quantitativa sobre o comportamento da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (COPASA), empresa de capital misto, no contexto de austeridade fiscal e da financeirização da companhia. O artigo chama a atenção para o aumento expressivo de distribuição de dividendos, por parte do conselho de administração da companhia, arrecadando recursos para o governo do estado, o acionista majoritário, e aumentando os lucros dos acionistas minoritários, em meio a uma grande crise fiscal. Os investimentos em saneamento foram reduzidos e o planejamento não foi cumprido, tendo havido quebra de contrato com alguns municípios e deixando a universalização cada vez mais distante.

Essa situação, segundo os autores, é reflexo da implementação de políticas neoliberais, que privilegiam a terceirização e a privatização dos serviços de saneamento e adotam visão de curto prazo, priorizando a distribuição de dividendos em detrimento de investimentos.

De forma geral, nos últimos anos, os governos conservadores consideraram a privatização do saneamento como uma bandeira forte, colocando em risco o acesso à água e ao saneamento nos assentamentos pobres do Sul e Leste Globais.

As políticas de austeridade fiscal, preconizadas por organismos financeiros multilaterais no âmbito de uma agenda de reformas sociais e econômicas e adotadas por governantes conservadores, consistem na redução significativa de gastos e de investimentos públicos, e na constituição de um ambiente favorável para os investidores privados. Em linhas gerais, em situação de austeridade fiscal, governantes buscam formas alternativas de executarem os serviços públicos, principalmente através de privatizações e terceirizações, interpretando essa ação como redução de custos. No entanto, não há evidências de que a provisão privada dos serviços de saneamento seja mais barata que os serviços públicos, tanto em países desenvolvidos, quanto nos países em desenvolvimento.

A financeirização é entendida no artigo como as transformações causadas pelo predomínio das práticas e narrativas dos atores do setor financeiro, em detrimento do setor produtivo. Na prática, é a superposição da influência dos sistemas bancários e de investimentos sobre os setores de construção civil, infraestrutura e indústria, por exemplo. No caso do saneamento, os contratos entre as empresas prestadoras de serviços e o poder público serão o principal alvo da financeirização, através da abertura de capital das companhias públicas ou da privatização propriamente dita. A financeirização e a austeridade fiscal são intimamente relacionados nas atuais sociedades capitalistas.

De acordo com os autores, as companhias de saneamento, como COPASA, CEDAE e SABESP, podem ser chamadas de serviços públicos corporativos, pois, desde a sua fundação funcionam como agências de serviços de propriedade dos governos que, num contexto neoliberal, passam a adotar medidas orientadas ao mercado, tendo preço e taxas de lucro como os principais fatores de decisão.

Apesar das várias situações em que o setor de água e saneamento esteve aberto a investidores, no Brasil, nunca houve tanto interesse do capital privado neste setor, como no contexto atual.. Os autores buscaram respostas para o crescente interesse na privatização do setor de saneamento no Brasil. Em primeiro lugar, notou-se aumento da participação deste setor na economia mundial, a partir de 2008. Em segundo, depois de 2014, os financiamentos federais em saneamento para prestadores públicos foram reduzidos, abrindo espaço para os investimentos privados. Em terceiro lugar, o saneamento apresenta bons indicadores de lucratividade, baixo risco e baixo endividamento, quando comparado com outros setores. Além disso, os retornos sobre patrimônio das companhias de saneamento foram apurados em 11,3% entre 2010 e 2016, enquanto que outros setores apresentaram cerca de 8% de retorno.

Para o estudo de caso, ALMEIDA e HUNGARO (2021) utilizaram dados públicos da COPASA, literatura especializada e entrevistas com atores chaves, tais como gerentes corporativos, reguladores de serviços de saneamento e consultores privados.

Os autores relatam em seus resultados um cenário de calamidade financeira declarada pelo governo do estado de Minas Gerais, em dezembro de 2016, que comprometeu a capacidade de investimento e de manutenção de serviços públicos. Esta situação deve ser  compreendida no contexto da severa crise política e econômica em que o Brasil entrou, naquele mesmo ano.

Apesar deste contexto, a COPASA enfrentava as consequências da crise hídrica de 2015, com rápida recuperação de lucros, depois que o período de seca passou, no final daquele ano. No entanto, a companhia modificou seu padrão de distribuição de lucros, no período de 2016 a 2020, conforme concluído pelo estudo. O nível de investimentos foi reduzido e os dividendos – distribuição de lucros – foram aumentados.

O ápice ocorreu em 2018, quando a distribuição de dividendos da COPASA consumiu quase o total dos lucros do ano, conforme mostram os gráficos apresentados no artigo.(ver página 4, item 4.1).

Em uma detalhada análise do contexto político-partidário nas gestões federal e estadual do período estudado, os autores apresentam os posicionamentos dos diversos atores envolvidos, que culminaram com a decisão de redução de investimentos para recuperar a COPASA da situação de crise. Porém, devido ao modelo de governança misto, que qualifica a companhia como privada, a opção de redução de pagamento de dividendos não teve força, vencendo a manutenção do pagamento aos acionistas, conforme patamares anteriores à crise. Este desfecho passou por mudanças internas da COPASA, inclusive troca de atores influentes nas decisões.

Os autores levantaram também as somas recebidas pelo governo do estado de Minas Gerais na distribuição de lucros, constatando que, entre 2006 e metade de 2020, a COPASA rendeu ao seu principal acionista, R$1.162 bilhões de reais, que seriam suficientes para universalizar o saneamento em todo o estado. No final do ano de 2020, a COPASA distribuiu ainda 820 milhões em pagamento de dividendos, um valor sem precedentes na história da companhia.

O artigo apresenta como conclusão que as decisões tomadas pelos gestores da COPASA foram no sentido de distribuir lucros, atendendo aos interesses dos investidores, configurando uma visão de curto prazo na governança da companhia. Os problemas de falta de acesso à água e ao esgotamento sanitário das populações de baixa renda e mesmo a manutenção de infraestrutura existente em áreas consolidadas das cidades e atendidas pela companhia de forma precária, não foram cotadas como prioridades, em nenhum nível de relevância.

Destaca-se que a Lei Federal 14.026 de 2020, que altera o Marco Legal do Saneamento, impulsiona ainda mais a inserção da lógica financeira no setor de saneamento do Brasil. Dessa forma, pode-se adotar a hipótese de que, face a um contexto de austeridade econômica, a abertura de capital das empresas públicas e a adoção de uma  lógica de financeirização, como o que ocorre com a COPASA, venha a se consolidar como uma nova forma de privatização num futuro próximo.

* Privaqua é um projeto de pesquisa que busca entender o impacto da privatização dos serviços de água e saneamento nos direitos humanosRegularmente, o site do ONDAS publica notas do Privaqua de forma a dar transparência ao projeto e compartilhar alguns de seus achados preliminares.

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