ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Léo Heller: Foco das políticas de saneamento deveria ser levar serviços para os que não têm

politicas de saneamento

Para o relator especial do Direito Humano à Água e ao Esgotamento Sanitário das Nações Unidas, Léo Heller – que também faz parte do Conselho de Orientação do ONDAS -, “uma política de redução da desigualdade deveria colocar a universalização dos serviços de saneamento como um componente fundamental”. 

Por outro lado, ele avalia que as iniciativas dos governos Temer e Bolsonaro para o setor apontam para um aprofundamento da exclusão, principalmente quando se tenta entregar os serviços de saneamento para empresas privadas, o que, segundo ele, vai dificultar ainda mais o acesso de populações em vulnerabilidade social ao serviço.

Confira a entrevista exclusiva:

 

ONDAS: Do ponto de vista da prestação do serviço público de saneamento básico em um país como o Brasil, o que significa garantir os direitos à água potável e ao saneamento?

Léo Heller: Existe uma legislação internacional sobre os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário muito bem consolidada e à qual o país está legalmente vinculado. Essa legislação e todos os documentos interpretativos que a acompanham estabelecem as bases desses direitos, as obrigações dos países e seus agentes públicos e como a população deve gozar e pode reivindicar os direitos. Em relação à prestação dos serviços, os prestadores, qualquer que seja sua natureza, têm claras obrigações. Para exemplificá-las, podemos olhar para três elementos dos direitos humanos, dentre vários outros: o princípio da igualdade e não discriminação, a acessibilidade financeira e a responsabilização (“accountability”).

O princípio da igualdade implica uma diferente lógica por parte dos atores do setor, alinhando suas políticas ao atendimento prioritário aos pobres e mais marginalizados da sociedade. Assim, no marco dos direitos humanos, é inaceitável que prestadores atuem apenas em áreas urbanas, que ignorem a situação dos indígenas e comunidades quilombolas, que continuem invisibilizando a necessidade das pessoas em situação de rua ou que se recusem a atuar em assentamentos informais. Essas populações e esses territórios deveriam ser os primeiros a serem atendidos, uma vez que a falta de acesso aos serviços de saneamento para grupos marginalizados potencializa as vulnerabilidades que já têm em outras esferas de suas vidas.

A acessibilidade financeira, por sua vez, ainda pouco tratada no Brasil, indica que ninguém deve ser excluído do acesso aos serviços por incapacidade econômica de arcar com os preços cobrados ou com os custos para implementar soluções – por exemplo, soluções individuais de esgotamento sanitário. Esse conceito também suporta a tese de que as desconexões dos sistemas quando ocorre falta de pagamento por incapacidade financeira são violações dos direitos humanos, pois são regressivas em relação ao usufruto dos direitos. Portanto, o conceito da acessibilidade financeira requer que sejam concebidos modelos tarifários que protejam os mais pobres, além de diferentes formas de subsídios para garantir o acesso a essas camadas da população.

Já o princípio da accountability exige uma postura transparente e proativamente voltada para os usuários por parte de prestadores, reguladores e diferentes níveis de governo. Cabe a esses agentes públicos, mas também aos privados, que informem claramente seus papeis e responsabilidades, que tenham mecanismos claros de recebimento de queixas e reclamações, que assegurem respostas adequadas a deficiências dos serviços e que estejam sujeitos às devidas punições em casos de violação. Assumir a accountability por parte dos agentes do Estado implica modificar sua relação para com os usuários dos serviços, colocando-se transparentemente a seu lado.

ONDAS: O que significa no Brasil populações vulneráveis quando se trata dos direitos humanos à água potável e ao saneamento?

Léo Heller: Prefiro utilizar a expressão “populações em situação de vulnerabilidade”, pois as pessoas não são intrinsicamente vulneráveis, mas sua vulnerabilidade é produzida social, econômica e culturalmente. No campo do saneamento, quando examinamos dados desagregados das estatísticas de acesso aos serviços, observamos uma brecha muito significativa nos níveis de acesso, ao se comparar população urbana e rural, faixas de renda, níveis de escolaridade, cor da pele, viver em áreas formalmente urbanizadas ou em assentamentos informais, etc. Ou seja, o padrão de exclusão é muito claro. Esse padrão de exclusão produz vulnerabilidades, pois se uma pessoa ou família já tem acesso limitado à moradia, à educação, ao emprego e renda e à assistência à saúde, entre outras dimensões, e ainda é negada a ela o acesso a serviços tão essenciais como água e esgotos, as camadas de vulnerabilidade se combinam e vamos alargando ainda mais o fosso de gozo da cidadania entre os habitantes do país.

ONDAS: O relatório País estagnado: um retrato das desigualdades brasileiras – 2018, divulgado em 26/11/2018 pela organização não governamental Oxfam Brasil, mostra que entre 2016 e 2017 a redução da desigualdade de renda no Brasil foi interrompida pela primeira vez nos últimos 15 anos – reflexo direto da recente recessão econômica. A estagnação fez com que o Brasil caísse da posição de 10º para 9º país mais desigual do planeta no ranking global de desigualdade de renda de 2017. Como o aumento da desigualdade se reflete na garantia dos direitos à água e ao saneamento?

Léo Heller: Saneamento está nos dois lados dessa equação. Ele influencia fortemente o quadro de desigualdade no país. E, de outro lado, populações mais empobrecidas são mais invisíveis às políticas de saneamento e menos capazes de pagar tarifas nas áreas urbanas, ficando em risco de serem desconectadas dos serviços. Uma política de redução da desigualdade deveria colocar a universalização dos serviços de saneamento como um componente fundamental, pois os impactos sociais quando se altera o nível de acesso aos serviços são múltiplos, abrangendo a saúde, o emprego, a educação, a redução da pobreza – em um conceito moderno de pobreza multidimensional -, entre outros. Um exercício interessante é examinar os 17 objetivos e 169 metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS – e identificar como a implementação de políticas mais igualitárias no acesso aos serviços de saneamento impacta positivamente outras metas e não somente as específicas para o setor (metas 6.1 e 6.2). Os efeitos são múltiplos e muito transversais nessa Agenda 2030.

ONDAS: O que significa assegurar os direitos humanos à água e ao saneamento para as populações rurais das diferentes regiões do Brasil?

Léo Heller: Este caminho está traçado. Ao constatar a histórica negligência dos governos do país para com o saneamento rural e as enormes brechas de acesso entre as áreas urbanas e rurais, o Plansab dedicou um dos três programas federais ao saneamento rural. A mensagem é clara: dados os déficits e as especificidades sociais, econômicas, demográficas e culturas dessas populações, é necessário haver uma focalização no rural. Tal programa foi detalhado pela UFMG e outros parceiros e é momento de implementá-lo.

ONDAS: As iniciativas dos governos Temer e Bolsonaro de alterar o marco regulatório do saneamento básico apontam para assegurar os direitos humanos à água potável e ao saneamento para as populações mais pobres das cidades e do campo brasileiro?

Léo Heller: As propostas oficiais de alteração do marco regulatório partem de duas premissas falaciosas: a de que o pequeno avanço no acesso aos serviços de saneamento decorre de imperfeições na Lei 11.445 e a de que a solução para os modestos avanços é a alteração do modelo de gestão para um modelo em que predomine a prestação privada. Parece-me se tratar da formulação de uma política “não baseada em evidências”. Espera-se de um governo, que formula políticas públicas, que ancore suas propostas em evidências nacionais e internacionais e não apenas em um ideário. Em síntese, penso que a Lei contém elementos necessários e quase suficientes para uma alteração do quadro nacional de acesso aos serviços, mas sua implementação tem sido descontínua, instável e acanhada. Como consequência, é necessário reconhecer que a situação atual de acesso aos serviços está longe da adequada e aquém do vislumbrado quando da aprovação da Lei. Evidentemente, a realidade é dinâmica e talvez seja momento de alguns aperfeiçoamentos legais. Penso que um dos mais centrais deles é a explicitação de que o acesso à água e ao esgotamento sanitário são direitos humanos, mostrando as principais implicações disto, no texto legal. Por outro lado, as evidências em vários países são de que a generalização do modelo privado não trouxe os resultados esperados: não traz capital novo, descumpre contratos, retira autonomia das autoridades locais, exclui os mais pobres e traz muitas dificuldades para a regulação. Se o país precisa dar um foco nas suas políticas de saneamento é o de levar serviços para os que não têm, garantindo o acesso a todos e a todas.     

*Léo Heller: Graduado em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais (1977), com mestrado em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos pela Universidade Federal de Minas Gerais (1989) e doutorado em Epidemiologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1995), realizou pós-doutorado na University of Oxford, no período 2005-2006. Foi Professor Titular do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais, no qual atua como professor voluntário. Concursado para pesquisador do Centro de Pesquisa René Rachou, Fiocruz. Na UFMG, dentre outras funções administrativas, foi chefe do Departamento (1995), Pró-Reitor adjunto de Pós-Graduação (1995-98), Diretor da Escola de Engenharia (1998-2002) e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos (2006-2008). Foi editor nacional da Revista Engenharia Sanitária e Ambiental, da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (1992-2011). Foi membro do CA em Ciências Ambientais do CNPq (2008-11), seu coordenador (2010-11) e membro do CATC (2010-11). É Relator Especial do Direito Humano à Água e ao Esgotamento Sanitário, das Nações Unidas e membro do Conselho de Orientação do ONDAS. 

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