ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Na Bahia, queda de braço pelo saneamento público

 

NA BAHIA, QUEDA DE BRAÇO PELO SANEAMENTO PÚBLICO (download aqui)
Teia Magalhães[i]

O governo da Bahia, dirigido há mais de sete anos pelo petista Rui Costa, tenta há tempos privatizar os serviços de água e esgoto prestados pela Embasa – Empresa Baiana de Águas e Saneamento S.A., sempre esbarrando na resistência do Sindae, parlamentares, e sociedade civil. Depois de muitos embates, conseguiu aprovar o PL 24.362/2021 que altera a lei que autorizou a constituição da Embasa, permitindo qualquer forma de participação privada na empresa. O ONDAS conta essa história.

  1. Uma batalha importante

Na tarde do último dia 29 de março, o Sindae – Sindicato dos Trabalhadores em Água Esgoto e Meio Ambiente da Bahia – realizou mais uma de suas assembleias convocadas para a frente da Assembleia Legislativa do Estado, com o objetivo de chamar atenção dos deputados, e do público em geral, para os prejuízos que poderiam recair sobre o povo baiano caso o Projeto de Lei 24.362/2021 fosse aprovado naquele dia. Para isso, o sindicato convocou a assembleia por meio de edital público, com todos os rituais exigidos pela legislação, para proteger os trabalhadores de eventuais retaliações de caráter político. Do lado de dentro, o peso da participação do Sindae no processo de discussão do projeto de lei podia ser sentido pelas seguidas manifestações das galerias lotadas da Assembleia Legislativa naquele dia e as inúmeras referências dos oradores da sessão à reunião dos trabalhadores diante da Casa. Mas não foi o suficiente. O PL foi aprovado.

Esta foi a última de um conjunto de assembleias de trabalhadores, convocadas pela direção do sindicato, para barrar a aprovação deste projeto e forçar negociação sobre um aspecto relevante de um outro projeto, o Projeto de Lei Complementar, o PLC 143/2021, aprovado uma semana antes, que, de acordo com o governador Rui Costa, visam adaptar a Embasa à nova legislação federal sobre saneamento básico, a Lei Federal 11.445/2007, alterada pela Lei 14.206/2020. No entender do coordenador geral do Sindae-BA, Grigório Mauricio Rocha, no entanto, particularmente o projeto de lei ordinária (PL 24.362/2021) sobre a Embasa, é mais uma tentativa do governador de privatização da empresa estadual. “A Bahia é um estado pobre, com grande população de baixa renda, grande população rural e muitos municípios cujos sistemas não são superavitários. Então, o capital mudou de tática. Dos anos 2000 para cá, não quer a privatização total da empresa, tem buscado privatizar pedaços dela, onde há maior resultado financeiro, através de PPPs, outras formas de subconcessão, ou outros modelos, para pegar só a área rentável. Só quer lucrar”, diz Grigório ao ONDAS.

A mesma avaliação é feita pela coordenação da Frente Parlamentar Ambientalista, que reúne parlamentares, ambientalistas, Ministério Público, e representantes de diversos movimentos sociais e religiosos, e é contra a presença do capital privado no saneamento. “Há algum tempo, desde o encaminhamento do projeto, a gente vem discutindo com os movimentos mobilizados, como o Sindae e outras organizações. O que ocorre é o seguinte: o governo quer adaptar a estrutura da empresa à Lei 14.026/2020, que estabeleceu marco regulatório para o saneamento permitindo a privatização, para o capital privado entrar nesse segmento tão importante – saneamento é um direito humano, o saneamento ambiental e principalmente o abastecimento de água e esgotamento sanitário”, diz o deputado Marcelino Galo, do PT, coordenador da Frente.

Durante todo o período de tramitação do PL, o Sindae participou, juntamente com o conselheiro representante dos empregados no Conselho de Administração da Embasa, Abelardo de Oliveira Filho, de várias reuniões com a bancada do PT e deputados da base do governo para discutir e propor a retirada do PL 24.362/2021 e até mesmo propor sugestões de emendas. A mobilização forçou a negociação do líder do governo e relator dos projetos, deputado Rosemberg Pinto, do PT, em torno de alguns pontos mais polêmicos, e levou o governador Rui Costa a receber representantes do Sindae pela primeira vez em sete anos de governo, conta Grigório.

Mas se o relator aceitou as propostas de alteração do PLC 143/21, tornando sua aprovação mais tranquila (ver texto ao final), a mobilização não foi suficiente para fazê-lo acatar as mudanças propostas em relação do PL 24.362/2021. “Rosemberg, fez apenas mudanças cosméticas, que não atendem as propostas dos trabalhadores. Diz no relatório que atendeu ao Sindae, mas não mudou o essencial do que propusemos”, disse Grigório após a aprovação do projeto de lei.

Apesar de toda a pressão feita pelo Sindae e toda a discussão com os deputados, demonstrando que a nova lei vai proporcionar, a curto prazo, a desestruturação total da empresa, permitindo qualquer forma de participação privada na Embasa, a aprovação contou com expressiva participação da base do governo – foram 26 votos favoráveis e 7 votos contrários – apenas 33 dos 63 deputados votaram. “A centralidade do projeto era adequar o Estado ao marco regulatório atual, criar condições para a iniciativa privada entrar no saneamento”, disse o deputado Marcelino Galo ao ONDAS, após a aprovação do projeto.

O PL 24.362/2021, que altera a Lei nº 2.929, de 11 de maio de 1971, que criou a Secretaria do Saneamento e Recursos Hídricos do Estado e autorizou a constituição da Embasa, é muito polêmico.

Em primeiro lugar, a proposta do governo amplia a competência da área de atuação da Embasa em saneamento básico para todo o território nacional. Porém, restringe o conceito de saneamento básico às ações de abastecimento de água e esgotamento sanitário, contrariando a Lei Federal 11.445/2007, a Lei Estadual 11.172/2008 e a própria Constituição do Estado da Bahia, que definem o saneamento básico como ações de abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos e drenagem e manejo das águas pluviais.

Em segundo lugar, mais grave, de acordo com a proposta do governador, a Embasa pode se coligar e se associar com empresas públicas ou privadas, formar e integrar consórcio, constituir ou integrar Sociedade de Propósito Específico (SPE), majoritária ou minoritariamente, para disputar, por meio de concorrência, a prestação dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, e subconceder parte de suas atividades a terceiros.

Outro ponto sensível do projeto aprovado é o que dispõe que a Assembleia Legislativa delega competência para o Conselho de Administração e a Assembleia Geral da Embasa deliberarem sobre a organização e instituição de qualquer uma dessas formas de participação privada previstas na legislação, “ressalvados os casos em que haja exigência legal de autorização legislativa”. Ressalte-se que no texto original, a delegação de competência era sem ressalvas, um verdadeiro cheque em branco para que a Assembleia Geral dos Acionistas – leia-se, o Estado da Bahia – delibere sobre qualquer forma de participação privada na empresa. A mudança foi uma das poucas alterações aceitas pelo relator.

O Conselheiro de Orientação do ONDAS, Abelardo Oliveira Filho, que também é representante dos trabalhadores da Embasa no Conselho de Administração da empresa, que elaborou um amplo texto com análise dos principais problemas do PL 24.362/2021, explica que “na realidade, o PL aprovado autoriza de forma genérica – e não por lei específica que lhe defina os termos, conforme preconiza a Constituição Federal – qualquer forma de participação privada. Da forma como a Lei foi aprovada é permitido tudo e sem nenhuma dúvida causará sérios prejuízos para o próprio Estado, para a Embasa, os pequenos e pobres municípios, as periferias das grandes cidades e as zonas rurais, especialmente, a população que não tem acesso aos serviços e as mais carentes e vulneráveis”. Ele aponta que a exigência de autorização legal está estabelecida no inciso XX, do Art. 37 da Constituição Federal: depende de autorização legislativa, em cada caso, a criação de subsidiárias das autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e de fundações, cuja área de atuação será definida por lei complementar, “que também deverá definir objeto, finalidade, escopo, se haverá recursos públicos envolvidos, onde esses recursos seriam aplicados, tudo isso teria que ser especificado na lei”, diz ele.

Além disso, também a lei das estatais, a que está submetida a Embasa, diz que depende de autorização legislativa a criação de subsidiárias de empresa pública e de sociedade de economia mista, assim como a participação de qualquer delas em empresa privada, nos termos do mesmo dispositivo legal da Constituição, lembra Abelardo. Assim, é provável que surjam muitas contestações judiciais a eventuais iniciativas de aprovação de inclusão ou associação com o capital privado.

Para o deputado Marcelino Galo, a aprovação desta matéria está na contramão dos interesses públicos da sociedade. “O cerne do PL 24.362/2021 é a retirada da prerrogativa da Assembleia Legislativa da Bahia de deliberar sobre assunto crucial e estratégico, pois trata de um bem comum, a água, essencial para a vida, transferindo esta prerrogativa para a Assembleia Geral da Embasa – diga-se, assembleia de acionistas. O momento exige um debate público qualificado, só possível com a Assembleia Legislativa preservando sua prerrogativa de deliberação sobre temática de grande magnitude, que traduz a disputa de projetos para o país, entre um neoliberalismo radical privatizante e um projeto de base social que atenda aos interesses da população, como o direito de acesso à água como bem comum e a um saneamento básico de caráter público e universal. A Assembleia é o lugar do debate público da sociedade, prerrogativa que não pode ser eliminada.” Segundo o deputado, a forma adotada foi a pior possível, pois tem uma falsa aparência de não significar privatização. “O fato é que o projeto abre as portas para qualquer solução de privatização sem nenhum regramento prévio, já que a Assembleia não mais delibera sobre o assunto. Consideramos isto uma afronta à democracia, pois os interesses privados não podem substituir o debate e a soberania popular”, diz ele.

  1. Por que privatizar a Embasa?

A principal alegação dos que defendem a privatização dos serviços de água e esgotamento sanitário é que o Estado não tem recursos para investir nas prestadoras de serviço estatais, o que impede a extensão dos serviços a toda a população.

Consenso sobre as microrregiões de saneamento básico
 O PLC 143/2021 foi aprovado no dia 23 de março, com alterações propostas pelo Sindae. Ele altera a Lei 48/2019 que criou as microrregiões de saneamento básico do Estado. Estabelece que são funções públicas de interesse comum das microrregiões de saneamento básico do Estado a organização, a gestão, o planejamento, a regulação, a fiscalização e a prestação dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Ou seja, também restringe saneamento básico apenas a estes dois componentes, contrariando a lei federal. Ao definir essas funções, atribui às microrregiões a responsabilidade pelo cumprimento das metas de universalização dos serviços, o desenvolvimento “tanto quanto possível” da política de subsídios, mediante tarifa uniforme em todos os municípios “que atualmente a praticam”, o financiamento da operação e manutenção das obras e serviços e também sua remuneração e recuperação de custos, a definição do modelo de prestação dos serviços.

Segundo a proposta, as microrregiões poderão prestar diretamente os serviços, por meio de estrutura administrativa própria, ou delegá-los a estrutura administrativa do Estado da Bahia, ou de municípios que a integram. Mas também poderá autorizar a criação, sob forma de empresa pública ou sociedade de economia mista, de pessoa jurídica interfederativa controlada pela Microrregião, para prestação dos serviços, no âmbito regional, dos serviços de abastecimento e água e esgotamento sanitário. Também poderão se manifestar, em nome dos titulares dos serviços, sobre matérias regulatórias.

A Lei 48/2019, anterior, estabelecia a proporcionalidade de 50% de votos para o Estado e 50% para os municípios para as decisões das microrregiões. O PLC 143/2020 altera a proporcionalidade de votos para 40% para o Estado e 60% para o conjunto de municípios, o que é mais democrático, embora em muitas regiões isso ainda significa predominância do Estado.

Entre as novas atribuições das microrregiões na proposta inicial do PLC 143/21, estava a que permitiria às microrregiões deliberar sobre a manutenção dos serviços de produção de água tratada pela Embasa nos termos da Lei 11.445/2007, modificada pela Lei 14.026/2020, que explicitamente permitiria dividir a prestação dos serviços de abastecimento de água em duas partes: a produção de água e sua distribuição aos usuários, elemento central da modelagem desenvolvida pelo BNDES, que orientou os processos de privatização recentes em companhias estaduais de saneamento, como a Cedae, do Rio de Janeiro, e Casal, de Alagoas.

Este último ponto causou grande polêmica, pois explicita a clara intenção do governo estadual de promover o esvaziamento da Embasa, além de abrir caminho para a adoção de uma concessão de forma regionalizada do mesmo tipo daquela realizada nos dois estados citados. Entretanto, após intensas negociações entre o relator da matéria e representantes da Embasa e do Sindae com o próprio governador, o texto foi alterado para uma redação mais neutra, mencionando apenas que as microrregiões deliberam sobre a manutenção dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário pela Embasa. Outra alteração, introduzida por pressão do Sindae, foi a inclusão das Regiões Metropolitanas, não contempladas anteriormente na lei das microrregiões, que passam a ficar sujeitas às mesmas regras de governança das microrregiões para o saneamento básico. Com as alterações propostas pelo Sindae e aceitas pelo Relator, o PLC 143/2021 foi aprovado.

O histórico recente e a situação da empresa, no entanto, não confirmam esse ponto de vista. A Embasa nos últimos anos passou a gozar de uma situação relativamente favorável entre a companhias estaduais de saneamento, em função da grande ampliação dos investimentos ocorrida nos últimos quinze anos.

A Embasa é executora do maior programa de água e esgotamento sanitário do país, instituído pelo Governo do Estado, o “Água para Todos”, que completou 15 anos em 2021. Segundo Abelardo de Oliveira Filho, com resultados expressivos: entre 2007 e 2021 foram investidos mais de R$ 10 bilhões na implantação e ampliação e reposição dos sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário em todo o Estado. Neste mesmo período, o número de pessoas conectadas à rede de água quase duplicou. Só na zona rural, num dos estados que tem a maior população rural, tanto em termos relativos como absolutos, o acesso à água saltou de 25,2% em 2003 para 72,5% em 2015, segundo a PNAD do IBGE. Além disso, no período de 15 anos do programa, o número de pessoas conectadas à rede de esgoto triplicou, com um crescimento de quase 200%. São números expressivos, que demonstram que uma empresa pública pode ser eficiente.

“A Embasa tem um dos menores índices de endividamento entre as companhias estaduais de água e esgoto, e grande capacidade de alavancar recursos e de investir com recursos próprios – a previsão para 2022 é de investir R$ 1,6 bilhão, sendo R$ 1,3 bilhão de recursos próprios, já que está tendo dificuldade de captar recursos junto ao governo federal. O governo Bolsonaro está segurando a liberação de empréstimos já aprovados, de R$ 500 milhões no Banco do Brasil, de R$ 1,2 bilhão do Fundo Constitucional do Nordeste – FNE, administrados pelo Banco do Nordeste – BNB e não dá andamento a empréstimos internacionais que já estão em análise na Secretaria de Assuntos Internacionais – SEAIN e na Comissão de Financiamentos Externos – COFIEX há muito tempo”, diz ele, que fala com conhecimento, pois é funcionário da Embasa há 43 anos, e além de membro do Conselho de Administração da empresa, foi coordenador-geral do Sindae-BA, Secretário Nacional de Saneamento da Federação Nacional dos Urbanitários – FNU-CUT, Coordenador Geral da Frente Nacional de Saneamento Ambiental – FNSA, Secretário Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades e presidente da Embasa por 8 anos e três meses, entre 2007 e 2015.

Essa prática de reduzir, ou mesmo impedir, o acesso das prestadoras públicas dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário a financiamento tem sido um expediente bastante utilizado por sucessivos governos para empurrar os titulares dos serviços para adoção de diferentes formas de desestatização dos serviços. “Pelo visto, mesmo tendo capacidade demonstrada, a Embasa está sendo boicotada e tem dificuldade de ter acesso a recurso oneroso”, diz Marcos Montenegro, coordenador geral do ONDAS. “O que é mais grave, é que essa prática obriga as companhias a praticar tarifas mais elevadas para gerar recursos vultosos no curto prazo para a realização dos investimentos, quando, com financiamento, os custos seriam distribuídos ao longo do período de amortização dos empréstimos”, diz ele.

O coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista chama a atenção para outro aspecto importante, já mencionado por Grigório Rocha. “A Embasa é uma empresa pública, eficiente, bem estruturada, de um estado relativamente pobre, a maioria de seu território está no semiárido, e a empresa trabalha muito com subsídio cruzado. Só 50 municípios cobrem os custos de água e esgoto com a tarifa cobrada”, lembra o deputado Marcelino Galo.

No caso da Bahia, a maior parte dos investimentos feitos na área rural pela Embasa, mencionados acima, foi realizada com recursos próprios e do Fundo de Combate à Pobreza do Estado. Houve também investimentos com recursos do Orçamento Geral da União – OGU, e, em algumas localidades, com recursos financiados pela Caixa (FGTS) e BNDES (FAT), quando não havia essa política deliberada de empurrar as empresas de água e esgoto para o colo do setor privado. “A situação econômico-financeira da empresa hoje é excelente. Mas mesmo com a Embasa tendo esses números, o governador parece ter fixação em defender várias formas de participação privada na empresa”, afirma Abelardo.

  1. Obsessão pela privatização

Não é a primeira vez que o governador Rui Costa, tenta emplacar uma proposta para a privatização do saneamento no Estado, apesar de muitos filiados e militantes de seu partido criticarem abertamente a privatização dos serviços públicos. E não é a primeira vez que o Sindae, articulado com outras instituições, tenta barrar iniciativas de privatização da companhia.

A primeira investida foi feita em 2018, quando o governador propôs a contratação de um Parceria Público Privada – PPP para a prestação dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário nas cidades de Salvador e Feira de Santana, as duas maiores do Estado, ambas atendidas pela Embasa. Diante de Manifestação de Interesse Privado – MIP apresentadas por empresas privadas, os técnicos qualificados da empresa, de acordo com os dispositivos legais previstos, fizeram estudos de alternativas, que comparam os custos teóricos de contratação direta dos empreendimentos a serem realizados pelo poder público com os custos a serem efetivados no âmbito da PPP. Os resultados dos estudos comprovaram que seria muito mais vantajoso para o poder público se os empreendimentos fossem realizados pela própria Embasa. Com isso, o Governador, diante de tais evidências, se convenceu, e se viu obrigado a desistir da ideia.

Mas isso não foi suficiente para dissuadi-lo de buscar outra saída para sua quase obsessão, segundo Grigório, pela privatização dos serviços de água e esgoto, seja por meio de concessão, PPP, subconcessão, ou abertura de capital da empresa – atualmente 99,7% das ações estão nas mãos do Estado. A segunda investida foi, também em 2018, quando o governo incluiu um dispositivo no projeto de lei de criação da Bahiainvest, empresa garantidora das ações de PPPs no Estado, dispondo que o Estado da Bahia transferiria 25 % das ações da Embasa para compor o capital da nova empresa. De novo, técnicos da Embasa fizeram estudo demonstrando que, com isso, a Embasa teria um grande prejuízo pois poderia perder os recursos do OGU, provenientes do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC e perderia sua imunidade tributária, cujo processo já estava tramitando na Justiça. Como é uma empresa de economia mista de capital fechado, com a quase totalidade das ações nas mãos do setor público e não distribui lucros e dividendos, a estatal de saneamento da Bahia, do ponto de vista tributário, é equiparada a uma autarquia, garantindo a chamada Imunidade Tributária Recíproca, ficando isenta de pagamento de Imposto de Renda e outros tributos. Por conta disso, deixa de recolher os tributos e passa a recolher uma alíquota bem menor de PIS/Cofins – ao invés dos 9,75%, recolhe apenas o percentual de 3,75%.

Por precaução, enquanto corria o processo sobre a imunidade tributária, a Embasa depositou os recursos correspondentes aos recolhimentos em juízo, até março de 2020, quando foi autorizada a deixar de recolher. Como o processo transitou em julgado no STF em 2021, a empresa ganhou a causa. Com isso, terá direito a receber créditos do Tesouro Nacional de cerca de R$ 3 bilhões, sendo R$ 1 bilhão referente aos depósitos feitos em juízo, e cerca de R$ 2 bilhões referentes aos recolhimentos realizados durante os cinco anos anteriores, a partir da data do ajuizamento da ação. Além disso, a empresa deixará de pagar cerca de R$ 350 milhões por ano de IR e PIS/Cofins. “Em doze anos, quando teria que atingir a universalização dos serviços de acordo com a Lei 14.026/2020, a Embasa teria economizado R$ 4,2 bilhões que, somados aos R$ 3 bilhões, correspondentes à imunidade transcorrida, disponibilizam R$ 7,2 bilhões para investir, diz Abelardo de Oliveira Filho. A possibilidade da perda de recursos do OGU e da perda da imunidade tributária afastaram a proposta do Governo do Estado de utilizar o percentual de 25% das ações da empresa para compor o capital da Bahiainvest. “Com grande mobilização do Sindae e dos movimentos sociais, conseguiu-se retirar do projeto de lei a proposta que autorizava o Governo do Estado a utilizar as ações da Embasa para capitalizar a Bahiainvest na Assembleia Legislativa. Foi uma vitória do sindicato, que conseguiu colocar muita gente nas galerias da Assembleia”, lembra Grigório.

Uma terceira investida contra o saneamento público foi proposta pelo governador para abertura do capital da Embasa por meio de venda de ações na bolsa de valores, em dezembro de 2019. Numa cerimônia de lançamento da PPP para construção da ponte Salvador-Itaparica, o governador Rui Costa, em entrevista, anunciou que iria abrir o capital da Embasa, passando cerca de 49% das ações da empresa para o capital privado, com o que iria arrecadar entre 4 e 5 bilhões de reais. Aliás, o governador, na mensagem feita à Assembleia Legislativa, no início de 2021, confirmou o seu desejo de abrir o capital da Embasa.

Por duas vezes, por meio de ofícios nunca respondidos, o Sindae questionou o governador, solicitando os estudos que demonstravam que a abertura de capital era viável e que a empresa iria arrecadar esse valor. Apenas em fevereiro de 2020, três meses depois, a Embasa contratou a consultoria Ernest Young para realizar os estudos de avaliação econômico-financeira, com a finalidade de subsidiar a empresa numa possível abertura de capital. “Ficou claro que ele anunciou que ia fazer, e anunciou o valor, sem os estudos. Foi uma decisão política”, diz Grigório.

De acordo com Abelardo, a empresa contratada concluiu os estudos no final de 2020 e apresentou os resultados ao Conselho de Administração com as avaliações de vários cenários para a alienação total das ações da Embasa. Nesses estudos, a consultoria definiu um cenário base, chegando a um valor de referência para a alienação total das ações da Embasa, que atingiu o montante de R$ 4,2 bilhões e entre outros cenários, também foi estudado qual seria o valor da empresa caso se mantivesse com o capital fechado, mantendo, portanto, a imunidade tributária recíproca. O valor encontrado para esse cenário foi de R$ 10,5 bilhões, que é praticamente o mesmo valor dos ativos da empresa constante de suas demonstrações financeiras. Durante a reunião, o Conselheiro Abelardo de Oliveira Filho questionou várias das premissas utilizadas nos estudos. Caso a alienação total das ações fosse concretizada pelo valor de referência de R$ 4,2 bilhões, encontrado pela consultoria, os prejuízos para a empresa seriam de mais de R$ 6 bilhões, principalmente por conta da imunidade tributária recíproca e do valor dos ativos da empresa, mesmo sem considerar os valores decorrentes da imunidade transcorrida. O processo está parado desde 2020, não tendo retornado ao Conselho com as respostas aos questionamentos para nova avaliação. Mais uma vez, a iniciativa de Rui Costa, por enquanto, não se concretizou.

Diante de tantos embaraços, o governador parece ter decidido comer o mingau pelas beiradas e, depois da aprovação da lei federal 14.026/2020, que estimula abertamente a privatização do setor, lançou a proposta de fazer uma PPP para vinte municípios da microrregião de Feira de Santana, a segunda cidade da Bahia em população e em arrecadação. Mais uma vez, o Sindae entrou em campo. “O sindicato tem feito um trabalho junto à opinião pública dos municípios da região, com audiência pública em Feira de Santana, com participação de vereadores, construindo um debate na cidade contra a PPP”, conta o coordenador geral do sindicato.  De sua parte, o governo tenta passar a aprovação da PPP pelo Conselho de Administração da Embasa. Mas esbarrou desta vez num ponto da própria Lei 14.026/2020 que limita as subdelegações a 25% do valor do contrato da empresa prestadora dos serviços em cada município que será envolvido na PPP. Com isso, a própria Procuradoria Geral do Estado – PGE tinha recomendado ao governo não levar adiante a proposta da PPP, por meio da concessão patrocinada, cujo objeto era a prestação dos serviços de água e esgotamento sanitário dos 20 municípios, portanto 100% dos contratos de delegação.

Posteriormente, um parecer jurídico de um advogado consultor da Embasa sugeriu que havia uma brecha na lei, que permitiria fazer uma PPP por meio de concessão administrativa com valor superior ao autorizado, alegando que esse tipo de PPP não seria uma subdelegação e que, portanto, estaria fora dos limites estabelecidos na lei. A PGE, então, fez um parecer favorável. No entanto, o Decreto 10.710/21, que regulamentou a Lei 14.026/2020, deixa claro que PPP é uma forma de subdelegação. E o conselheiro apresentou ao Conselho de Administração, no final do ano passado, um parecer contrário ao da PGE sobre a admissibilidade jurídica da PPP, demonstrando claramente que as PPP, em qualquer das suas formas, estão, sim, condicionadas ao limite de 25% estabelecido em lei. Esse parecer foi encaminhado a PGE para se posicionar, e o processo, até hoje, não retornou para deliberação do colegiado.

Sua última tentativa foi bem-sucedida: o PL 24.362/2021 foi aprovado sem mudanças expressivas, convertendo-se na Lei n° 14.466, de 31 de março de 2022. O governador, enfim, conseguiu o que queria.

Durante a sessão de votação, os argumentos de deputados da esquerda se contrapuseram. O deputado Hilton Coelho, do PSOL, atacou abertamente a proposta como sendo privatista, uma “ameaça que hoje paira sobre esta Casa de trair o povo brasileiro e votar um projeto que vai esquartejar a nossa Embasa, vai tornar o nosso saneamento básico uma fonte de lucro a ser repartido por grandes grupos, especialmente grupos internacionais que têm, como representação principal, o mercado financeiro. Essas empresas não têm interesse, no mínimo, por 340 municípios dos 367 que a Embasa se responsabiliza hoje”, disse. E completou: “Esses municípios, considerados não lucrativos, ficarão no limbo, no limbo de uma assistência de que tipo de empresa? De uma Embasa enfraquecida … porque os municípios superavitários vão ficar na mão da iniciativa privada. Os municípios que, hoje, não conseguem ser superavitários não vão participar mais do chamado subsídio cruzado, que vai ser triturado por esta proposta”, disse o deputado da tribuna segundo ata transcrita da sessão.

O líder do governo e relator do projeto, Rosemberg Pinto, se contrapôs aos argumentos de Hilton Rocha: “Eu encontro diferenças com esse projeto de lei, mas eu não posso concordar, em nome da verdade, em nome do bom debate, que esse projeto é uma tentativa do governador Rui Costa de privatizar a empresa. Não é verdade essa afirmação”. E Robinson Almeida, que votou a favor da proposta do relator, se apressou em justificar seu voto, afirmando que “jamais votaria pela privatização da Embasa – trata-se apenas de ajustar a Embasa à lei 14.026/2020, permitindo que ela dispute com empresas privadas novos contratos de serviços de água e esgotamento sanitário”, diz ele. “Não muda a composição acionária da Embasa em nada. Não posso concordar que os deputados do PT votaram a favor da privatização da Embasa. Não votamos”, diz ele em sua página na internet logo após a votação.

Entre os doze deputados do PT, apenas três não votaram: Marcelino Galo, Bira Corôa e Paulo Rangel, por estar exercendo, no momento da votação, a Presidência da Mesa Diretora.

  1. A luta continua

 De certa forma, a argumentação de que a Lei 14.466/22 não conduz à privatização imediata da Embasa é verdadeira – mas ela facilita, incentiva e aponta o caminho legal para a privatização da prestação dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, sob diversas formas, o que vai exigir redobrar a luta contra as iniciativas futuras de privatização.

A forma como esta lei e a originada do PLC 143/2020 serão aplicadas dependerá do próximo governo estadual. Ao definir que as microrregiões podem decidir sobre o modelo de gestão, a nova lei complementar abre espaço para um governo que não seja privatista optar por contratar a Embasa para prestação dos serviços de forma direta nos municípios de sua área. Como o Estado integra as microrregiões, uma entidade que seja de sua estrutura administrativa poderá prestar serviços a todos os municípios da microrregião sem necessidade de licitação. Essa é uma das formas de preservar as companhias estaduais e, ao mesmo tempo, atender à legislação federal.

Marcos Montenegro lembra que o Estado da Paraíba colocou na lei das microrregiões que o órgão metropolitano pode deliberar pela contratação da companhia estadual de lá, a Cagepa, porque o Estado integra a região, é um dos entes metropolitanos. E o Estado, pela lei, é um titular dos serviços de saneamento. O Estado do Ceará também colocou dispositivo nesse sentido na sua nova legislação para o saneamento básico.

Outra forma, aceita em Roraima e no Piauí, lembra Montenegro, é o Estado, principalmente quando não há contratos dos municípios com a empresa estadual, ou quando não estão mais válidos, transferir o controle acionário do Estado das companhias para a Microrregião. O projeto de lei complementar, aprovado no final de março pela Assembleia Legislativa do Piauí, por exemplo, autoriza a transferência do controle acionário da Agespisa, empresa estadual de saneamento, para a Microrregião, definida no caso como o conjunto de todos os municípios piauienses. “Nessa situação, não há como discutir que o prestador de serviço é do titular. E a prestação dos serviços à Microrregião, nesse caso, é direta, não precisa sequer de contrato”, diz Montenegro.

Com o peso do Estado nas microrregiões, certamente a definição sobre quem será o prestador regional dos serviços vai depender bastante das convicções do próximo governador. Essa é uma razão importante para os candidatos se comprometam a não promover qualquer forma de participação privada na Embasa. Por outro lado, qualquer iniciativa da Embasa de associar-se a entidades públicas ou privadas, participar de consórcio, de SPE, de subconceder ou subdelegar parte de suas atividades a terceiros poderá estar sujeita a judicialização, uma vez que a lei aprovada faz referência explícita à “exigência legal de autorização legislativa” para certas decisões da Assembleia de Acionistas da empresa.

O que não vai faltar, certamente, é resistência. “O Sindae sempre foi extremamente atuante, mobilizando a sociedade em defesa da água”, diz Grigório. Na década de 1990 fez oposição cerrada contra as tentativas de privatização da Embasa, até que conseguiu barrar as iniciativas neoliberais da época. Conseguia estabelecer parcerias com a sociedade civil organizada, com igrejas e religiões de matriz africana, com organizações de bairro, com movimento ambientalista, estudantil, e outras organizações sindicais.

“Foi um período em que os trabalhadores da Embasa pagaram muito caro, o sindicato também”, conta ele. “Toda a direção do sindicato foi demitida, houve uma campanha de difamação nos jornais contra o sindicato, chamando os sindicalistas de marajás, e desfiliaram todos os empregados da Embasa automaticamente”, lembra Grigório. A categoria deu uma resposta impressionante: os trabalhadores não só se refiliaram, como pagavam diretamente a contribuição sindical ao Sindae, e muitos também pagavam um valor a mais para financiar os salários do pessoal da diretoria que tinha sido demitida. Quando os antigos diretores foram reintegrados pela Justiça, os valores foram devolvidos aos que contribuíram.

Antes de terminar, cabe lembrar que o mesmo governador Rui Costa foi ator importante quando viabilizou a aprovação da Lei 14.026/2020, ao negociar, em nome dos governadores, com o Presidente da Câmara dos Deputados a inserção de um artigo que permitiria a prorrogação dos contratos de programa celebrados por municípios com as empresas estaduais de saneamento por mais 30 anos. Com isso, o PL foi aprovado naquela casa com o voto contrário dos partidos de esquerda e da grande maioria dos deputados da base do governador – todos de esquerda, mais um ou outro de outros partidos.

Aprovado depois no Senado Federal com a redação vinda da Câmara dos Deputados, a lei foi sancionada pelo Presidente Jair Bolsonaro com o veto de dezesseis dispositivos, incluindo o artigo de transição que permitiria a renovação dos contratos de programa e a possibilidade da contratação dos serviços das companhias estaduais por municípios que não tinham contratos, no chamado reconhecimento da situação de fato, uma única vez, por 30 anos. Os artigos vetados foram mantidos pelo Congresso.

[i] Téia Magalhães é arquiteta, jornalista, associada e colaboradora do ONDAS.

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