Texto da interação ONDAS-Privaqua*
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O PROCESSO DE REGIONALIZAÇÃO DO SANEAMENTO EM SÃO PAULO: BAIXA ADESÃO REVELA A FALTA DE DIÁLOGO E PROBLEMAS DO MODELO PROPOSTO
Autor: Bruno Puga**
O Novo Marco Legal do Saneamento, aprovado em 2020, delegou aos estados a função de definição dos processos de regionalização em seus municípios. Posteriormente, o decreto federal 10.588/2020, que regulamentou o novo Marco Legal, estabeleceu março de 2022 como prazo final para a conclusão dos processos de regionalização dos estados. Apesar de assunto de extremo impacto na realização de direitos humanos fundamentais, como à água e ao saneamento, tais processos em grande parte dos estados foram realizados de forma apressada, sem transparência e com baixa participação de municípios e da sociedade civil (seja por meio de audiência ou consulta pública).
Em São Paulo, a organização da nova regionalização foi iniciada a partir da promulgação da Lei nº 17.383, de 05/07/2021 [1], em que foram criadas quatro Unidades Regionais de Serviços de Abastecimento de Água Potável e Esgotamento Sanitário (URAE). Posteriormente, no final do ano de 2021, o governo do Estado editou o Decreto 66.289/2021 regulamentando a governança, competências e os critérios para adesão dos municípios às URAEs. A urgência imposta pelo Executivo em aprovar a regulamentação da lei, principalmente pelo prazo determinado pela Lei 14026, não deu espaço para uma discussão ampla com a sociedade paulista. Em um prazo de apenas 45 dias (e sem grande divulgação), o governo do estado realizou poucas audiências públicas tendo em vista a dimensão territorial e a complexidade do assunto.
Desde os primeiros passos, diversos atores demonstraram preocupação com a governança do processo de regionalização. Organizações como ONDAS, Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) e Instituto Água e Saneamento apontaram uma série de incoerências e equívocos por parte do governo do estado na estruturação da governança da regionalização. O receio estava em que a celeridade do processo não se traduziria em legitimidade, podendo não garantir a melhor governança possível. E os céticos estavam com a razão!
Em 28 de junho de 2022, foi realizada uma audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo, sob liderança da Deputada Estadual Marina Helou (REDE), para avaliar o andamento do processo de regionalização do saneamento no estado. O evento contou com a presença de representantes do governo do Estado, da Agência Reguladora (ARSESP), de organizações da sociedade civil e dos serviços municipais de saneamento. A deputada destacou que a baixíssima adesão dos municípios que não são operados pela Sabesp às URAEs (dos 275 municípios, apenas 9 municípios aderiram ao modelo proposto) aponta para a falta de diálogo e transparência. E ainda que o modelo não se configura como capaz de combater as desigualdades e garantir o direito humano à água e ao saneamento [2] .
Algumas insatisfações têm sido reiteradas na ótica de quem tem acompanhado o processo mais de perto, destacando-se a falta de transparência dos entes envolvidos quanto aos critérios de definição das URAEs. O critério escolhido pelo governo do Estado para a modelagem e definição das URAEs foi exclusivamente baseado na viabilidade econômico-financeira, como apontado pelo representante do governo estadual presente no evento. Apesar da importância de se entenderem as premissas e critérios adotados para a modelagem, tais informações não foram divulgadas pelo Estado. Ademais, críticos do processo apontam que o critério principal foi o de evitar qualquer risco de depreciação de valor para a Sabesp, empresa na mira da privatização. Porém, isso não foi vocalizado por nenhum representante governamental.
As organizações da sociedade civil presentes à audiência apontaram como um grande equívoco ignorar outros critérios que moldam as políticas de saneamento e recursos hídricos no Brasil, como a organização por bacias hidrográficas e arranjos já existentes, como o de regiões metropolitanas. Há municípios na proposta atual que estão ilhados, com todos seus vizinhos limítrofes participando de outras URAEs. A definição das áreas pelo critério único de viabilidade econômico e de preservação do “mercado” da Sabesp cria uma fragmentação espacial exacerbada, o que dificulta sobremaneira a coordenação efetiva entre os diferentes municípios. Perde-se assim a noção de região como um espaço de integração, cooperação e coordenação intermunicipal.
Na prática, ao invés dos quatro blocos propostos há apenas dois blocos: os municípios que são concessões da Sabesp e os demais. Como em outros eventos recentes, por exemplo a grave crise de abastecimento de água de 2013-2015, fica o temor do favorecimento à Sabesp e tratamento discriminatório? dos municípios.
Na audiência, o governo do Estado reconheceu a baixa adesão e garantiu que conduzirá o processo de modo diferente. Em 2021, o Executivo paulista temia que a ausência de definição de um modelo poderia ser motivo de uma intervenção federal em suas competências, criando blocos de referência após o prazo determinado pela Lei 14.026/2020. Agora, com mais tempo, promete considerar o diálogo e os interesses regionais dos municípios, pois são titulares dos serviços de saneamento, de forma isolada ou compartilhada, e que são os entes mais afetados pela política de regionalização. A estratégia governamental agora concentra-se em convencer os municípios quanto às vantagens de uma prestação regionalizada.
Entretanto, o que se evidencia nesse processo até agora é a velha prática de definição de políticas públicas de cima para baixo, na base do “fórceps”. Resta saber se, de fato, há disposição ao diálogo e à construção coletiva de um modelo justo, capaz de garantir a prestação de serviços de saneamento de forma que seja um avanço ao modelo atual ou se novamente serão palavras ao vento.
[1] Recomendo a leitura da Nota sobre a Regionalização escrita pelo ONDAS – https://ondasbrasil.org/nota-sobre-a-regionalizacao-do-saneamento-proposta-para-o-estado-de-sao-paulo/ critérios
[2] https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,blocos-de-saneamento-sao-paulo-fracassam,70004057894
** Autor:
– Bruno Puga – Economista, experiência com ênfase em Economia dos Recursos Naturais, Recursos Hídricos e Mudanças climáticas.
* Privaqua é um projeto de pesquisa que busca entender o impacto da privatização dos serviços de água e saneamento nos direitos humanos. Regularmente, o site do ONDAS publica notas do Privaqua de forma a dar transparência ao projeto e compartilhar alguns de seus achados preliminares.
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