Antonio Carlos A. Lobão[1]
Hoje dizemos que uma pessoa possui o “toque de Midas” quando parece ser capaz de fazer prosperar qualquer negócio, criar riquezas e multiplicar lucros. E costuma ser considerado um elogio para pessoas bem sucedidas na arte do enriquecimento e da cobiça.
Mas, no relato mitológico, muito conhecido entre gregos e romanos, Midas não teve tanto sucesso quanto se imagina e nem uma vida de felicidades. Ele herdou o trono de seu pai, que, embora fosse um camponês, tornou-se o rei da Frígia, escolhido pelo povo local. Isto porque o oráculo havia previsto que um grande rei chegaria em uma carroça puxada por um burro. Eis que, num belo dia, quando a população em assembleia debatia sobre seu futuro, chega à cidade um camponês, com sua mulher e o pequeno Midas. Viajavam em uma carroça. Pronto, rei posto.
Depois de assumir o trono, o rei Midas viveu uma vida de riquezas e era conhecido por sua ganância. Dizem que tinha como passatempo o ato de contar moedas de ouro. Certa feita, por ter ajudado um parente de Baco, deus dos vinhedos e dos vinhos, Midas foi agraciado com o atendimento de qualquer pedido que fizesse. Mais que depressa, solicitou que tivesse o poder de transformar em ouro tudo o que tocasse. E foi atendido.
Exultante, começou a transformar as coisas que encontrava pelo caminho em metal precioso. Tocava em uma planta e ela virava ouro. Pegava uma pedra e tinha em suas mãos ouro maciço. Sua felicidade não tinha fim. Chegou a transformar em ouro todas as paredes do palácio em que vivia. Até que sentiu fome. Mas ao pegar um pedaço de pão, viu que ele se transformava em ouro e não podia ser comido. Tentou beber vinho, mas este escorria pela sua garganta como ouro derretido. Estava condenado à inanição.
Em desespero, correu ao encontro de Baco para implorar pelo fim do seu suplício. Ele deveria banhar-se nas águas do rio Pactolo, disse-lhe o deus benevolente. A água corrente teria o poder de livrar o rei de seus problemas. E assim foi feito. Midas voltou a ser o que era e foi por causa do seu banho que as areias às margens do rio tornaram-se douradas.
Em pleno século XXI, histórias da mitologia ainda podem ter muito a nos ensinar. Com a aprovação recente do novo Marco Legal do Saneamento, alguns governadores e prefeitos começam a se sentir como um verdadeiro Midas da pós-modernidade. E a privatização dos serviços de saneamento vem sendo apresentada como o novo “toque de Midas”, capaz de encher de ouro os cofres de seus palácios. Só que os tempos mudaram e a ambição tornou-se ainda maior que a do rei mitológico. O que se pretende agora é transformar a própria água em ouro.
A história da privatização dos serviços de saneamento não é recente e tampouco é privilégio de nossos governadores e prefeitos. Em diversas regiões do mundo experiências foram tentadas e quase todas foram malsucedidas. São inúmeros os casos de cancelamentos de contratos e reestatização de serviços. Mesmo em países com tradição fortemente liberal, como nos Estados Unidos e Inglaterra, os serviços de saneamento, em sua imensa maioria, continuam operados por órgãos públicos locais.
E a razão é muito simples. Tratar como mercadoria um serviço essencial com características de monopólio natural é como transformar água em ouro e excluir do acesso aos serviços milhões de cidadãos. Pela lógica do mercado e do monopólio, as tarifas sobem, a qualidade cai, os lucros das companhias aumentam e a insatisfação popular explode. Pior para os mais pobres, excluídos dos projetos rentáveis e condenados a conviver com a falta d’água e com o esgoto a céu aberto. É a mesma velha história, tantas vezes vista, que agora se apresenta como modernização.
O modelo brasileiro de saneamento historicamente prevê a ação coordenada das três esferas de governo. Cabe ao Município, que detém a titularidade do saneamento, a gestão dos sistemas, seja executando diretamente, constituindo empresas ou autarquias municipais, ou em conjunto com o Estado, quando os serviços são prestados por companhias estaduais. Ao Governo Federal cabe estabelecer as diretrizes gerais, bem como viabilizar recursos para a realização dos investimentos.
As companhias estaduais de saneamento tem sido parte fundamental desse sistema e muito tem contribuído para a melhora nos índices de atendimento, em geral, mesmo com muito ainda para atingir a universalização com serviços de qualidade. O modelo de negócios dessas companhias foi estruturado de maneira a estabelecer subsídios cruzados entre municípios, de forma que valores arrecadados em municípios maiores e mais ricos e, portanto, superavitários, sejam transferidos para municípios mais pobres, deficitários, viabilizando a operação e os investimentos, que não poderiam ser realizados se dependessem estritamente de uma arrecadação local. Essas transferências são fundamentais, principalmente nos estados em que os municípios apresentam grande desigualdade econômica.
Mas os modelos licitatórios apresentados ou em estudo não levam em conta essa lógica econômica. E, assim, a experiência privatista, que comprovadamente fracassou em tantos outros países, acaba por assumir, no Brasil, requintes de crueldade. Companhias são fatiadas em blocos de municípios, agrupando-se os superavitários e, portanto, lucrativos, que são licitados em lotes específicos, separados dos municípios e regiões mais pobres. Óbvio que trata-se de um grande negócio. É transformar saneamento em ouro. O rei Midas ficaria orgulhoso! O problema é o que vai acontecer com os municípios mais pobres, quando os recursos que seriam usados para operar e ampliar os seus sistemas forem parar nos cofres das grandes corporações internacionais que atuam no setor.
Nesses termos, o recente processo de privatização dos serviços na Região Metropolitana de Maceió, atingindo a Casal, companhia de saneamento do Estado de Alagoas, não deixa de ser emblemático, preconizando o que pode vir a acontecer em outros estados e revelando o quanto as grandes corporações estão dispostas a pagar por suas novas minas de ouro. A modelagem feita pelo BNDES resultou na transformação de mais de R$ 2 bilhões a serem pagos pelos usuários dos serviços em uma outorga que vai financiar a reestruturação do déficit do Estado. Vira ouro para as finanças públicas e deixa de ser aplicado em saneamento nos municípios pobres de Alagoas.
Mas, como vimos na história do pobre rei Midas, nem sempre vale a pena transformar tudo em ouro para encher os cofres do palácio. Saneamento é vida. E as pessoas sempre estarão dispostas a lutar pela vida, ao contrário do que pensam alguns de seus governantes. Todos nós sabemos que muito ainda precisa ser feito pela melhoria do saneamento no Brasil. Mas não será repetindo experiências fracassadas ou retirando dinheiro do sistema para garantir rentabilidade às operadoras privadas que se conseguirá êxito.
A título de conclusão, ou de alerta, a história do rei Midas não terminou com seu banho nas águas do rio Pactolo. Algum tempo depois, o impertinente monarca resolveu questionar o resultado de um concurso, vencido pelo poderoso deus Apolo. Este, indignado, deu a ele um par de enormes orelhas de burro. Até o fim dos seus dias, Midas costumava usar um turbante para tentar esconder suas orelhas. Sem sucesso. Por onde passava, tornava-se objeto de chacota e escárnio. Trágico destino para aquele que um dia acreditou que poderia transformar qualquer coisa em ouro.
[1] Antonio Carlos A. Lobão é professor de Economia da PUC-Campinas e Diretor do Centro de Estudos Avançados em Economia e Gestão Estratégica de Negócios.