Texto produzido no âmbito do Centro de Estudos do Saneamento Além do Domicílio (CESAD – iniciativa ONDAS e SMARH/UFMG)
Redação: Ricardo de Sousa Moretti
Contribuições: Fernanda Deister Moreira, Geyse A.C. Santos, Graça Maria Borges de Freitas, Gustavo Santa Cruz Santos, Maiara Macedo Silva, Paula Rafaela S. Fonseca, Washington Lima dos Santos.
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Aqueles que acreditam que é fundamental a realização dos direitos humanos à água e ao saneamento reconhecem a urgência imperiosa de avançar na direção do atendimento das necessidades básicas de saneamento nas esferas além do domicílio, o que inclui, entre suas múltiplas faces, o avanço na oferta de banheiros e bebedouros públicos.
Pode-se dizer que há quase um consenso sobre a necessidade de ampliar o número de banheiros e bebedouros públicos e a necessidade fica explícita quando se consideram as dezenas, às vezes centenas de milhares de pessoas que estão na rua, seja para morar ou em trabalhos que não contam com instalações para a higiene pessoal, e que são compelidas a situações constrangedoras na obtenção de água e acesso ao banheiro.
Com isso, os potenciais usuários sofrem restrições no consumo de água e no uso de banheiro com evidentes impactos na saúde pública. Há que se considerar também os riscos associados à micção e defecação a céu aberto, que são comuns face às condições de vulnerabilidade em que se encontram as pessoas em situação de rua, que frequentemente não encontram alternativa para suas necessidades fisiológicas. Além disso, há camadas de vulnerabilidade que se sobrepõem na vida na rua, seja por sexo, gênero, raça, alguma deficiência e/ou a idade da pessoa, que potencializam a violação do direito à água e ao saneamento quando inexistem esses serviços nos espaços públicos. Por fim, qualquer transeunte ou turista também é afetado pela falta de banheiros e água nas ruas levando à busca por soluções privadas – as quais dificilmente os grupos em situação de rua têm acesso.
Os dilemas começam quando se avança no debate de quem deve ficar responsável pelo serviço e quem deve arcar com seus custos, considerando a construção dos banheiros e bebedouros públicos, mas também, sua manutenção e operação.
De início, vamos refletir sobre a questão dos custos. A tendência inicial, bastante problemática, é considerar que o serviço e seus custos são de responsabilidade exclusiva do governo local. Esse pressuposto ajuda a explicar o caos em que nos encontramos, pois após a aprovação da Constituição de 1988, a esfera municipal passou a ter grandes responsabilidades em variadas frentes, mas essas não foram acompanhadas por uma adequada repartição das receitas tributárias entre os entes da federação.
A esfera federal, ficou, em 2021, com 52% dos tributos arrecadadoss, os 26 governos estaduais mais o distrito federal ficaram com 26% do total arrecadado e aos 5570 governos municipais restaram 22% do total (FRENTE NACIONAL DOS PREFEITOS, 2023). Ou seja, se for para avançar, não se pode considerar a possibilidade de deixar sozinho o governo local com mais essa responsabilidade. Outra possibilidade é que a própria prestadora dos serviços de água e esgotos, que recebe tarifas para esses serviços, arque com os custos, total ou parcialmente, dos banheiros e bebedouros públicos, mesmo que repasse para o valor da tarifa os gastos para sua realização. Nessas duas possibilidades, de serviços arcados pela municipalidade ou pela prestadora dos serviços de água e esgotamento, quem custeia é o contribuinte, quer através de tarifas (no caso, indiretamente através das tarifas de água e esgotos) ou através dos impostos que chegam à mão do governo local.
A grande dificuldade é que esses serviços não são usualmente incluídos entre as responsabilidades das prestadoras de serviços de água e esgotamento nos contratos entre o titular dos serviços (município) e as prestadoras. Essa questão advém da própria cultura do setor que considera como universalização a existência de redes disponíveis para todos os domicílios ocupados, e deixa para trás grupos que não estão em domicílios convencionais e espaços públicos. Vale lembrar que, para a população em situação de rua, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional para corrigir os serviços públicos para esse grupo, inclusive de água e saneamento.
Deve-se caminhar para que gradativamente a previsão da instalação e manutenção de banheiros e bebedouros públicos esteja explicitada nos contratos, quer através de aditamento dos contratos existentes (o que pode levar a reajuste das tarifas), seja por meio da inclusão dos serviços nos novos contratos, especialmente quando o serviço for prestado por empresas privadas.
Alternativas para viabilizar a construção e operação dos banheiros públicos vêm sendo buscadas, com respostas pouco satisfatórias até então. Pode ser citado como exemplo a tentativa de disponibilizar os equipamentos por empresas privadas, que receberiam como contrapartida o direito de colocar publicidade nos mobiliários, como foi tentado e ainda não viabilizado em larga escala em São Paulo. Ou, ainda, a tentativa de repassar a responsabilidade para estabelecimentos comerciais, que receberiam recursos municipais, desde que assegurado o acesso público aos banheiros.
Se for considerada a necessidade de aporte de recursos das esferas estaduais e federal para viabilizar os banheiros e bebedouros públicos, o grande desafio é encontrar mecanismos legais que permitam a transferência desses recursos para os municípios que se dispuserem a operar os serviços, dentro de certos parâmetros de qualidade. E aí entra-se no segundo grande desafio: quem deve executar, manter e operar os banheiros e bebedouros públicos e com qual padrão de qualidade? A quantidade de equipamentos necessários, sua localização e características do projeto ainda são um assunto sobre o qual há que se avançar. Não há diretrizes formais sobre esses serviços a nível federal e poucos municípios lançaram luz sobre características mínimas para esses mobiliários. Destacam-se ainda os desafios de concepção de projeto e gestão sociotécnica, para que se viabilizem banheiros e bebedouros públicos de fácil manutenção e operação e que sejam seguros e acessíveis.
Por fim, para que se efetivem avanços nesse campo, é necessário incluir, ouvir e sensibilizar a comunidade envolvida. Da mesma forma, parece ser estratégico resgatar e avaliar parcerias público-comunitárias assim como consultar pesquisadores e pesquisadoras que se debruçam sobre o tema e podem ter registros de experiências exitosas em variados cenários. Há de se considerar as demandas locais e diferentes possibilidades de gestão, incluindo-se aquela em que integrantes das comunidades organizadas possam manter e operar os banheiros e bebedouros públicos, recebendo recursos para isso.
Frente Nacional dos Prefeitos, Multicidades- Finanças dos Municípios no Brasil- 2023. Disponível em http://aequus.com.br/anuarios/multicidades_2023, consultado dia 16 de outubro de 2023.