Neste artigo, a Professora Vanessa Empinotti* e a Bacharela em Gestão de Políticas Públicas, Yumna Ghani,** examinam a décima medida proposta pelo ONDAS em Carta à Sociedade Brasileira a propósito da epidemia do COVID-19, que teve o endosso da Fiocruz e do Relator da ONU para os Direitos à Água e ao Saneamento:
10. assegurar informação ampla sobre os direitos à água e ao saneamento, destacando a prioridade de atendimento das populações vivendo em situações vulneráveis e a relação entre saneamento e saúde.
No dia 23 de março de 2020, o governo federal editou a Medida Provisória 928/2020 que flexibilizava o funcionamento da Lei de Acesso à Informação (LAI)[1] ao permitir que os prazos de resposta aos pedidos não fossem cumpridos durante a crise da Covid-19 e ao suspender a possibilidade de recursos no caso de negativa de resposta ou não atendimento da solicitação. Após ampla mobilização de organizações da sociedade civil[2], e a apresentação de uma ação de inconstitucionalidade pela OAB, os artigos da Medida Provisória que restringiam o direito à informação foram suspensos por decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF), o que resguardou o dever de absoluta publicidade e transparência da administração pública. A questão que surge é por que a restrição do acesso à informação foi uma das primeiras medidas tomadas perante a pandemia?
O direito à informação é componente fundamental da liberdade de expressão, e está respaldado em normas e padrões internacionais, como na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos que preconizam que todos os indivíduos têm o direito de buscar, receber e transmitir informações e ideias por qualquer meio e independente de fronteiras. Esse direito é assegurado internamente pelo artigo 5º da Constituição Federal de 1988 e regulamentado pela LAI.
No momento em que o mundo enfrenta uma pandemia em que uma das principais ações de prevenção é a higienização das mãos com água e sabão, se torna chave sabermos como garantir água em quantidade e qualidade nas nossas casas, no lugar de trabalho e em áreas públicas. E a garantia do acesso à água e da nossa segurança hídrica passa pelo acesso à informação. Perguntas como quando chegará a água nas residências, quando ocorrerão cortes no abastecimento de água, assim como quais serão as medidas emergenciais a serem adotadas para garantir o acesso à água para toda a população podem ser respondidas utilizando dispositivos da LAI.
Essas informações podem ser solicitadas às companhias responsáveis pelo abastecimento de água e aos órgãos de estado responsáveis pela orientação e gestão desses serviços por meio de pedidos de informação. Qualquer pessoa pode realizar esses pedidos através do Sistema de Informação ao Cidadão (SIC), podendo ser por meio eletrônico (e-SIC), presencial[3] e até por correspondência. A lei determina que o órgão responsável tem até 20 dias para fornecer a resposta ao pedido realizado com possibilidade de prorrogação por mais 10 dias. Ainda, caso a resposta do órgão não seja satisfatória o cidadão ou cidadã tem o direito de recorrer para que o pedido seja devidamente respondido, devendo o órgão se manifestar em até 5 dias após o recurso.
A LAI também orienta quanto às informações que devem ser disponibilizadas de forma ativa, ou seja, publicadas voluntariamente pelos órgãos responsáveis, independente de solicitação. Assim, diversas informações podem ser encontradas nos sistemas de informações disponibilizados pela Agência Nacional das Águas (ANA), como o Sistema de Informação sobre Recursos Hídricos (SNIRH) e também pelos sistemas de informação dos estados.
A importância de proteger e efetivar o direito à informação fica ainda mais evidente em um momento de crise de saúde global. Dados e informações confiáveis e precisas são indispensáveis para conscientização da população quanto aos riscos a que está exposta e quanto às medidas que devem ser adotadas para reduzir a probabilidade de contaminação. A ampla divulgação de informações sobre as políticas e ações adotadas pelos governos para lidar com a crise possibilita que haja uma melhor compreensão e cooperação da sociedade nas medidas de prevenção e garante o direito de participação pública informada no processo de tomada de decisão. Também contribui para a fiscalização das decisões públicas, uma vez que cientistas, jornalistas e diversos setores da sociedade civil podem avaliar, criticar e sugerir melhorias nas ações e políticas adotadas.
O direito à informação está intrinsecamente relacionado à participação social e na gestão da água se dá através da participação de representantes de vários setores da sociedade nos comitês de bacias hidrográficas e conselhos de recursos hídricos estaduais e nacional. A participação da sociedade na tomada de decisão, garantida pela Lei das Águas[4], foi conquistada na Constituição de 1988 e consolida a democracia participativa nas instituições do Estado brasileiro. Os desafios para aumentar a eficiência destas ferramentas de gestão e oportunidades de empoderamento pelo acesso à informação devem ser melhoradas por meio da disponibilização rápida de informações em formato acessível, com conteúdo compreensível e atualizado.
Nesse sentido, é fundamental que os governos assumam compromissos para expandir a transparência ativa, compartilhando com a população informações de interesse coletivo, e que garantam condições para que os servidores possam atender as demandas de acesso à informação de forma segura. Uma vez que entre as principais medidas de prevenção de contágio estão a higienização de espaços e objetos e lavar regularmente as mãos, informações relativas ao acesso à água tornam-se ainda mais relevantes para garantir que a população possa se proteger.
Por fim, o acesso à informação, a participação popular e a transparência na gestão dos recursos hídricos e no abastecimento de água são conquistas que devem ser defendidas e protegidas constantemente. Ao observar a tentativa de desmobilizar e enfraquecer as regulações que garantem o acesso à informação e a efetivação da LAI, fica evidente o risco da pandemia do novo coronavírus ou outras crises se tornarem pretextos para restringir os canais de diálogo e acompanhamento do Estado brasileiro pela população, prática chave no fortalecimento da democracia brasileira e ainda mais necessária para superar os problemas no horizonte. O acesso à água e o acesso à informação deve ser contínuo e universal, principalmente em períodos de crise. Só vamos superar a pandemia, com transparência, participação social e efetivação de direitos.
[1] Lei Federal nº 12.527/2011.
[2] https://artigo19.org/blog/2020/03/24/nota-conjunta-so-venceremos-a-pandemia-com-transparencia/
[3] Considerando a necessidade de distanciamento social para frear a propagação do coronavírus, no momento, os pedidos devem ser realizados preferencialmente por meio eletrônico. Caso não seja possível, recomendamos se certificar se o órgão está aberto para atendimento público
[4] Lei Federal nº 9.433/1997 que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos.
* Vanessa Empinotti é Engenheira Agrônoma, Mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Doutora em Geografia pela University of Colorado, Boulder – EUA, Professora da Universidade Federal do ABC – UFABC. Coordena o Grupo de Pesquisa Ecologia Política, Planejamento e Território – eco.t do Laboratório de Justiça Territorial – LabJUTA – UFABC.
** Yumna Ghani é Bacharela em Gestão de Políticas Públicas pela USP e pós graduada em Política e Relações Internacionais pela FESPSP. Integra o Programa de Acesso à Informação da ARTIGO 19.
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