É POSSÍVEL SUPOR QUE SOMENTE APÓS A VENDA SERÁ RETOMADO O ENQUADRAMENTO DAS FAMÍLIAS EM UM BENEFÍCIO AO QUAL ELAS JÁ TÊM DIREITO
Autores: Edson Aparecido Silva e Amauri Pollachi*
Artigo originalmente publicado pelo site Carta Capital
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A população paulista está prestes a sofrer a mais escandalosa ação contra o patrimônio público praticada por um governante ao longo da sua história: trata-se da privatização da Sabesp, a maior empresa prestadora de serviços de saneamento das Américas. Esse descalabro acontecerá mediante a transferência do controle acionário do estado de São Paulo para empresas privadas cujo interesse será, obviamente, maximizar a transferência de lucros a seus acionistas em detrimento da garantia de acesso à água e ao esgotamento sanitário para os mais necessitados, que vivem em favelas e comunidades urbanas ou isoladas.
Segundo o noticiário, a perspectiva de obter elevado retorno financeiro de um mercado cativo de 31 milhões de pessoas até 2060 desperta forte interesse de grandes grupos como a AEGEA e seus acionistas Itaúsa, Fundo Soberano de Cingapura (GIC), além de empresas como Votorantim, Equatorial, Cosan, J&F e a francesa Veolia, uma das maiores empresas de saneamento do mundo.
Todos os argumentos do governo Tarcísio de Freitas utilizados para justificar a privatização foram desmontados um a um por entidades representantes de trabalhadores e técnicos do saneamento, por parlamentares federais, estaduais e municipais, além do Tribunal de Contas de Município. Contudo, o governo estadual se faz surdo às contestações e segue em velocidade máxima na sua sede de fazer o “negócio” Sabesp.
Empresa com 50 anos de vida, a Sabesp é superavitária há 30 anos, teve lucro líquido de 3,5 bilhões de reais em 2023, investiu em média 5,3 bilhões por ano na última década e seu valor de mercado é avaliado em 57 bilhões de reais. Conforme seu Relatório de Sustentabilidade 2022, os índices de cobertura de abastecimento de água e de coleta de esgotos são, respectivamente, de 98% e de 92%, e 83% das ligações estão conectadas a tratamento de esgotos. São os índices mais elevados do Brasil para empresas regionais, alcançados por meio de investimentos financiados à empresa, principalmente por empréstimos de FGTS e organismos de fomento internacionais, pagos com as tarifas arrecadadas da população ao longo da história da empresa, agora prestes a ser entregue ao capital privado. Se esse esbulho for concluído conforme planejado pelo governo Tarcisío de Freitas, os mais pobres sofrerão as piores consequências. O curso do “negócio” Sabesp já está penalizando essa população.
Um aspecto intrinsecamente ligado ao processo de privatização tem passado despercebido: o atraso no acesso à tarifa social e vulnerável a que milhões de famílias têm direito. Por que isso está acontecendo e como se relaciona com a privatização?
Em 2021, após processos de consultas e audiências públicas, a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp) aprovou uma deliberação que determinou à Sabesp incluir todos os usuários dos serviços prestados pela empresa com renda familiar por pessoa de até meio salário mínimo e inscritos no Cadastro Único (CadÚnico) do governo federal nas categorias de tarifas vulnerável ou social. O prazo para implantação dessa medida para todos os possíveis beneficiários foi fixado em setembro de 2023.
Conforme dados obtidos junto à Sabesp e ao CadÚnico em dezembro de 2023, nos 375 municípios com serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário prestados pela Sabesp, 560.739 famílias estavam sendo atendidas com tarifa social, enquanto o CadÚnico trazia 859.264 famílias cadastradas nessa faixa de renda, que dá acesso a essa modalidade tarifária. Isso implica que 298.525 famílias ou 811.988 pessoas podem estar excluídas desse direito. Também em dezembro de 2023, 403.981 famílias estavam atendidas com tarifa vulnerável, enquanto o CadÚnico trazia 1.803.568 famílias cadastradas nas faixas de renda Pobreza 1 e 2, de 0 a 218 reais, que correspondem a essa modalidade tarifária. Logo, 1.399.587 famílias ou 3.806.877 pessoas podem estar sonegadas do acesso a esse direito.
Quando consideramos o total de pessoas excluídas do direito de acesso às tarifas reduzidas, chegamos a mais de 4,6 milhões de pessoas. Embora todos os municípios com serviços da Sabesp possuam famílias inscritas no CadÚnico do governo federal, em 24 municípios não há sequer uma família beneficiada com a tarifa para vulneráveis e em 42 municípios nenhuma pessoa tem tarifa social.
A tabela a seguir sintetiza a situação da população nos municípios atendidos pela Sabesp:
Fonte: Sistema Integrado de Informações ao Cidadão – SIC em16/04/2024 – Protocolo nº31970247234 (famílias atendidas com tarifa social e vulnerável) e famílias inscritas no CadÚnico – base janeiro de 2024
Para uma noção do impacto das tarifas reduzidas na renda familiar, mostramos o valor da conta d’água para o consumo mensal de 15m³ de uma moradia na cidade de São Paulo, com abastecimento de água e coleta de esgoto, a preços de abril/2024:
Fonte: Autores, a partir do Comunicado 01/2023. Disponível
Isto é, para uma família com renda por pessoa abaixo de 218 reais, a economia de 101,24 reais na conta d’água faz uma enorme diferença.
No município de São Paulo, onde a Sabesp obtém 45% de sua receita, são beneficiadas 361.269 famílias com a tarifa social e 213.622 com a vulnerável, enquanto o CadÚnico aponta 348.918 famílias em condições para receber a tarifa social e 676.088 potenciais beneficiários de tarifa vulnerável nas faixas de pobreza 1 e 2:
Fontes: Sistema Integrado deS Informações ao Cidadão – SIC em16/04/2024 – Protocolonº31970247234(famílias atendidas com tarifa social e vulnerável) e famílias inscritas no CadÚnico – base janeiro de 2024
Observem que a quantidade de famílias com tarifa social é maior do que o número apontado pelo CadÚnico, pois há um contingente nesse grupo que deveria estar enquadrado na tarifa vulnerável, conforme mostra a tabela anterior. Portanto, na capital paulista, podem estar sem o benefício de tarifa vulnerável no mínimo 462.466 famílias.
Na cidade de São Paulo há mais de 1,2 milhão de pessoas, ou 11% de sua população, que não têm acesso à tarifa reduzida em função de sua condição social de pobreza e baixa renda. É um grande prejuízo para quem paga por sua conta d’água muito mais do que deveria pagar.
O impacto da negação de acesso a esses benefícios sobre o orçamento doméstico de uma família em condição de pobreza pode inviabilizar o consumo de água por meio da rede de abastecimento da Sabesp, forçando-a a procurar fontes alternativas que, via de regra, estão contaminadas e trazem mais doenças e mais miséria.
O fato aqui demonstrado joga luz sobre uma hipótese que não pode ser descartada, pois quando se iniciou o processo de privatização da Sabesp também foi sensivelmente reduzida a aplicação da deliberação de 2021 e descumprido o prazo de setembro de 2023, o que beneficiaria uma expressiva quantidade de famílias antes até da aprovação da lei que autorizou a venda da Sabesp.
Ao mesmo tempo, a narrativa do governo estadual reforça a redução de tarifa para a população vulnerável como o principal benefício da privatização. Portanto, é possível ligar os pontos e supor que somente após a venda da Sabesp será retomado – com afinco – o enquadramento das famílias em um benefício ao qual elas têm direito há anos.
A falta de garantia da acessibilidade econômica a serviços públicos de água e esgoto caracteriza-se como flagrante violação dos Direitos Humanos à Água, ao Esgotamento Sanitário e ao efetivo direito à cidade.
Essa causa não é só do saneamento. Ela é de todos os movimentos sociais e populares, inclusive de moradia, saúde, meio ambiente e direitos humanos. É preciso que todos somem forças na luta pela garantia de acesso a um direito postergado pelo jogo da privatização da Sabesp.
*Edson Aparecido Silva – Sociólogo, Especializado em Meio Ambiente e Sociedade, Mestre em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC, Assessor de Saneamento da FNU e Secretário Executivo do ONDAS e colaborador da Rede BrCidades
Amauri Pollachi – Mestre em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC, graduado em Engenharia e História pela USP, conselheiro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS) e diretor da Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp