Texto da interação ONDAS-Privaqua*
____________________________
PRIMEIROS CAPÍTULOS DO PROCESSO DE REGIONALIZAÇÃO DO SANEAMENTO NO BRASIL
autor: José Irivaldo Alves O. Silva*
A essência da regionalização está em induzir a provisão de serviços via agrupamentos de municípios ao invés da prestação dos serviços por municípios. A Lei n. 14.026/2020 a posiciona como uma espécie de ato preparatório fundamental para o cumprimento do novo marco do saneamento, com vistas à geração de ganhos de escala e à garantia da universalização e da viabilidade técnica e econômico-financeira dos serviços. Portanto, a regionalização pode ser considerada como um dos principais pilares desse marco regulatório do setor, prometendo acesso a todos e que os blocos serão atrativos para os prestadores. A lei estabelece que a prestação regionalizada é a modalidade integrada de um ou mais componentes dos serviços públicos de saneamento básico em determinada região cujo território abranja mais de um município. A lei estabelece as seguintes modalidades de prestação regionalizada do saneamento:
a) região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião: “unidade instituída pelos Estados mediante lei complementar, de acordo com o 3º do art. 25 da Constituição Federal, composta de agrupamento de Municípios limítrofes e instituída nos termos da Lei nº 13.089, de 12 de janeiro de 2015 (Estatuto da Metrópole). Nesse modelo, a adesão é compulsória;”
b) unidade regional de saneamento básico: “unidade instituída pelos Estados mediante lei ordinária, constituída pelo agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes, para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, ou para dar viabilidade econômica e técnica aos Municípios menos favorecidos. Nesse modelo a adesão municipal não seria compulsória;”
c) bloco de referência: “agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes, estabelecido pela União nos termos do § 3º do art. 52 desta Lei e formalmente criado por meio de gestão associada voluntária dos titulares.”
Chegado o prazo final, de julho de 2021, para que os Estados estabelecessem o desenho de sua regionalização por lei, 17 unidades federativas entregaram um modelo para implementação. O Quadro 1 apresenta os estados e as respectivas normas aprovadas.
Quadro 1 – Regionalizações aprovados com informação pública
Fonte: Elaborado no âmbito do projeto Privaqua pelo autor. O Quadro 1 foi elaborado com base nas informações disponibilizadas pelas assembléias legislativas dos estados, bem como pela administração dos governos estaduais.
Os textos das leis são muito semelhantes, principalmente na parte que aborda o modelo de governança. São baseadas na criação de microrregiões, sendo cada uma delas estabelecida como entidade autárquica intergovernamental. Para além dessa semelhança, observam-se algumas tendências entre as propostas aprovadas, quais sejam:
- Baixa participação da sociedade no processo de elaboração dos arranjos regionais;
- Baixa participação dos titulares (municípios);
- Praticamente todos os estados do Nordeste já cumpriram o requisito da lei, mesmo tendo governos que teoricamente fazem oposição ao governo central, que articulou a proposta de lei aprovada em 2020.
Em particular, é preocupante a baixa participação municipal no processo de formação do modelo de regionalização nos estados, restringindo-se as discussões a consultas virtuais e à discussão dos projetos nas assembléias legislativas, como verificado virtualmente nos sites de notícias dos estados. Ressalte-se que isso é problemático, na medida em que os municípios são titulares dos serviços locais de saneamento e que a partir do novo marco legal atuarão nas microrregiões como protagonistas, algo novo para muitos que tinham nas companhias estaduais a fonte de fornecimentos dos serviços de saneamento, sendo que, certamente, pode faltar capacidade e preparo para lidar com essa grande responsabilidade. Estabelecer uma microrregião de saneamento implicará muito mais do que a mera formalização de uma lei. Está-se falando de compartilhamento de decisões, cessão de parcela de poder dos municípios em prol de uma gestão conjunta do saneamento. Isso envolve muito mais do que o cumprimento de um prazo legal para a elaboração de uma obrigação imposta no novo marco do saneamento.
Algumas leis do Quadro 1 deixam claro em seu texto que os municípios poderão decidir se vão aderir ao modelo, preservando a liberdade e autonomia federativa estabelecida na Constituição Federal. Textualmente o art. 8º-A da lei n. 14.026/2020 assim preceitua: “É facultativa a adesão dos titulares dos serviços públicos de saneamento de interesse local às estruturas das formas de prestação regionalizada”. Em tese, os municípios precisam expressar interesse em participar desse arranjo.
Ocorre que o art. 25, § 3º da Constituição Federal estabelece a possibilidade de municípios limítrofes formarem regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregião, o que foi regulamentado pelo Estatuto da Metrópole, lei n. 13.089/2015, que dispõe que, depois de todas as etapas de institucionalização da região metropolitana, os municípios nessa formação territorial deverão estar integrados às ações conjuntas desenvolvidas nesse espaço. O modelo federativo brasileiro inclui o município como menor parte político-administrativa do sistema, o que implica dizer que deve haver autonomia administrativo-política para autogerir-se, o que inclui a provisão dos serviços públicos como o saneamento (CF, art. 30, inc. V), cuja titularidade ficou mais clara com a lei 14.026/2020. Entretanto, é preciso atentar para o que estabelece o art. 8º desse diploma legal, que estipula que além do município e o Distrito Federal poderem ser titulares em caso de interesse local, também poderão ser:
- os estados em conjunto com os municípios, em caso de compartilhamento efetivo de instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, instituídas por lei complementar estadual, no caso de interesse comum.
- a gestão associada, mediante consórcio público ou convênio de cooperação, nos termos do art. 241 da Constituição Federal.
Segundo o Quadro 1, a maior parte dos estados optou pela formalização de microrregiões, uma das modalidades territoriais estabelecidas pela Constituição e regulamentadas pelo estatuto da metrópole. Porém, importante salientar que a lei 13.089/2015 vai ser aplicada no que couber tanto em relação às microrregiões estabelecidas, como às unidades regionais de saneamento básico, essa última inserida pelo novo marco do saneamento (art. 1º, §1º, incs. I e III). Porém, a partir da análise do estatuto da metrópole, esse parece preconizar ações conjuntas entre municípios limítrofes, ou seja, que haja uma relação comunitária forte de modo que se possa operacionalizar serviços públicos comuns. Entretanto, quando se analisam preliminarmente os marcos normativos de regionalização aprovados recentemente pelos estados, verifica-se o caso do Rio de Janeiro que fracionou, inicialmente, o Estado em 4 blocos, todos relacionados com a região metropolitana do Rio de Janeiro, e não necessariamente limítrofes, e estabelecidos por resolução. O caso de Santa Catarina, também, merece uma análise mais cuidadosa, visto que o modelo aprovado por decreto segue a divisão em 11 regiões metropolitanas, sendo preciso compreender em que medida essas regiões são efetivamente metropolitanas. Enfim, isso resulta que o modelo estabelecido de regionalização pode reproduzir os problemas e vícios já existentes nas regiões metropolitanas instituídas formalmente, tais como falta de efetividade de cooperação, ausência de planejamento integrado, enfim, falta de uma governança regional de fato.
A ideia da regionalização não é exatamente nova no Brasil. O princípio da provisão em nível regional foi a base do modelo implantado na época do PLANASA (Plano Nacional de Saneamento) durante o regime militar, via estímulo à criação das Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESBs). As CESBs adquiriram grande capilaridade, usando o mecanismo do subsídio cruzado para prover serviços em diversos municípios. Os serviços eram prestados pelas estatais para diversos municípios e firmando contratos de concessão, inicialmente, e contratos de programa mais recentemente. No modelo atual, o subsídio cruzado deixa de existir, e as CESBs passam a concorrer com as empresas privadas em processos licitatórios. Além disso, hoje tem-se uma complexidade regulatória muito maior, com mais de 60 entidades de regulação no país[1], sem falar que a Agência Nacional de Águas e Saneamento passa a centralizar a normatização de referência para o setor, numa tentativa de harmonização regulatória.
Mas é importante destacar que à época do PLANASA a regionalização seria fundada em recursos públicos, o que muda com o atual marco regulatório que foca na atração de recursos privados e no incentivo ao aumento da participação privada no setor; bem como também já era preconizada uma aglomeração de municípios já prevista no modelo federativo brasileiro – os Estados – e não na criação de nova estrutura para a regionalização. Um grande desafio é não repassar ao consumidor tarifas altas que agora não serão mais complementadas por recursos públicos. Se antes as empresas reclamavam da insuficiência de recursos provenientes de tarifas e de investimentos públicos, agora a fonte será essencialmente a tarifa, o que certamente onerará o consumidor. O novo marco do saneamento praticamente obriga, implicitamente, os municípios a se adequarem às prestadoras das microrregiões, mesmo que em algumas leis estaduais a adesão facultativa esteja estabelecida. Por fim, o grande desafio, assim parece, que a regionalização enfrentará será justamente a implementação de uma efetivo planejamento regional, considerando um contexto de país que tem pouca capacidade de planejar regionalmente.
A eficácia desses novos arranjos só será observada depois de sua implementação efetiva, podendo-se constatar de fato quais as finalidades que nortearam sua criação, seja para a prestação de um serviço efetivamente orientado para a população, universal e de qualidade ou um serviço cada vez mais inacessível aos mais vulneráveis, seletivo, baseado no lucro e sem participação da sociedade civil. Acompanhemos os próximos capítulos!
[1] https://www.ana.gov.br/saneamento/agencias-reguladoras-subnacionais
*José Irivaldo A. O. Silva – Professor Adjunto da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG – Unidade Acadêmica de Gestão Pública – UAGESP; Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas – UFPB; Professor do Mestrado Profissional em Gestão e Regulação dos Recursos Hídricos – UFCG; Professor no Mestrado Profissional em Administração Pública – UFCG; Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2, CNPq
* Privaqua é um projeto de pesquisa que busca entender o impacto da privatização dos serviços de água e saneamento nos direitos humanos. Regularmente, o site do ONDAS publica notas do Privaqua de forma a dar transparência ao projeto e compartilhar alguns de seus achados preliminares.
➡️ Clique aqui e leia todos os textos já publicados da interação ONDAS-Privaqua
📝 Interações, contribuições e sugestões são bem-vindas. Deixe seu comentário no final desta página.
Certamente, se percebe nessa imposição do Marco, uma demandada da água e saneamento para o setor privado com um agravante de abertura de recursos públicos para o setor privado investir. O artigo preconiza o histórico de investimentos para o setor durante o regime militar com o PLANASA, como sugestão poderia ser colocado um pouco sobre o que o governo federal depois desse período investiu em saneamento, sabemos que os investimentos depois desse período foi ínfimo, contribuindo para uma precarização dos serviços públicos no setor de saneamento e água. A explanação do recorte temporal de desinvestimento precisa ser colocada para que as pessoas entendam que o que a união destinou em seu orçamento para o saneamento após o regime militar e o PLANASA nunca foi suficiente para a sua sobrevivência.