ONDAS – Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento

ONDAS – Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento

Quando o regulador se opõe à universalização: o caso da tarifa social de água em MG

Alex M. S. Aguiar[1]

Em reunião transmitida em canal da internet na data de 24/03 passada[2], a diretoria da Agência Reguladora dos Serviços de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário de Minas Gerais (ARSAE), deu mostras de que haver regulação, por si só, é insuficiente para fazer os serviços de saneamento caminharem em direção à universalização do acesso. Ao contrário, como mostra esse episódio, sem controle externo o regulador pode se tornar um obstáculo aos avanços nesse sentido.

No processo de revisão tarifária da Copasa, a equipe técnica da ARSAE desenvolveu um estudo importante, já apontado em artigo disponível na página do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento – ONDAS[3], justificado pela preocupação de que a baixa capacidade de pagamento das parcelas da população em situação de Extrema Pobreza e de Pobreza (renda mensal per capita de até de R$89 e R$178, respectivamente) obstruía seu acesso aos serviços.

Esse estudo propunha a divisão da categoria beneficiada pela tarifa social dos serviços (residencial social) em duas: a primeira abrangeria os usuários classificados como integrantes de famílias em situação de Extrema Pobreza e de Pobreza; e a segunda contemplaria os usuários integrantes de famílias classificadas entre as situações de Pobreza e de Baixa Renda (renda mensal per capita entre R$178 e meio salário-mínimo). A proposta consistia em ofertar desconto tarifário maior à primeira categoria, cujos usuários, mesmo beneficiados com a tarifa social, apresentam um comprometimento de renda em níveis capazes de impedir o acesso aos serviços, impondo riscos à saúde e à qualidade de vida destes usuários. Em resumo, a proposta estudada reconhecia a necessidade de um olhar diferenciado dirigido aos mais pobres dentre os pobres, buscando garantir a eles os direitos humanos fundamentais de acesso à água e ao saneamento, reconhecidos pela ONU, além de buscar também não comprometer o acesso aos demais direitos humanos, tais como alimentação, moradia e saúde.

A proposta foi submetida a um período de consulta pública, fase consolidada em audiência pública realizada na data de 28/10/2020, e reestudada pela equipe técnica da ARSAE, considerando as contribuições recebidas. Finalmente, a proposta foi concluída e então encaminhada para apreciação da diretoria daquela agência na reunião de 24/03/2021. Na apresentação à diretoria, a equipe técnica da ARSAE detalhou a proposta, discorrendo sobre as justificativas, as metodologias empregadas e apontando os resultados obtidos, inclusive com a análise do impacto tarifário, concluindo como mínima a consequência financeira às demais categorias de consumidores.

Ao fim da explanação, tomou a palavra o diretor geral da ARSAE, intercedendo na proposta a ser votada, fazendo uso de argumentos absolutamente hipotéticos para refutar o encaminhamento original de sua equipe técnica. Assim, defendeu a imposição da limitação do consumo para aplicação do benefício da tarifa social, limitação essa hoje inexistente, argumentando sem apresentar quaisquer comprovações que sustentassem sua fala:

“Infelizmente a gente tem pessoas que acabam atrapalhando a tarifa social, por eventualmente eh… eu não vou falar vender, mas dividir essa água mais barata, né, de alguma forma. Então, eu acho extremamente importante ter essa limitação.”

Refutou a ampliação do desconto na tarifa social para os usuários classificados como Extrema Pobreza e Pobreza, a despeito do baixo impacto tarifário apontado no estudo da equipe técnica, argumentando que:

Apesar da proposta de duas tarifas sociais ser bastante justa e interessante, especialmente no sentido de alcançar a capacidade de renda, eu entendo que esse não é o momento para isso. Nós estamos vivendo uma mudança da legislação do saneamento, nós estamos exatamente no meio dela, acabou (sic) de serem votados os vetos, né, … estamos em um ambiente em que a gente quer é concorrência, né, e pra haver concorrência a gente precisa deixar menos travas para as empresas, e especialmente, entendo que estamos entrando em uma época em que a liberdade vai falar mais alto que o coletivismo, no que diz respeito ao saneamento básico.”

“É compreensível uma parte da sua tarifa, você que não é tarifa social, é compreensível que uma parte dela sirva para cobrir esse desconto daqueles mais necessitados… mas você começar a criar níveis é perigoso. Se você cria níveis dentro da tarifa social, e esses níveis existem, a área técnica nos mostrou que existem, existem os extremamente pobres, os pobres e os baixa renda, mas existem também níveis fora da tarifa social. Existe aquele cara fora da tarifa social que tem um salário de cinco mil reais, e existe aquele que tem um salário de dez (mil reais), que é o dobro! E eles vão pagar a mesma coisa?

“Entendo que devemos manter apenas um nível (da tarifa social), que já é o bastante para separar as grandes diferenças, né, sob o risco da gente acabar travando muito, burocratizando muito, e inviabilizando a real justiça da questão, uma vez que a gente vai escalonar dentro de um grupo e fora do grupo não, e no final todo mundo vai acabar pagando mais, e isso vai por consequência aumentar, por mais que seja pouco, você (o representante da equipe técnica) falou que são números absolutos pouquíssimos (sic).”

Assim, o diretor geral encaminhou para votação da diretoria uma proposta diversa daquela originalmente construída pela equipe técnica daquela agência, e que foi acatada com o voto dos dois outros diretores, que optaram por seguir o exposto pelo diretor geral. Com isso, a diretoria da ARSAE rejeitou não apenas a proposição oriunda do empenho da equipe técnica daquela agência e dos que apresentaram contribuições a essa proposta no processo de consulta pública. Rejeitou, também, o exercício da sensibilidade daqueles profissionais e da própria instituição em reconhecer a modicidade dos preços, um dos princípios dos direitos humanos de acesso à água e ao saneamento, como um elemento necessário de ser observado na busca pela universalização dos serviços de saneamento.

A opção de priorizar “não criar travas” às empresas se deu em detrimento de buscar assegurar o acesso das parcelas mais vulneráveis economicamente da população aos serviços – necessidade identificada pela equipe técnica da própria agência. Os dados do CECAD[4] mostram que apenas em Belo Horizonte as famílias atendidas pela rede geral de abastecimento de água e cuja renda total é inferior a 1 salário-mínimo passaram de 112 mil em fevereiro de 2020 para mais de 120 mil em fevereiro de 2021. O crescimento de cerca de 7% das famílias em vulnerabilidade econômica neste último ano corrobora a preocupação da equipe técnica da ARSAE.

Ao argumentar “não ser este o momento” para adoção da proposta de sua equipe técnica, a diretoria da ARSAE ignorou a grave situação enfrentada pela população, em especial por aqueles em situação de vulnerabilidade, em virtude da pandemia da COVID-19 e da crise econômica que avança no país. Não haveria, portanto, momento mais apropriado para se adotar uma medida que possibilite o acesso à água e ao saneamento, serviços reconhecidos como essenciais para prevenir a contaminação pela doença e, com isso, salvar vidas.

A decisão da diretoria da ARSAE, fundamentada em argumentos desprovidos de quaisquer embasamentos técnicos e contrariando as conclusões de sua equipe técnica, aponta para uma perigosa falta de isenção do regulador, situação que mereceu um alerta em um compêndio produzido pelo Tribunal de Contas da União[5]:

A independência das agências, por sua vez, representa maior possibilidade de captura, seja pelo ente regulado, seja por grupos específicos de consumidores, em detrimento dos princípios regulatórios de equidade, eficiência produtiva e eficiência alocativa.”

A conduta da diretoria da ARSAE no episódio descrito precisa ser conhecida e analisada por todas as instituições que exerçam algum controle social da regulação, aí incluídos tribunal de contas, ministério público e mesmo a Assembleia Legislativa do estado. No mínimo, a diretoria da ARSAE deveria ser convidada a comparecer a estas instituições para explicar sua negativa ante as conclusões de sua equipe técnica e, também, comprovar e detalhar alguns dos argumentos por ela utilizados, como por exemplo:

  • apontar os registros e a significância estatística dos beneficiados pela tarifa social que vendem ou distribuem a água, argumento utilizado para justificar a limitação do volume ao qual será aplicada a tarifa social;
  • a opção por prevenir “travas às empresas”, amparando-se em um momento de alterações dos instrumentos legais do setor de saneamento, em detrimento da adoção de uma solução estudada e proposta pela equipe técnica da própria agência e que objetivava assegurar o acesso aos serviços à parcela da população em situação de maior vulnerabilidade financeira, situação essa extremamente agravada pelas crises sanitária e econômica que vivenciamos.

Sem o exercício do controle social, prevenindo este tipo de atuação do regulador, teme-se pelo fortalecimento de um ambiente incompatível com o objetivo de universalizar os serviços de saneamento em nosso estado, no qual a prioridade dada aos regulados irá, certamente, se mostrar um obstáculo impeditivo ao alcance desse objetivo – que é de todos.

[1] Engenheiro Civil e Mestre em Saneamento pela UFMG, foi diretor técnico da Copasa. Atualmente é dirigente da H&A Saneamento e membro do ONDAS.

[2] Disponível em 08/04/2021 no endereço https://www.youtube.com/watch?v=b0pEl-paPqA

[3] Aguiar, A.M.S. (2020). Tarifa Social e o Direito Humano de Acesso à Água: o caso de Minas Gerais. Disponível no endereço eletrônico https://ondasbrasil.org/tarifa-social-e-o-direito-humano-de-acesso-a-agua-o-caso-de-minas-gerais/

[4] CECAD – Consulta, Seleção e Extração de Informações do CadÚnico. Disponível no endereço eletrônico da WEB https://cecad.cidadania.gov.br/sobre.php

[5] Tribunal de Contas da União (2008). Regulação de serviços públicos e controle externo. Tribunal de Contas da União. – Brasília : TCU, Secretaria de Fiscalização de Desestatização, 2008. 496 p.

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