Texto da interação ONDAS-Privaqua*
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RELAÇÃO ESPACIAL ENTRE COVID-19 E O ACESSO À ÁGUA E AO ESGOTAMENTO SANITÁRIO NA REGIÃO METROPOLITANA DE BELO HORIZONTE
Davi Madureira Victral [1]
Demétrius Rodrigues de Freitas Ferreira 2
O acesso ao serviço de água e ao de esgotamento sanitário é considerado medida estratégica para mitigação e prevenção de casos de Covid-19 (MUSHI; SHAO, 2020; WHO, 2020). Desde 2010, o acesso universal e irrestrito a esses serviços é considerado direito humano essencial pela Assembleia Geral da ONU. Entretanto, no Brasil, cerca de 35 milhões de brasileiros não possuem abastecimento de água potável (16% da população) e aproximadamente 100 milhões (46% da população) ainda não dispõem de esgotamento sanitário (SNIS, 2019). Em paralelo à não universalização dos serviços de saneamento, o Brasil também é um dos países mais impactados pela Covid-19.
Simultaneamente à discussão sobre a importância do acesso à água e ao esgotamento sanitário como direitos humanos e seu papel na promoção da saúde coletiva, em julho de 2020, durante a escalada de casos e óbitos por Covid-19, o Brasil adotou o novo marco regulatório do saneamento (Lei Federal n°14.026), que incentiva o aprofundamento da participação privada na gestão destes serviços.
A posição adotada pelo governo federal em plena pandemia, de incentivar fortemente a gestão privada sob o pretexto da universalização, vai na contramão da tendência mundial de reestatização. A experiência internacional sobre a gestão privada dos serviços de saneamento sumariza um conjunto de argumentos que advertem sobre seus riscos: aumento de tarifas, falta de transparência financeira, subinvestimento, frequentes litígios judiciais sobre custos operacionais e baixa qualidade na prestação dos serviços (KISHIMOTO, PETITJEAN e STEINFORT, 2017).
Portanto, no atual momento, de grave crise sanitária no Brasil, em um contexto de decisões políticas sem base em evidências sólidas, existem chances significativas de agravamento da precarização dos serviços de saneamento, majoritariamente prestados por empresas públicas já consolidadas. Com o objetivo de contribuir para o debate sobre a importância do acesso à água e ao esgotamento sanitário como direitos humanos fundamentais e sobre a privatização desses serviços públicos, este texto ilustra a análise do grau de associação espacial entre os indicadores de acesso à água e ao esgotamento sanitário e os números de óbitos pela Covid-19 na Região Metropolitana e no Colar Metropolitano de Belo Horizonte – MG.
A região de estudo compreende 50 municípios mineiros com uma população total de aproximadamente seis milhões de habitantes (IBGE, 2021). A RMBH e o Colar Metropolitano refletem uma área de influência econômica, social e política da capital mineira, tendo sido criada por lei complementar no ano de 1973 a partir da política de regionalização da prestação de serviços públicos, visando ampliar questões de governança local aos municípios vizinhos afetados.
A população da RMBH e Colar, em seu conjunto, possui elevada cobertura por serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário em relação à média nacional, com 97% dos domicílios com acesso ao abastecimento de água e 87% com acesso ao esgotamento sanitário (SNIS, 2019). Porém, observar a RMBH e Colar como uma unidade pode esconder grandes discrepâncias de acesso a esses serviços. Nahas et al. (2019) apontam, em uma análise por municípios da região, em 2010, que a adequação do acesso aos serviços de abastecimento de água variou entre 77% em Jaboticatubas e 98% em Florestal, Contagem e Belo Horizonte enquanto os valores do acesso ao serviço de esgotamento sanitário variaram entre 1% em Confins e 96% em Belo Horizonte, por exemplo.
Com base nessas informações, foram realizadas análises de associação espacial buscando identificar possíveis associações entre municípios vizinhos que poderiam refletir desigualdades no acesso aos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário e o número de óbitos por Covid-19. Para tanto, foram empregados Índices de Moran Local, que quantificam o grau de associação espacial entre os municípios da amostra, para as variáveis de porcentagem de rede de água e de esgotamento sanitário do SNIS (2019), bem como os dados de óbitos por Covid-19 por mil habitantes de cada município da área de estudo até última semana epidemiológica de 2020.
A Figura 1 ilustra a análise de associação espacial para os dados de óbitos por Covid-19 por mil habitantes na última semana epidemiológica de 2020. É possível observar três agrupamentos de municípios com alto índice de óbitos, o primeiro na região Norte – Taquaraçu de Minas e Nova União –, o segundo na região Sul – Belo Vale, Bonfim e Rio Manso – e o terceiro na região Oeste – Fortuna de Minas e São José da Varginha. Estas três regiões são apontadas também como agrupamentos de baixo acesso à água e ao esgotamento sanitário, como podemos observar nas Figuras 2 e 3, que mostram os resultados da análise de associação espacial dos dados de acesso ao abastecimento de água e ao esgotamento sanitário. É possível observar uma associação espacial entre os déficits no acesso a esses serviços e uma predominância dos óbitos pela Covid-19 na RMBH e Colar Metropolitano.
Figura 1 – Índice de Moran Local para o número de óbitos da última semana epidemiológica de 2020, dados obtidos a partir das Secretarias Municipais de Saúde (2020)
Figura 2 –Índice de Moran Local para acesso à água a partir dos dados do SNIS (2019)
Figura 3 – Índice de Moran Local para esgotamento sanitário a partir dos dados do SNIS (2019)
É possível observar uma associação espacial negativa na região central da área de estudo, onde os indicadores de acesso são maiores e os números de óbitos decorrentes da pandemia são menores. Mesmo portando os maiores índices de densidade habitacional, os municípios da região central apresentam menor índice de mortalidade pela Covid-19, quando comparados com os demais municípios da região. A associação observada pode ter outros condicionantes, como baixo atendimento de saúde, grau de urbanização, predominância de habitantes com idade maior ou comorbidades ou baixa efetividade das políticas locais de distanciamento social. Porém, é importante ressaltar que, de acordo com instituições internacionais ligadas ao setor de saúde (OMS, 2020 e UNICEF, 2020), o saneamento adequado é um fator essencial na prevenção e mitigação da pandemia de Covid-19.
Os resultados aqui apresentados apontam para um cenário de associação espacial entre o maior índice de óbitos pela Covid-19 e o menor acesso aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Diversos são os fatores que podem intervir neste cenário, porém é importante ressaltar que corroboram evidências já mostradas em estudos nacionais e internacionais sobre a importância do acesso aos serviços de saneamento como um importante fator no combate à pandemia de Covid-19 (EKUMAH, 2020; PARIKH, 2020; SILVA et al., 2020). Os achados aqui apresentados também convergem com recomendações de instituições internacionais (OMS, 2020; UNICEF, 2020), quanto ao acesso universal à água segura e suficiente para a lavagem das mãos e a higienização dos domicílios como fatores de extrema importância no combate à pandemia de Covid-19.
Além da evidência empírica apresentada, destaca-se que a garantia dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário implica a necessidade da manutenção de políticas universalistas de acesso, cabendo a indagação de se o caminho para isto é a privatização massiva dos serviços.
1Doutorando em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos pela Universidade Federal de Minas Gerais.
2 Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento. Diagnóstico dos serviços de Água e Esgoto – 2019. Brasília: SNIS, 2019.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Disponível em <https://cidades.ibge.gov.br/> Acessado em 11 de junho de 2021.
NAHAS, Maria Inês Pedrosa et al. Desigualdades e discriminação no acesso à água e ao esgotamento sanitário na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 35, n. 4, p. 1–17, 2019.
UNICEF. One of the best defences against coronavirus. Disponível em: <https://www.unicef.org/coronavirus/water-sanitation-one-of-best-defences-against-coronavirus>. Acesso em: 26 jul. 2020.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Recommendations to Member States to improve hand hygiene practices to help prevent the transmission of the Covid-19 virus: interim guidance. n. April, p. 1–3, 1 abr. 2020. Disponível em: <https://apps.who.int/iris/handle/10665/331661>.
Satoko K, Olivier P, Steinfort L. Reclaiming public services: how cities and citizens are turning back privatisation. https://www.tni.org/files/publicationdownloads/reclaiming_public_services.pdf (acessado em 19/Jul/2021).» https://www.tni.org/files/publicationdownloads/reclaiming_public_services.pdf
EKUMAH, B. et al. Disparate on-site access to water, sanitation, and food storage heighten the risk of Covid-19 spread in Sub-Saharan Africa. Environmental Research, v. 189, p. 109936, out. 2020.
PARIKH, P. et al. Covid-19 and Informal Settlements – Implications for Water, Sanitation and Health in India and Indonesia. UCL Open: Environment Preprint, 18 jun. 2020.
SILVA, R. R. DA et al. Coronavirus disease and basic sanitation: too early to be worried? Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, v. 53, 2020.
NAHAS, Maria Inês Pedrosa et al. Desigualdades e discriminação no acesso à água e ao esgotamento sanitário na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Cadernos de Saude Publica, v. 35, n. 4, p. 1–17, 2019.
* Privaqua é um projeto de pesquisa que busca entender o impacto da privatização dos serviços de água e saneamento nos direitos humanos. Regularmente, o site do ONDAS publica notas do Privaqua de forma a dar transparência ao projeto e compartilhar alguns de seus achados preliminares.
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