Neste artigo, Vicente Andreu, ex-diretor presidente da Agência Nacional de Águas – ANA, explica os ataques que a gestão das águas no país estão sofrendo, como o Decreto de número 10.000, que altera a composição e atribuições do Conselho Nacional de Recursos Hídricos – CNRH. Para Andreu, “a gestão da água é essencialmente um processo contínuo de acordos sociais baseados na cooperação, no aprendizado científico, tecnológico, na proteção jurídico-institucional fundada na garantia do direito universal ao acesso à água”.
Retrocessos na gestão das águas no Brasil
O Sistema Nacional de Recursos Hídricos – SINGREH, cujo órgão máximo é o Conselho Nacional de Recursos Hídricos – CNRH, foi previsto no inciso XIX do artigo 21 da Constituição de 1988 e ganhou vida a partir da Lei 9.433, de 1997, estando implantado em todos os Estados, com conselhos e planos estaduais de recursos hídricos, com duas centenas de comitês de bacia de rios estaduais, 11 comitês de bacias de rios federais, além de um grande número de outros espaços de participação de setores usuários e órgãos gestores e reguladores. Mesmo com importantes contribuições, é ainda um sistema frágil sob o ponto de vista político-institucional, não conquistou o reconhecimento de sua relevância por grande parte da sociedade e ainda muito dependente da vontade política do poder público para seu fortalecimento. Sua força deriva essencialmente de seus fundamentos democráticos, baseados na participação social e descentralização da gestão.
O tema Água está cada vez visível na agenda política em todo o mundo. É uma agenda baseada na gestão integrada dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos, em sua inseparável relação com as temáticas ambiental e climática, em sua ligação direta com o território e uso do solo, em sua presença insubstituível em praticamente todos os setores econômicos e nas relações humanas. A gestão da água é essencialmente um processo contínuo de acordos sociais baseados na cooperação, no aprendizado científico, tecnológico, na proteção jurídico-institucional fundada na garantia do direito universal ao acesso à água.
No dia 03 de setembro, o atual Governo Federal editou o Decreto de número 10.000, alterando a composição e atribuições do Conselho Nacional de Recursos Hídricos – CNRH, mais um golpe na concepção democrática que deu origem ao sistema de águas brasileiro.
O primeiro desses ataques foi a transferência de todo o sistema de recursos hídricos do Ministério de Meio Ambiente para o Ministério do Desenvolvimento Regional, incluindo aí o CNRH e a Agência Nacional de Águas-ANA. Esta transferência entre ministérios foi recebida com total silêncio, diante da convicção generalizada de que manter a vinculação do sistema de águas ao atual ministro ricardo salles levaria a retrocessos ainda piores. Tenho a convicção de que, fruto da racionalidade própria desse Ministério, em pouco tempo restará evidente a predominância da concepção tecnocrática e utilitarista da água – possivelmente também autoritária – sobre a concepção originária do sistema, fundada na participação social e na sustentabilidade. Tradicionalmente foi essa visão utilitarista da água, um recurso renovável, porém finito, que levou aos níveis insustentáveis de consumo e poluição, infelizmente ainda tão presentes na nossa realidade.
O passo seguinte foi a paralisia durante todo este ano do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, que não realizou reunião sequer para cobrar quais os compromissos do atual governo com o sistema de águas. Esta paralisia é mais uma clara manifestação da passividade e do pragmatismo que vai tomando conta do sistema, pois regimentalmente 1/3 dos membros do CNRH podem requerer a convocação de reunião. Pessoalmente, tenho boa impressão do atual Ministro do Desenvolvimento Regional, mas não se trata de avaliações pessoais e sim das ações concretas que vão se sucedendo. Ocultar a proposta de alteração, transformando-a em fato consumado é muito sintomático. Tenho a opinião de que é possível questionar a aplicação imediata do Decreto 10.000, uma vez que o decreto 4.613, de 11 de março de 2003, em seu artigo 1º estabeleceu que “O Conselho Nacional de Recursos Hídricos, órgão consultivo e deliberativo (…) tem por competência: (…) V-analisar propostas de alterações da legislação pertinente a recursos hídricos e à Política Nacional de Recursos Hídricos”. Creio que questionar o decreto secreto demonstrará vitalidade do CNRH, sinalizando a disposição de enfrentar retrocessos. Não se trata de vencer ou perder, mas de defender da concepção democrática do sistema brasileiro de águas.
O ataque mais recente é justamente o Decreto 10.000, que reduz o número de membros do Conselho de 57 para 37, mantendo a maioria a priori do governo federal na sua composição, agora com 19 membros. Mesmo que os governos anteriores infelizmente também não tenham aceitado em retirar esta restrição claramente antidemocrática, a bandeira de que nenhum setor pode ter a maioria isoladamente deve ser mantida. Em preparação ao 8º Fórum Mundial da Água, que aconteceu em março de 2018 em Brasilia, houve um debate importante entre os atores do sistema durante quase dois anos, que concluiu por um conjunto de reformas, entre elas a ampliação da representação dos estados, municípios e entidades da sociedade civil no CNRH, garantindo seu caráter nacional, e não federal do sistema. Um sistema nacional deve ter, no mínimo, a representação de todos os Estados e não apenas de 9 como determina o novo decreto (projeto Legado em www.ana.gov.br).
O Decreto 10.000 retira ainda a garantia de custeio de diárias e passagens dos membros representantes da sociedade civil que existia a partir do Decreto 5.263 de 5 de novembro de 2004, com o claro objetivo de dificultar a participação deste setor nas reuniões sempre realizadas em Brasilia.
Não consigo enxergar as razões da ausência de resistência do sistema de recursos hídricos diante do que está acontecendo. Talvez a forte dependência do SINGREH das políticas e dos recursos do governo federal explique em parte essa passividade. Talvez um pragmatismo meio acovardado seja a resposta. O pragmatismo é, em geral, a sala de espera do retrocesso.
Vicente Andreu, ex-diretor presidente da Agência Nacional de Águas – ANA